Usina nuclear no Egito com tecnologia russa é marco para continente africano, nota especialista
14:49, 26 de fevereiro 2024
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam qual a importância da usina construída pela estatal russa Rosatom no Egito e como ela contribui para blindar o país da crise energética que afeta vários países do mundo.
SputnikO Egito anunciou no final de janeiro a construção de uma unidade da
primeira usina nuclear do país, que será a
segunda do continente africano. O anúncio foi dado em uma videoconferência pelos presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e do Egito, Abdel Fattah al-Sisi.
Localizada na cidade de El Dabaa, a usina é parte de um
acordo de cooperação firmado com a Rússia em 2015, e está sendo construída pela empresa estatal russa Rosatom,
com um empréstimo concedido por Moscou de US$ 25 bilhões (cerca de R$ 132 bilhões) para a realização da obra. A usina contará com quatro unidades de potência de 1.200 MW cada. Elas
operarão reatores nucleares russos avançados VVER-1200 geração "3+", que atendem aos mais altos padrões de segurança pós-Fukushima.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas explicam o que a parceria para a construção da usina significa para ambos os países, hoje colegas no BRICS, e como ela contribui para a retomada da economia egípcia, abalada após a pandemia.
Qual a relação entre Rússia e Egito?
Para Eduardo Gomes, coordenador do Núcleo de Estudos dos Países BRICS (NuBRICS) da Universidade Federal Fluminense (UFF), a construção da usina representa "uma grande conquista para a África e para a Rússia".
"Parece que está andando de forma eficiente [a construção da usina] e tem tudo a ver, aliás, com a entrada do Egito no BRICS. Então é Rússia e Egito no BRICS, e uma usina nuclear no meio do caminho."
13 de dezembro 2022, 19:22
Ele acrescenta que o fato de as obras terem iniciado pouco após a entrada do Egito no BRICS "é uma coincidência muito agradável para a Rússia".
"O Egito entrou para o BRICS, a Rússia financiou a usina no Egito. Putin está falando que foi muito bom para o Egito, é muito promissora a iniciativa da Rússia", diz Gomes.
Como está a economia do Egito?
Doutora em teoria e história literária pela Universidade de Campinas (Unicamp) e professora convidada de geopolítica da Ásia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Muna Omran afirma que a parceria para a construção da usina sinaliza a intenção do Egito de abrir o leque de parceiros e depender cada vez menos do Ocidente.
Nesse contexto, ela aponta que a China também tem um papel importante, principalmente após a eclosão do conflito ucraniano, que afetou as importações de produtos agrícolas da Rússia, prejudicando a economia egípcia já abalada pela crise econômica vivenciada por vários países por conta da pandemia.
"Com a guerra […], a crise econômica no país [Egito] aumentou. Ele já tem uma desigualdade social muito grande, e essa desigualdade aumentou. Hoje eu vejo que eles investem na China como esse novo parceiro. Aliás, a China está sempre circundando todos os países do Oriente Médio, do mundo árabe, especialmente", explica Omran.
A professora diz que o Egito tem uma produção local de petróleo, mas explica que, assim como o setor agrícola, não tem capacidade de suprir a demanda gerada pelos cerca de 105 milhões de habitantes do país, o que leva o governo a recorrer à importação de petróleo.
"Em 2017, o país consumiu cerca de 800 mil barris de petróleo, quando eles estavam produzindo 650 [mil]. Então eles ainda dependem da importação de petróleo, mas estão buscando também alternativas, estão investindo na descoberta de novos poços. A agricultura é o principal ativo econômico, tanto que ela corresponde a cerca de 14% do PIB [produto interno bruto]. E, hoje, 80% do consumo de produtos agrícolas são produzidos dentro do próprio país. Há um projeto de acabar sendo 100%, então eles estão investindo muito também na questão do desenvolvimento da agricultura, principalmente investindo em tecnologia agrícola."
Além da agricultura e do petróleo, ela complementa afirmando que o turismo também é parte importante da economia egípcia, representando entre 10% e 15% do PIB, assim como a produção de gás natural, que gira em torno de 7 bilhões de metros cúbicos por dia.
Como a usina nuclear contribui para o setor energético do continente africano?
Leonam dos Santos Guimarães, diretor técnico da Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Atividades Nucleares (ABDAN), coordenador do Comitê de Ciência e Tecnologia da Amazônia Azul Tecnologias de Defesa e membro titular da Academia Nacional de Engenharia, aponta que a construção da usina é "um marco importante e que vai ser a segunda central nuclear no continente africano".
"A outra é a central de Koeberg, na África do Sul. Então acho que marca um momento bastante importante de expansão da geração elétrica nuclear no continente africano, em especial, no mundo árabe também."
Ele ressalta que o Egito é um país que tem uma demanda muito grande por energia, e que necessita de abastecimento firme a um bom preço para manter seu crescimento sustentável.
"Essa vai ser uma usina mais moderna do que a do Brasil de Angra dos Reis. No Egito vão ser quatro reatores. As usinas do Egito são similares às usinas que a Rosatom está construindo na Turquia e também em Bangladesh e na Índia. São usinas de uma geração mais recente que incorporam uma série de lições aprendidas ao longo dos anos da experiência operacional das usinas nucleares no mundo todo, e essa usina é uma usina bastante moderna que incorpora todas essas lições aprendidas de acidentes anteriores", destaca o especialista.
Questionado se a parceria para a construção da usina sinaliza que o Egito está tentando se afastar dos EUA, Guimarães diz que "a Rússia ofereceu condições bastante favoráveis tanto do ponto de vista técnico quanto do ponto de vista econômico financeiro".
"Eu acredito que a escolha do Egito não é uma escolha ideológica […], mas é uma escolha prática, objetiva, fundamentada em razões técnicas e econômicas financeiras. A Rosatom é a companhia internacional que compõe mais reatores fora do seu país. Então ela oferece um pacote de serviços tanto da área de manutenção quanto da área de gestão de rejeitos quanto na área financeira que são bastante atrativos […]. Por isso, eles [Rosatom] têm o maior número de usinas sendo construídas no resto do mundo."
Qual a importância da Rosatom para o setor de energia global?
A Rosatom não consta na lista de empresas russas que foram sancionadas pelo Ocidente. Questionado se isso pode abrir caminho para que outras empresas russas também não sancionadas consigam atuar normalmente em outros países, Guimarães explica que a Rosatom não foi alvo por conta de sua importância para o mercado de combustível nuclear.
"A Rosatom não foi sancionada fundamentalmente porque ela é um importantíssimo mercado de combustível nuclear no mundo todo. Então se você aplicar sanções, você não pode prescindir dos suprimentos russos ligados especialmente à área do combustível nuclear. Acho que esse fato é bastante marcante. A Rosatom conseguiu ter uma posição de bastante preeminência no mercado internacional tanto de combustível e fornecimento de combustível como na construção de usinas."
Ele acrescenta que "o sucesso da economicidade de uma usina nuclear está fortemente associado às condições com as quais é financiada".
"Então o financiamento, sem dúvida, é um truque fundamental para o vendedor de usinas, o que é o caso da Rosatom. Eu acho que ninguém duvida, ninguém vai dizer o contrário, que a energia nuclear é um dos grandes temas da atualidade."
Questionado sobre o que significa para o continente africano ter uma usina construída com tecnologia russa, Guimarães afirma que a energia nuclear está na pauta de todos, na pauta global, e atribui isso a duas razões fundamentais.
"A primeira razão é a compreensão por parte de todos os atores políticos de que não haverá descarbonização profunda da economia sem uma participação significativa da energia nuclear. Essa é uma mensagem que vem sendo passada e foi incorporada até na última COP de Dubai. Ficou bastante claro que esse aspecto de energia nuclear mudou de patamar e de status nessas discussões referentes à descarbonização e à mitigação das mudanças climáticas. Esse é um fato", explica Guimarães.
Ele acrescenta que, por outro lado, o conflito ucraniano "criou uma sensação de insegurança energética similar àquela que foi criada na década de 70 com os choques do petróleo".
"[…] os países perceberam que eles precisam garantir segurança energética, e uma ferramenta importante da segurança energética é, sem dúvida nenhuma, a energia nuclear. Então ela está em uma posição muito favorável nesse momento. E quando se fala da energia nuclear na África, eu acho que tem um aspecto especialmente importante. A África é o continente mais pobre, onde a qualidade de vida é a pior do mundo. E, para melhorar a condição de vida dessas centenas de milhões de africanos, você precisa de muita energia."