'Imaginário de pureza racial': por que o neonazismo avança no Brasil, sobretudo em Santa Catarina?
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam a expansão de células neonazistas no Brasil, sobretudo na região Sul, e explicam como essa tendência remete às tentativas do Terceiro Reich alemão de fazer do país uma de suas bases para a difusão da ideologia nazista pelo mundo.
SputnikO debate em torno da
ascensão do neonazismo no mundo costuma ser focado na Europa, especialmente na Alemanha e na Ucrânia. Porém
a ideologia também vem se alastrando pelo Brasil, onde há uma grande incidência de células neonazistas.
Na semana passada, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) enviou à Organização das Nações Unidas (ONU) um relatório no qual classificou como alarmante o crescimento de grupos neonazistas no Brasil. O documento alerta que a ascensão do neonazismo está ligada ao aumento no número de ataques em escolas.
O alastramento da ideologia nazista é observado em todo o Brasil, porém mais grave no recorte da região Sul, sobretudo no estado de Santa Catarina, que segundo o CNDH tem o cenário mais preocupante.
Segundo um
relatório feito em 2022 pela antropóloga Adriana Dias, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) referência em pesquisa sobre o neonazismo no Brasil, falecida em 2023,
o número de células neonazistas no Brasil saltou de 72 em 2015 para 1.115 em 2022.
No ranking de estados com maior concentração de células nazistas, os três do Sul constam nas primeiras cinco posições, sendo liderado por Santa Catarina, com 320 células, seguida de São Paulo (268), Paraná (197), Rio Grande do Sul (159) e Rio de Janeiro (61).
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam quais as causas da ascensão do neonazismo no Brasil, por que a região Sul é a mais fértil para o alastramento dessa ideologia e como combater o avanço das células extremistas no país.
A origem do nazismo no Brasil
Para Odilon Caldeira Neto, professor de história contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador do Observatório da Extrema Direita, a raiz do nazismo no Brasil "tem origem com a construção de células do Partido Nazista alemão no Brasil, que eram entidades voltadas para a difusão do nazismo entre os imigrantes alemães e filhos de imigrantes que se instalaram no país". Porém ele sublinha que o fenômeno do neonazismo é diferente.
"Ele não tem uma relação direta, embora ideologicamente possa ter uma relação com o fenômeno do nazismo histórico, mas o neonazismo tem algumas credenciais, algumas características que são particulares."
31 de janeiro 2023, 13:34
Ele afirma que o fenômeno do neonazismo no Brasil se divide em duas fases: a primeira da década de 1980 ao ano 2000, fomentado por grupos skinheads de orientação neonazista, negacionistas do Holocausto e entidades que tentaram formalizar o neonazismo durante a transição democrática. A partir dos anos 2000, o quadro se tornou mais complexo, com o neonazismo obtendo uma maior penetração no tecido social, maior radicalização e integração no cenário nacional.
"Isso é fruto de diversos fatores. Eu diria que desde o contexto político nacional, que em alguma medida traz algumas possibilidades para o avanço de grupos neonazistas, mas, sobretudo, a utilização dos meios digitais. Esses grupos vão se formar por meio das plataformas digitais se inspirando nas referências internacionais, mas também, em alguma medida, buscando adaptar essas questões para a realidade brasileira."
Ele acrescenta que nessa adaptação estão incluídos discursos separatistas, que se propagam não somente nas regiões Sul e Sudeste, e o aceleracionismo.
"Então, de uma maneira geral, é necessário entender esse quadro em torno da sua complexidade, em torno dos grupos constituintes nesse universo bastante diversificado, que não está presente apenas no sul do país."
Brasil na rota do Terceiro Reich da Alemanha nazista
A origem da ideologia nazista no Brasil remete à
ascensão do nazismo na Alemanha, segundo Marcia Carneiro, professora e doutora em história social, com pós-doutorado em educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF); professora associada no Departamento de História do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional; docente no mestrado profissional de ensino de história, da UFF, e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públicas (PPGDAP/UFF); e coordenadora do Laboratório de Estudos das Direitas e dos Autoritarismos (LEDA/UFF).
Segundo Carneiro,
Brasil e Argentina estavam na rota dos planos de expansão do Terceiro Reich para além das
fronteiras germânicas e europeias.
"Mario G. Losano [filósofo italiano] descreve a criação de 'Estados vassalos' como uma função estratégica na condução da guerra, concebendo-os como fortes aliados alemães. No caso da América do Sul, as relações da Alemanha com suas colônias na América do Sul serviriam como distração para os Estados Unidos, retirando deles o foco na ajuda ao aliado inglês na guerra na Europa, obrigando-os a focar no próprio continente americano."
Carneiro aponta pesquisas da professora Ana Maria Dietrich que indicam que "o Partido Nazista no exterior esteve presente em 83 países do mundo, com 29 mil integrantes", que seguiam regras e fundamentos iguais para todos os países onde houvesse colônias alemãs.
"Neste caso, o Partido Nazista no Brasil era composto por 2.900 integrantes, um dos maiores dos 83 países integrados a esse projeto nazista. E uma das condições que permitiram essa expansão no Brasil foi a relação 'amigável' entre Vargas e Hitler na década de 1930 em termos econômicos, políticos e institucionais, como o acordo de treinamento de policiais brasileiros pela Gestapo [polícia secreta da Alemanha nazista]."
Ela aponta ainda a existência do integralismo, movimento que pregava a criação de uma quarta humanidade, sob comando de uma raça cósmica brasileira, que lideraria "um projeto de Estado corporativo que pode ser compreendido em sua organicidade no lema 'Deus, Pátria e Família'".
"'Deus' [nesse projeto] representa a inspiração divina para governar, e não um ungido; 'Pátria' representa o nacionalismo, com a defesa das riquezas e da cultura (moral e folclórica); e 'Família' seria a representação da família nuclear tradicional, na qual o pai representa a dimensão primeira do Estado, pois chefia o núcleo familiar, sendo ele o provedor […], [e] a mãe, no núcleo familiar, representa a mulher dedicada ao lar, à educação dos filhos e aos cuidados do esposo. Cabe dizer que a mulher integralista deve ser ativa militante, porém resguardando o lado feminino, de esposa e mãe, conforme o movimento assim determinava."
Expansão do neonazismo como fenômeno global
Ex-senadora e líder do Movimento Humaniza SC e ex-ministra do governo Dilma Rousseff, Ideli Salvatti ressalta que a ascensão do neonazismo e do extremismo não é uma tendência restrita ao Brasil, mas sim uma questão mundial. Ela aponta como indício o uso de símbolos similares, como a bandeira de Israel em manifestações extremistas.
"Tanto que a Assembleia Geral da ONU, de 19 de dezembro do ano passado, a partir da resolução 78/190, manteve, renovou a comissão que está trabalhando nesse tema. E o objetivo da comissão é combater a glorificação do nazismo, o neonazismo e outras práticas que contribuem para exacerbar as formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e formas conexas de intolerância. Porque esse é, infelizmente, o cenário que vivenciamos no mundo."
As células neonazistas se apropriaram da retórica da direita ao redor do mundo, radicalizando o discurso da vertente política e criando uma corrente extremista. Segundo Salvatti, essa corrente extremista global tem elementos e fundamentos que em vários aspectos se aproximam do nazismo.
"E no Brasil não é diferente. Então a gente vive atualmente esse clima de ódio, de violência, de armamentismo, de preconceitos, discriminação e, também, de crescimento das próprias células nazistas."
Por que a região Sul é a mais afetada?
Questionado sobre por que há maior incidência de células neonazistas no Sul, Neto afirma que grupos neonazistas "imaginam o sul do país como território da pureza racial e buscam, a partir dessa ideia imaginada e imaginária, projetar uma ideia de neonazismo para essas regiões".
"Esses grupos são formados pela disseminação do neonazismo, não somente do ponto de vista ideológico, mas também do nazismo como uma referência de uma medida de ruptura e de revolta contra o estado das coisas. E muitas vezes esse discurso vai se encontrar com outros que lidam com questões como antissemitismo, islamofobia, gordofobia, homofobia, misoginia, racismo. Ou seja, há um fenômeno bastante diversificado, complexo, que assume diversas tonalidades e plataformas e também desafios para a segurança, porque tem desde um sentido da radicalização de indivíduos até o máximo expoente, como são os atentados ou ataques às escolas."
Salvatti sublinha que há muitos elementos no Brasil que contribuem para o alastramento do neonazismo, que incluem "uma colonização diferenciada em termos territorial, regional, europeia, anterior inclusive à Primeira e à Segunda Guerra Mundial, mas que manteve vínculos muito profundos com os seus países de origem".
"Eu digo isso aqui pelo Sul do Brasil, onde a colonização alemã e a colonização italiana, apesar de a maior parte [dos imigrantes] ter chegado aqui antes do surgimento do fascismo e do nazismo, […] mantiveram profundas ligações com os países de origem e, portanto, [foram] permeáveis a essa troca de informações e, eu diria até, de formação", explica a ex-ministra.
21 de dezembro 2023, 15:23
Ela acrescenta ainda que após a Segunda Guerra a Argentina e o Sul do Brasil receberam, comprovadamente, criminosos de guerra nazistas, que se instalaram na região.
"É bom também sempre lembrar que o integralismo foi um partido muito forte no Brasil, mas principalmente aqui no Sul. Os maiores contingentes integralistas estiveram organizados, formados, instalados no Sul do Brasil, e em Santa Catarina em especial. E todos nós sabemos que o integralismo tem forte vinculação com a base ideológica do nazismo e do fascismo. Então é esse conjunto de elementos que acaba enraizando, em determinadas situações, em determinados núcleos da sociedade catarinense do Sul do país, essa vinculação."
Segundo Marcia Carneiro, pesquisas sobre os movimentos fascistas no Brasil devem levar em consideração "os movimentos supremacistas brancos em termos mundiais e que encontram entre populações regionais de origem europeia representatividade em relação a fenótipos europeus".
"São questões profundas, econômicas e sociais que atingem os continentes nos quais os imperialismos forjaram-se, sobre o estabelecimento civilizatório das concepções eugênicas do darwinismo social, que considera uma superioridade branca sobre os demais grupos étnicos."
Internet como difusora do neonazismo
Se a expansão do neonazismo é um fenômeno global contemporâneo, a Internet, sobretudo as redes sociais, é o mecanismo que amplificou a retórica da ideologia ao redor do mundo, conectando e articulando grupos identificados com tais ideias. Como aponta Salvatti, a Internet e as redes sociais foram instrumentalizadas por conta de algoritmos que facilitam a disseminação desse conteúdo.
"O negócio das redes sociais são os likes e os próprios algoritmos construídos a partir da tal visualização — é muito mais fácil você ter o conteúdo que é violento, que é lacrador, que facilita, potencializa ainda mais a divulgação, a disseminação [de conteúdo extremista]. Aí você tem determinados instrumentos que foram comprados por pessoas que têm vínculo com a ideologia."
Como combater o avanço do neonazismo
Segundo Salvatti, combater o avanço da ideologia nazista é um trabalho lento e difícil, "porque é muito fácil disseminar uma mentira, algo violento, mas a cultura da paz sempre é uma cultura mais difícil de ser consolidada".
"Ainda mais nesses tempos de redes sociais, que não nos ajudam em nada a fazer esse trabalho. Mas é muito importante manter todos os trabalhos, as atuações de enfrentamento a essa ideologia de ultradireita, fascista, nazista, violenta, discriminatória", explica.
8 de novembro 2023, 15:45
Ela acrescenta ainda que "regulamentar as redes sociais e a Internet é algo absolutamente imprescindível".
"Não é uma terra de ninguém [a Internet]. Nada ali que seja criminoso no cotidiano, no dia a dia, no convívio, nas relações das pessoas, tudo aquilo que é caracterizado como crime, terá que ser também feito o equivalente nas redes sociais e na Internet. Então a regulamentação das big techs e das redes sociais é absolutamente imprescindível para a gente poder ter condições de fazer um enfrentamento [ao neonazismo]."
Salvatti aponta que tanto o Executivo, liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quanto o Supremo Tribunal Federal (STF) têm consciência da importância de tomar medidas contra o avanço do nazismo. No entanto, esse trabalho é mais difícil no Legislativo porque há bancadas extremistas no Congresso que estão fortalecidas.
"Nós até conseguimos votar no Senado a regulamentação do projeto que trabalhava na linha da regulamentação das big techs e das redes. Mas na Câmara zeraram tudo. Mesmo com todo o ataque sofrido à soberania nacional, demonstrando claramente que não é só um problema de comunicação, não é só um problema de negócios, é um problema de soberania do país [em relação] a um instrumento tão forte que se diz acima das leis do país. Então no Legislativo a questão está bastante difícil", afirma.
"Eu diria que a dificuldade maior, inclusive, atualmente é nos Legislativos, por conta da bancada, e eles acham que podem fazer o que querem, eles se escudam na liberdade de expressão, na impunidade — eu não diria mais imunidade, é impunidade parlamentar. Se dão até o direito de ir tramar contra o país nos Estados Unidos", acrescenta.
19 de dezembro 2023, 18:47
Ela aponta ainda que a sociedade tem um "trabalho de formiguinha" em seu dia a dia para combater a cultura extremista e "valorizar a cultura da paz, da convivência, da inclusão social, do respeito ao outro, da empatia".
Salvatti aponta que o trabalho do Humaniza SC, movimento criado em 22 de novembro de 2022, logo após o segundo turno das eleições presidenciais, visa justamente contribuir para o combate da ideologia extremista que ataca, preferencialmente, mulheres, negros, a população LGBTQIA+ e pessoas com deficiência, e promove a xenofobia.
"Atuamos ao longo de 22, 23, 24 sem parar. Porque aqui [em Santa Catarina], toda semana, toda hora, nós temos situações absurdas, como prefeitos e o governador dizendo que não precisa vacinar, que não é obrigatório vacinar para as crianças irem para a aula. Aqui a gente tem a questão de que a superação da população em situação de rua não é tirar da rua, é tirar daqui [de vista]. A questão da internação compulsória, que é inclusive algo que tem legislação impedindo que isso ocorra, […] aqui fazem, executam, colocam como centro da política para as pessoas em situação de rua. Temos a questão da violência: é um dos estados onde nós temos um dos maiores índices de feminicídio. Então aqui é tudo muito forte, que exige que a gente faça esse trabalho de articulação do Humaniza SC."
No entanto ela afirma que nenhum desses temas, bem como o avanço do neonazismo, é algo exclusivo de Santa Catarina, e ressalta que essa tendência extremista "não condiz com a índole e com a história catarinense".
"Nós amamos Santa Catarina, e todos nós amamos e reconhecemos este estado como um estado de solidariedade, um estado de lutas, um estado onde nós tivemos muitos avanços significativos. Temos personalidades nacionais e internacionais reconhecidas aqui de Santa Catarina, exatamente na visão humanista, como Dom Paulo Evaristo Arns, Dona Zilda Arns, o Bispo Dom José Gomes."
Neto, por sua vez, afirma que o combate ao neonazismo no Brasil não pode ser "somente baseado em uma dimensão quantitativa, mas deve ser sobretudo qualitativa".
"Acho que esse é o desafio mais importante no estágio atual para o governo brasileiro. Entender que para além de buscar entender quantos [grupos neonazistas] são, é necessário compreender como esses grupos se organizam, quais são as diversidades do cenário neonazista brasileiro, como eles se financiam, como eles se integram no cenário internacional para, aí sim, pensar políticas públicas que sejam mais efetivas para lidar com esse problema."
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