Análise: não há escassez nos arsenais ocidentais, há falta de vontade de fornecer mais armas a Kiev
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam as causas da escassez de armamentos nas linhas de frente ucranianas e apontam que o Ocidente está investindo em armas mais modernas e sofisticadas que não desejam enviar a Kiev.
SputnikA
escassez de armas vem estrangulando as capacidades das forças ucranianas em confronto com tropas russas e aparentemente drenando os arsenais dos EUA e de aliados europeus. Desde o início do conflito,
Kiev recebeu de Washington bilhões de dólares em armas e equipamentos militares para a frente de combate.
No entanto esse auxílio minguou nos últimos meses, e um dos motivos, segundo analistas ouvidos pela mídia americana, é a incapacidade dos EUA de produzir armas o suficiente para repor os estoques direcionados para Kiev.
Um artigo
publicado no The Trumpet, por exemplo, aponta que os arsenais dos EUA chegaram a um nível
"perigosamente baixo". Segundo o artigo, desde o início do conflito ucraniano os Estados Unidos já enviaram mais de 2 milhões de projéteis de 155 milímetros, calibre utilizado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), para a Ucrânia, que
dispara uma média de 110 mil projéteis por mês. Isso excede em muito os 28 mil projéteis mensais que as fábricas americanas conseguem produzir, sendo que antes do início do conflito a produção era de 15 mil projéteis. O Pentágono tem planos para aumentar a produção para 100 mil projéteis por mês, mas o prazo para isso acontecer vai até o final de 2025.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas apontam que a escassez de armas fornecidas a Kiev não é fruto da falta de capacidade de produção, mas sim de uma mudança de paradigma em relação à forma como conflitos são travados e da falta de vontade do Ocidente de enviar mais armas à Ucrânia.
Isabela Gama, professora de relações internacionais da Universidade Abu Dhabi, afirma que "existe um lobby interno nos Estados Unidos para que o país não se envolva mais nesse conflito". Além disso, ela aponta que há um estoque menor nos arsenais ocidentais porque os armamentos produzidos atualmente são mais modernos.
"Então existe a necessidade de menos armamentos e mais armamentos inteligentes, o que demanda um orçamento militar muito alto, mas não necessariamente de produção em massa, mas de produção de qualidade, tecnologia muito avançada. Os orçamentos de gastos militares […] no mundo inteiro apenas aumentam — o Brasil é um exemplo disso, e nós não estamos em conflito. E também existe uma falta de vontade dos Estados Unidos em enviar armamentos para a Ucrânia por conta de uma questão política, não logística", explica a especialista.
Isabela enfatiza que a recente declaração do secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, que
pediu o fim das restrições do uso de armas pela Ucrânia contra a Rússia, indica que vai haver um maior envolvimento dos países-membros da aliança nesse esforço, o que expõe que o problema não é a escassez de armas. Segundo ela,
o que ocorre é que muitos países estão optando por preservar seus próprios arsenais, enviando para a Ucrânia apenas armamentos obsoletos, dos quais pretendem se desfazer nesse processo de modernização.
"A questão é que os países ocidentais não estão mais querendo enviar [para a Ucrânia] o seu material bélico que seja muito caro, como caças supercaros, armamentos muito modernos. Até agora, o que tem sido enviado à Ucrânia são basicamente armamentos já antigos, que na verdade estavam sendo um fardo para alguns países", explica Gama.
"Não à toa, a Alemanha foi ao Brasil pedir que o Brasil enviasse tanques e munição, um determinado tipo específico de munição, para a Ucrânia, porque nós temos e nós não usamos, porque são muito antigos e têm sido um fardo para o Brasil, e há algum tempo o governo brasileiro tenta se livrar desses tanques. Mas o Brasil, como não quer se envolver no conflito, decidiu não enviar. Nós fomos duramente criticados pelo chanceler alemão, mas o problema não é escassez, o problema é que não há vontade de enviar os armamentos mais modernos para a Ucrânia", complementa.
Ela afirma que os EUA continuam sendo uma potência bélica que detém armamentos modernos e caros, "que eles não vão enviar à Ucrânia". "Então a imagem [que fica] é que os Estados Unidos não estão tão interessados assim em se envolver diretamente [no conflito ucraniano]."
Tecnologia nos arsenais substituiu quantidade por qualidade
Pedro Paulo Rezende, especialista em assuntos militares, concorda que o problema no
fornecimento de armas à Ucrânia não é fruto de escassez nos arsenais ocidentais, mas da
substituição por armas mais modernas.
"Você armazenar armas durante um período muito longo, principalmente armas pesadas, é um grande problema. Primeiro porque você cria um risco para a população. Mesmo com todas as medidas de segurança, paióis com 200 mil, 300 mil munições de projéteis de 155 milímetros podem causar um estrago ao redor de 20, 30 quilômetros do paiol se houver algum problema dentro dele. Esse é o primeiro problema, segurança. Você tem que pensar na segurança da população", explica.
"O segundo problema é que munição acaba perdendo a validade, então você nunca vai ter uma garantia total da qualidade daquela munição se você precisar usar." Por isso a melhor opção é o investimento em armas mais modernas no modelo de produção "just in time".
"Outro ponto é que muita coisa mudou em termos de tecnologia. Munições guiadas, por exemplo, são uma trend hoje. Eu vi uma munição guiada italiana, em La Spezia, que tinha um alcance de 80 quilômetros. [Elas] Têm uma precisão muito grande e são muito mais caras de produzir, dez vezes mais caras do que as munições tradicionais. Então você ter grande estoque desse tipo de munição é uma coisa complicada. E se você tem as unidades fabris prontas para operar, você consegue suprir as necessidades das Forças Armadas em um tempo relativamente curto. Ou seja, você saiu de um momento que você precisava de muita munição para outro que você precisa de menos munições, com mais qualidade e um custo muito mais alto."
Ademais, ele aponta que o conflito ucraniano surpreendeu países do continente.
"O terceiro ponto é que ninguém pensava que haveria um conflito de grandes proporções na Europa. Ninguém pensava nisso, foi uma coisa totalmente inesperada. Todo mundo achava que se houvesse conflito, seria um conflito de baixa intensidade, como foi lá no Afeganistão, como foi a guerra da Geórgia, que foi rapidamente resolvida pela Rússia", explica o especialista.
Há possibilidade de uso de armas nucleares táticas no conflito?
Questionados sobre se países ocidentais podem recorrer ao uso de armas nucleares de baixo impacto, também chamadas de táticas, no conflito ucraniano, ambos os especialistas descartam essa possibilidade.
Isabela Gama adverte que "armas nucleares de baixo impacto, na verdade, não são exatamente de baixo impacto" e destaca que o conflito vigente em si já representa uma nova modalidade de confronto.
"É uma modalidade mista de ciberguerra com uma guerra tradicional. Eu acredito e espero que não se torne uma guerra nuclear, obviamente. Mas o envolvimento da OTAN está sendo cada vez maior, e eu tenho grandes ressalvas. Acredito que os países que possuem a capacidade bélica nuclear não se envolverão nesse sentido."
Pedro Paulo Rezende, por sua vez, aponta que a comunidade internacional já aprendeu os riscos de apostar na nuclearização.
"Para haver uma situação em que seja necessário empregar armas nucleares, é preciso que tudo se agrave de uma maneira exponencial. Eu não acredito no uso de armas nucleares, principalmente depois de Chernobyl. Os efeitos de Chernobyl deixaram as nações mais cuidadosas em relação a isso, Chernobyl e Fukushima. Então acho muito difícil que se usem armas nucleares táticas na Ucrânia ou na Europa tão cedo", conclui o especialista.
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