Assange provou que a verdade pode colocar em xeque os mais poderosos, dizem analistas à Sputnik
Jornalistas e analistas consultados pela Sputnik afirmam que a libertação de Julian Assange é histórica porque o trabalho que ele realizou anos atrás na plataforma WikiLeaks — onde foram publicadas informações confidenciais dos EUA — foi um "ponto de ruptura" na história contemporânea do jornalismo.
SputnikNo dia 24 de junho, o mundo foi informado que,
após 14 anos de perseguição por parte de Washington, o jornalista australiano
Julian Assange foi libertado da prisão de segurança máxima de Belmarsh, no Reino Unido,
onde passou cinco anos encarcerado.
A libertação ocorreu após a defesa de Assange firmar um acordo com o Departamento de Justiça dos EUA, cujos detalhes ainda não foram revelados, embora meios de comunicação dos EUA indiquem que o ativista
fará uma confissão de culpa por um crime que implicaria uma sentença de 62 meses de prisão nos EUA, ou seja, o mesmo período de cinco anos cumpridos no Reino Unido.
Para além do processo judicial que ainda aguarda Assange nos EUA — que solicita uma sentença de 175 anos por ter revelado documentos relativos à segurança nacional —, a libertação do ativista é um triunfo para a liberdade de expressão e de imprensa, conforme afirma à Sputnik Rubén Darío Vázquez, mestre em Comunicação e Inovação Tecnológica pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM).
"Expor um governo tão poderoso como o dos EUA não é algo fácil. Assange mostrou que é possível colocar em xeque os mais poderosos através da verdade e da transparência", observa Vásquez.
Segundo ele, o WikiLeaks foi o precedente para muitas outras plataformas ou projetos que anos depois se dedicaram à publicação de documentos confidenciais ou informações sensíveis sobre assuntos de importância global, como os Guacamaya Leaks, os Panama Papers ou os Pentagon Papers.
"Com o surgimento do WikiLeaks em 2006, abriu-se o precedente para o que hoje entendemos como jornalismo investigativo. Sua forma era simples: uma plataforma onde podiam ser carregados documentos que estavam disponíveis para todos e que podiam ser revisados por outros jornalistas. [O WikiLeaks] envolveu um trabalho muito profundo de arquitetura de computadores, mas acima de tudo uma visão muito clara da liberdade de expressão e do acesso à informação no século XXI", disse Vázquez.
Segundo o especialista, com o seu trabalho, Assange não só foi contra os interesses de Washington, mas também contra as narrativas oficiais ditadas pelo governo dos EUA aos meios de comunicação corporativos globais.
"Governos de todo o mundo têm interesses ocultos que muitas vezes contradizem os seus próprios princípios nacionais e internacionais. Assange demonstrou isso. A sua liberdade hoje implica a compreensão de uma nova forma de entender o alcance do conceito de 'acesso à informação'", afirma.
"Não podemos negar que, com a utilização das novas tecnologias de informação e da [inteligência artificial] IA, a forma como as pessoas são informadas mudou drasticamente. Isso nos lembra que o grande conglomerado global de meios de comunicação social corporativos há muito monopoliza o conteúdo que milhões de pessoas veem e os conceitos que temos sobre jornalismo, conhecimento e cultura. Porque se uma plataforma, um meio ou um comunicador sai desses cânones, eles praticamente desaparecem, ficam invisíveis", afirma.
O fator Assange nas eleições dos EUA
A libertação de Julian Assange no Reino Unido ocorre em um momento de tensões políticas generalizadas nos EUA, no qual o presidente Joe Biden tenta a reeleição contra um Donald Trump que parece fortalecido, segundo diversas pesquisas eleitorais.
Segundo Vázquez, Biden pode ser afetado com a soltura de Assange, pois seu papel, seja como atual presidente ou como vice-presidente de Barack Obama, nas guerras do Iraque e do Afeganistão, o tornam um alvo fácil de críticas por conta dos vazamentos do WikiLeaks, que expuseram vários crimes de guerra e irregularidades relacionados a esses dois conflitos.
"Biden é uma figura que não teve o peso que outros presidentes tiveram. Até Trump, que foi criticado por todo o mundo, era amado por aqueles EUA mais tradicionais. O caso pode ser aproveitado pela direita norte-americana, que é favorável a Trump e pode tomá-lo como uma bandeira da liberdade de expressão", considera o especialista.
"Um sinal de que a injustiça pode ser remediada"
Durante 14 anos, Assange passou por um dos processos legais mais complexos já registrados contra um jornalista em todo o mundo. A Justiça americana tinha 18 acusações contra ele por espionagem e pedia até 175 anos de prisão. Além disso, estava preso em uma prisão britânica desde 2019, onde adoeceu gravemente, segundo disse diversas vezes a sua defesa.
Ademais, de 2012 a 2019 ele permaneceu refugiado na Embaixada do Equador em Londres, até que o país sul-americano decidiu deixar de lhe conceder asilo sob a gestão do ex-presidente Lenín Moreno. Durante todo o tempo que passou na embaixada, Assange esteve sob ameaça de ser extraditado para os EUA.
Apesar de todo o assédio judicial e dos vários problemas de saúde mental e física que sofreu ao longo dos anos, a sua libertação pode ser interpretada como "um sinal de que a justiça pode chegar ou que a injustiça pode ser remediada", segundo afirma em entrevista à Sputnik Paula Mónaco Felipe, jornalista, escritora, ativista e produtora argentina radicada no México e vencedora do Prêmio Nacional de Jornalismo em 2019 e 2021.
"O mundo e as instituições devem anos de vida a Julian Assange, à sua família e a todos os jornalistas do mundo, que devem ter o direito de realizar o nosso trabalho sem pressão e sem serem perseguidos dessa forma", afirma.
Para a jornalista, Assange foi um dos promotores de "um novo modelo que tem contribuído muito para o jornalismo e a transparência para revelar mecanismos obscuros e avançar em direção a um mundo mais justo".
Além disso, ela considera que a libertação de Assange não é inteiramente justa, uma vez que ele terá de se declarar culpado perante as autoridades norte-americanas por crimes que "não cometeu".
A lição da punição
Embora a libertação de Assange seja positiva para ele e sua família, não podemos fechar os olhos para uma realidade inegável: a de que os EUA e seus aliados exerceram uma punição internacional exemplar, principalmente contra jornalistas, baseada em tortura psicológica. É o que afirma à Sputnik Daniela Pastrana, diretora do portal de jornalismo investigativo Pie de Página (Pé de página, em tradução livre) e fundadora da rede Periodistas de a Pie (Jornalistas a pé, em tradução livre) na América Latina.
"É uma forma de lembrar, no século XXI, que quem se opõe aos poderes dominantes pode sofrer o que está ele sofrendo", observa.
"E também aquele castigo exemplar que se manifestava na não possibilidade de sair ao sol, no isolamento, na falta de comunicação, na impossibilidade de ter contato com seus laços afetivos ou de ter apenas uma hora por semana para falar ao telefone com sua esposa, são uma manifestação visível de um modelo de democracia ocidental que está em crise, e que nessa crise revelou a sua pior face", acrescenta a renomada jornalista mexicana.
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