Panorama internacional

Preferência pelo ouro por bancos centrais africanos: um novo e duro golpe para a hegemonia do dólar

A escolha de vários países africanos de investir mais no ouro do que no dólar para compor suas reservas internacionais é reflexo do fim da hegemonia da moeda americana, opinaram analistas em entrevista à Sputnik Brasil.
Sputnik
Nigéria, Zimbábue, Uganda, Madagascar e Sudão do Sul são alguns países do continente que decidiram aumentar suas reservas em ouro no lugar do dólar.
Para abordar esse assunto, a Sputnik Brasil ouviu em seu programa Mundioka nesta sexta-feira (6) o economista e especialista em políticas públicas e gestão da educação e coordenador dos cursos de gestão financeira do Centro Universitário Internacional Uninter Daniel Weigert Cavagnari e a professora de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) Natalia Fingermann.
O dólar continua a ser a principal moeda de reserva internacional. Os últimos dados do Fundo Monetário Internacional (FMI) apontam que os países mantiveram 58,85% de suas reservas nessa moeda. Ao mesmo tempo, há dez anos, o valor era um pouco mais alto, 63,04%.
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Mesmo com alta nos preços, compras de ouro por bancos centrais têm maior nível desde janeiro
A professora destacou que a mudança está sendo tomada principalmente por países africanos que integram o grupo BRICS.

"A própria China, a Índia, têm aumentado suas reservas em ouro. A China tem favorecido em seu comércio trocas que não são feitas em dólar. Então o que a gente percebe é que a hegemonia do dólar como aquela moeda segura, onde todos os países utilizavam para manter as suas reservas e realizar trocas internacionais, é um processo que está em decadência", frisou a entrevistada.

Para Cavagnari, a desistência dos bancos centrais dessas nações pelo uso do dólar é um dos "desesperos" do mercado norte-americano.

"Ele [os EUA] está perdendo o poder de uma série de áreas: de política, de tecnologia […]. A China está bem superior em relação à tecnologia, em produção, em outras questões. Há vários países que se destacam também no desenvolvimento de tecnologias, de produção agrícola, então o americano já não é a superpotência que era", argumentou o analista.

Cavagnari lembrou que antes da Segunda Guerra Mundial, o ouro servia como base para as outras moedas no mundo. Após a guerra, "eles tiram o ouro, porque estava ficando escasso, e passam a adotar o dólar como moeda oficial, como reserva do mundo, utilizada principalmente no comércio internacional", esclareceu.
Ainda assim, o ouro é uma das principais reservas de segurança do planeta, cujo valor aumenta conforme cresce a demanda, mencionaram os entrevistados, uma "espécie de poupança" que, apesar de valorizar pouco, não desvaloriza.
A especialista em relações internacionais defendeu que a posição de maior busca pelo ouro por parte desses países é principalmente política. Porém, o cenário econômico de instabilidade econômica global favorece essa posição.

"Uma vez que a maior parte dos países que têm ampliado a sua reserva de ouro são países que recentemente passaram por um processo de revolução, golpes, em oposição às suas relações tradicionais, principalmente na região do Sahel, ali com a França []", comentou ela. "Eles poderiam estar aumentando as suas reservas em outras moedas, poderia ser feita outra escolha. Mas, neste momento, pela questão das taxas de juros e a queda das taxas de juros dos países desenvolvidos, a escolha tem sido feita em ouro", declarou ela.

Entretanto, para o economista, os países africanos "estão chegando muito tarde nesse mercado".

"Porque desde o ano passado, a China, a Índia, principalmente, que têm crescido bastante, já estão correndo nesse mercado internacional. O Brasil também já tem vistas para fazer mais reservas de ouro. Porque o dólar não para de flutuar", comentou, ao acrescentar que os conflitos envolvendo países do Oriente Médio e a Rússia e Ucrânia também têm sido responsáveis pela fuga de capitais e busca mais acirrada pelo ouro, prejudicando principalmente os países mais pobres no poder de compra.

De acordo com o Conselho Mundial do Ouro (WGC, na sigla em inglês), em julho as compras líquidas de ouro pelos bancos centrais dobraram em relação a junho, atingindo 37 toneladas, o maior volume desde janeiro, apesar da alta nos preços.
Por outro lado, a professora de relações internacionais salientou a ironia dessa situação, uma vez que o continente concentra quase metade das reservas de ouro do mundo, mas os países não conseguem converter essa riqueza e prosperidade para a população e precisam de dólar para comprar o metal, que muitas vezes é produzido em território africano e vendido ilegalmente no mercado internacional.
O Sudão, um dos maiores produtores de ouro do continente, está numa guerra civil, em uma das maiores crises humanitárias do planeta. Tal situação favorece os grupos dominantes, o tráfico internacional, os países ricos que compram o ouro barato, a indústria de joias.
O legado do período colonial, de expropriação, opressão e destruição dessas nações por séculos, cujos processos de independências ainda são recentes é, na opinião da especialista, um dos principais entraves para os avanços necessários.

"Você ainda não conseguiu criar, em muitos desses locais, a ideia de que aquele território é uma nação, que esses recursos não deveriam ficar somente vinculados a um grupo específico, mas sim pensando em toda a população", refletiu. "Para isso, não é necessário somente manter a riqueza, é necessário desenvolver essa riqueza […], fazer dessa riqueza uma transformação tecnológica", acrescentou Fingermann.

O racismo é outro componente prejudicial: "Há ainda um certo racismo estrutural, que faz com que muitos desses países não consigam ter igualdade nas negociações. Esse é um aspecto que, do meu ponto de vista, ainda prejudica muito os países africanos", frisou a especialista.
Para mudar essa realidade de apenas vender commodities e bens finitos, alguns governos africanos têm buscado diversificar sua economia e combater o tráfico internacional de minérios, mas o caminho ainda é longo e tortuoso, lamentou a professora.

"É difícil a gente saber como é que isso pode ser resolvido, mas, do meu ponto de vista, enquanto não tiver o interesse, não somente local, mas também o interesse, vamos dizer, global, para que essas questões sejam resolvidas tem que mudar um pouco a estrutura do sistema internacional, a estrutura do comércio internacional como um todo teria que ser repensada, não acho que isso seria algo que a gente possa vislumbrar uma solução de curto prazo", concluiu.

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