Panorama internacional

Racismo nas Américas e na UE impulsiona cada vez mais afrodescendentes a escolherem África como lar

Seja para buscar referências históricas, resgatar a identidade e a ancestralidade ou reconstruir a vida após a escravidão, milhares de descendentes de africanos e ex-escravizados passaram a fazer o movimento contrário dos navios negreiros rumo ao continente africano, após o fim da escravidão nas Américas.
Sputnik
O fenômeno teve seu ápice no final do século XIX, mas, recentemente, pesquisas vêm apontando um movimento similar de afrodescendentes contemporâneos de diferentes países que estão elegendo o continente de seus ancestrais como novo lar.
Nos EUA, o movimento já tem nome: Blaxit ("saída negra", em tradução livre do inglês). O conceito envolve a repatriação de afro-americanos para países africanos. No Brasil, o fenômeno é ainda tímido, mas vem chamando a atenção de estudiosos.
Para abordar o tema, a Sputnik Brasil ouviu no podcast Mundioka os especialistas Patrícia Teixeira Santos, professora de história da África da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora do Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Deli, na Índia, e Vinícius Venancio, professor substituto de antropologia na Universidade Federal de Goiás (UFG).
O desejo de viver uma vida com menos violências: esse é o principal motor identificado pelos estudiosos que tem levado cada vez mais jovens afrodescendentes a migrar para o continente africano.
A historiadora lembra que, no século XIX, houve ainda iniciativas de compra de territórios na África para que libertados da escravidão não reivindicassem a cidadania:

"É o caso, por exemplo, da compra de território que vai dar origem à Libéria e a Serra Leoa, para o qual diversas famílias, comunidades religiosas afro-estadunidenses promovem movimentos de retorno, de estabelecimento, de formação de comunidades, uma vez que não eram considerados partícipes ou parte desses novos Estados, especialmente nos Estados Unidos da América."

O segundo momento, acrescentou Santos, é impulsionado por intensa construção política da União Africana, de intelectuais afro-americanos e entidades negras da América Latina de luta antirracista: "Essa solidariedade afro-americana é construída mais recentemente", explicou ela.
Para ambos os entrevistados, o racismo é a principal explicação para compreender esse movimento, e a maior parcela desse público migrante é composta por jovens.

"Esses jovens passam a ter uma crise existencial, emocional, de que nunca serão o bastante, de que nunca serão integrados […] são jovens adultos muito produtivos", comentou a professora.

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Países africanos, como o Benin, têm capitalizado essa tendência e estimulado a migração de jovens talentos, concedendo cidadania beninense para todos os afrodescendentes do mundo.
A África do Sul também tem sido um dos principais destinos dos novos cidadãos afrodescendentes, citaram os historiadores.
O esquema de trabalho remoto, que se intensificou e se consolidou no período pandêmico, é outro fator que favorece os fluxos migratórios e possibilita até que a mudança gere para muitos uma ascensão social, negada no país de origem:

"Facilita hoje em dia esse universo digital do comércio, e-commerce e tudo mais. Isso facilita que essas pessoas possam morar em qualquer lugar do mundo."

Entretanto, a professora lamenta que o processo recente migratório tenha como principal estímulo o desconforto emocional e a falta de sentimento de pertencimento no local de nascença.
O sentimento de pertencimento, destacou, vai englobar várias nuances, como expressões estéticas que valorizam e empoderam indivíduos desumanizados por padrões de beleza racistas.

"Nesse sentido, as pessoas não estão tendo ilusão econômica com relação à África, mas elas querem construir algo que o racismo desagrega, que são possibilidades de sentimento de pertencimento", destacou a historiadora.

Venancio pontuou que a raça é um fenômeno social, não biológico, e ponderou que, especialmente com as crises econômicas dos últimos anos no mundo, as violências contra minorias locais — entre elas negros nos EUA e na Europa — têm sido cada vez mais frequentes e impulsionado essas migrações:

"A gente vai ter diferentes reações a esses imigrantes, mais especificamente os imigrantes do que a gente vai considerar essa África negra, que seria uma África ao sul do Saara. [Eles] vão estar sofrendo com algumas formas de violência muito específicas, seja violência para não conseguir trabalho, não conseguir moradia ou, mesmo, assassinatos, como a gente viu no final de outubro um jovem cabo-verdiano sendo assassinado pela polícia portuguesa", citou ele.

Por outro lado, a chegada dos estrangeiros também gera tensões nesse "retorno" à África, destacaram os entrevistados. Um dos motivos envolve questões culturais e de classe em que os recém-chegados acabam impondo uma "gentrificação" dos espaços que ocupam no novo território pelo poder financeiro.

"Eles vão transitar ali como os outros nacionais, sem grandes importunações, mas pelo fato de eles terem vivido a vida inteira na Europa, vai gerar um marcador muito grande", refletiu o antropólogo.

A ideia de raça acaba permanecendo, ressaltou ele, que também integra os Grupos de Pesquisa de Etnologia em Contextos Africanos e de Etnografia das Circulações e Dinâmicas Migratórias do Laboratório de Estudos Afrocentrados em Relações Internacionais e o Coletivo Rosa Parks.
"Nesse jogo de tentar produzir futuros menos violentos para si mesmo, você [o migrante] acaba produzindo para o outro [local] essa lógica de dominação: eles são os selvagens, os incivilizados", acrescentou o professor.

"O racismo é um sistema de dominação tão violento que as pessoas negras acabam introjetando essa prática e reproduzindo-a entre elas. É justamente isso que vai acontecendo em diferentes setores", completou.

Brasil

Embora não tão intenso quanto o movimento Blaxit, no Brasil, cada vez mais jovens têm buscado suas origens africanas, afirmaram os especialistas.
A professora citou conhecidos que foram morar em países africanos para fugir da violência racial brasileira, mas que se depararam com outras histórias de violência, de crise e de segregação. Ainda assim, optaram por permanecer na nova morada, por verem pessoas negras em todas as escalas sociais, diferentemente da realidade brasileira:

"São pessoas que querem andar na rua sem serem incomodadas, que querem ser realmente vistas. E apesar da imensa violência e das dificuldades que existem em muitos países africanos, o fato de você ver pessoas negras em todas as classes sociais é algo que as encanta", explicou. "Essa juventude já é uma classe média, faz universidade, circula, tem conhecimento de línguas estrangeiras ou, mesmo que não tenha, é uma juventude muito antenada, que tem uma dimensão de circular no mundo e que busca na África algo que é altamente compreensível."

Nos últimos anos, os testes genéticos para indicar a origem ancestral de afrodescendentes "explodiram", segundo Venancio.
Ele defendeu que políticas públicas antirracistas e de equidade racial fazem a diferença para que afro-brasileiros tenham um desejo muito maior de visitar e voltar, e não de se mudar, como ocorre com jovens norte-americanos e europeus.

"Acho que existe um elemento também no Brasil, nos últimos anos, que são as políticas, seja as políticas públicas, seja os movimentos sociais, demandando reconhecimento dentro do Brasil para que as populações negras se sintam confortáveis no nosso país", ponderou o professor.

Ele deu como exemplo programas como os Caminhos Amefricanos: Programa de Intercâmbios Sul-Sul, do governo federal brasileiro, que incentiva a socialização de conhecimentos, experiências para a promoção da igualdade racial e o enfrentamento do racismo no Brasil. O intercâmbio visa contribuir para formar alunos e docentes sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana.

"Estou acompanhando um pouco alguns jovens que foram para Cabo Verde e estão profundamente encantados com o que eles estão encontrando lá e as similaridades entre os dois países", contou.

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