Análise: gestão Trump marca agravamento da disputa com a China, e tempo joga contra núcleo ocidental
18:14, 23 de janeiro 2025
Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas apontam que as ameaças do novo presidente dos EUA à China apontam para o acirramento da guerra comercial entre os países, que reflete uma disputa pela liderança global, econômica, política e tecnológica.
SputnikO novo presidente dos EUA, Donald Trump,
tomou posse nesta semana com um discurso fortemente protecionista e expansionista, que
tinha como principais alvos o BRICS e a China.
O país asiático incomoda Trump por promover um tipo de relação entre Estados baseada na cooperação, visando benefícios e prosperidade mútuos, apontada como bem diferente da abordagem exploratória e colonizadora de Washington. Ademais, a influência chinesa se expandiu significativamente nas Américas Latina e do Sul, região vista pelos EUA como sua zona de influência imediata.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam se o novo mandato de Trump será marcado pelo aprofundamento da disputa comercial entre EUA e China e que impactos isso poderá ter na geopolítica e na economia global.
Renato Ungaretti, doutorando em estudos estratégicos e especialista residente sênior na Observa China, argumenta que a disputa comercial entre EUA e China não é nova: ela se iniciou em 2017, no primeiro mandato de Trump, e foi continuada no governo de Joe Biden, e não abrange apenas o comércio.
"A gente percebe hoje um processo, que vem se arrastando, de uma disputa que é comercial, tecnológica, sistêmica. Isso deve se aprofundar nos próximos anos, com o novo governo [dos EUA]. Acho que [isso] indicaria com certeza e seria reflexo dessas disputas que não são somente comerciais, mas também são por liderança tecnológica, por liderança produtiva em novos setores e, em última instância, pela liderança do próprio sistema internacional como um todo", afirma.
Tradicionalmente um país guiado pela diplomacia e pelo não intervencionismo, a China vem
respondendo às ameaças de Trump em tom assertivo. A chancelaria de Pequim já
saiu em defesa do governo panamenho diante das ameaças de Washington de ocupar o canal do Panamá, reafirmou que a China
"sempre defenderá seus interesses nacionais" e destacou que pretende ampliar a cooperação econômica com parceiros do BRICS, apesar das ameaças de taxação dos EUA.
Segundo Ungaretti, essa postura assertiva da China é uma das marcas do governo do presidente chinês, Xi Jinping.
"Desde o início do governo Xi Jinping, a China tem uma transição importante nas suas estratégias de inserção internacional. Por muitas décadas, desde o Deng Xiaoping, a China preferia uma abordagem mais low profile, um perfil de inserção internacional mais cauteloso e mais discreto. Isso se alterou profundamente com o governo Xi Jinping. Então a gente vê a China já tendo uma postura mais assertiva, e acho que não surpreende essa maior defesa e essa rejeição com mais veemência e com mais contundência por parte da diplomacia chinesa."
Entretanto, ele descarta uma ação militar da China em resposta aos EUA em uma eventual ocupação do canal do Panamá. Isso porque ele considera improvável que Trump concretize a ameaça de ocupar a passagem, já que um dos motivos para a abertura da rota foi justamente dinamizar o comércio entre EUA e China.
"Eu vejo [a ameaça ao canal] como uma forma de mobilizar o público interno [dos EUA] em relação a determinadas temáticas, e essa temática do comércio e da proteção de empregos, ao lado da imigração, é um tema bastante explorado por Trump em relação ao seu público interno, então não vejo grandes possibilidades de isso se concretizar", avalia.
9 de dezembro 2024, 19:14
Ele acrescenta que uma resposta de Pequim também não seria militar e que o mais provável é que a China buscaria alternativas econômicas, comerciais e de governança para superar possíveis interrupções no comércio decorrentes de uma eventual ocupação militar dos EUA no canal do Panamá.
Segundo Ungaretti, "é muito importante lembrar que EUA e China ainda nutrem uma interdependência comercial, econômica e financeira bastante grande, parcela relevante do comércio, inclusive, que trafega pelo canal do Panamá".
"Ele [o canal] é destinado ao comércio entre China e EUA, o comércio em uma rota Nova York-Xangai, então não seria do interesse dos EUA, dos negócios, das indústrias americanas também, ter uma interrupção nesse fluxo de comércio via uma ação mais drástica no canal do Panamá."
Diego Pautasso, doutor em relações internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor do livro "A China e a Nova Rota da Seda", afirma que o acirramento das políticas antichinesas dos EUA tem como raiz a política externa chamada "pivô asiático", implementada na gestão de Barack Obama (2009–2017), que reorientou as prioridades de Washington para a Ásia visando ampliar acordos com países da região para conter e limitar a influência da China e sua Iniciativa Cinturão e Rota.
"De lá para cá, a política de Washington tem escalado no sentido da contenção da China. Ou seja, a tendência [atual] é tanto de aprofundamento da guerra comercial quanto de cerco militar contra a China", afirma o especialista.
Para Pautasso, a possibilidade de Washington converter a narrativa expansionista de Trump em escalada militar e ocupação territorial é real.
"Para além da forma midiatizada de fazer política, inflando seu eleitor, o fato é que a guerra e a projeção de poder estão no DNA dos EUA. Sua história é atravessada por intervenções de vários tipos em todos os quadrantes. Em uma situação de esgarçamento do tecido social interno e de percepção de progressiva perda de poder relativo, a postura dos EUA tem sido (e tenderá a ser mais) errática", afirma.
Porém, segundo ele, em uma eventual tomada de controle do canal pelos EUA, a China não teria condição nem necessidade de intervir.
"Certamente as respostas [de Pequim] seriam duras e indiretas, pois a economia estadunidense é profundamente entrelaçada à chinesa", observa.
Que impactos o embate comercial EUA-China pode ter na economia global?
China e EUA são hoje as maiores economias do mundo em disputa de liderança. Nesse contexto, Ungaretti afirma que o acirramento da disputa comercial entre os países pode impactar no crescimento global de curto e médio prazo, além de afetar cadeias de suprimento de indústrias importantes.
"A gente tem experienciado um movimento, que também não é de hoje, de desglobalização, de reterritorialização de indústrias. Isso também foi algo buscado pelo governo Biden e acaba gerando distorções, medidas protecionistas que prejudicam países em desenvolvimento. Inclusive, no comércio da América do Sul com a União Europeia, a gente teve todo esse debate ano passado, sobre esse protecionismo ambiental. Então há hoje no comércio internacional uma série de desafios aos países em desenvolvimento, e isso também impacta o crescimento da economia global como um todo, e as possibilidades de crescimento e desenvolvimento dos países mais pobres."
Pautasso, por sua vez, enfatiza que o declínio do antigo núcleo do sistema internacional, formado por EUA e Europa Ocidental, é visível em todos os âmbitos, da economia ao comércio, passando pela demografia e até mesmo pelo peso geopolítico.
"Cada vez mais o Sul Global tem uma existência e dinâmica próprias, enquanto aumentam seu peso relativo. O tempo joga contra o núcleo ocidental, e suas ações [do Sul Global] têm servido para acelerar respostas anti-hegemônicas em vez de consolidar sua primazia. Nesse sentido, o governo Trump, com o que já foi sinalizado em discursos e primeiros decretos, tem tudo para recrudescer os conflitos internacionais e precipitar o isolamento dos EUA e seus aliados", conclui o especialista.
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