O presidente dos EUA, Donald Trump, usou uma réplica da taça da Copa do Mundo para lembrar seus vizinhos Canadá e México do compromisso que assumiram com os EUA para sediar o megaevento da FIFA em junho de 2026.
Após repetidas ameaças comerciais feitas contra Canadá e México, Donald Trump estipulou o prazo de um mês para que os seus vizinhos adotem suas exigências e evitem a imposição de pesadas tarifas alfandegárias.
Durante a assinatura de decreto sobre o caso, o escritório de Donald Trump foi decorado com uma réplica da famosa taça da Copa do Mundo. A réplica do troféu foi interpretada como um sinal dos EUA aos seus vizinhos de que a realização conjunta da Copa do Mundo pode estar em risco.
O presidente dos EUA, Donald Trump, entrega ordem executiva sobre Canadá e México ao secretário da equipe da Casa Branca, Will Scharf, no Salão Oval da Casa Branca, com a réplica da taça da Copa do Mundo ao fundo, em 4 de fevereiro de 2025, em Washington, EUA
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Apesar da iniciativa conjunta, os EUA receberão 78 dos 104 jogos do evento e poderiam organizar o torneio sozinhos, disseram especialistas em sociologia e geopolítica esportiva ouvidos pela Sputnik Brasil.
A realização da candidatura conjunta com México e Canadá foi um instrumento usado pelos EUA para reduzir a oposição internacional à sua candidatura, explicou o pós-doutor em Sociologia do Esporte pela Universidade do Porto e professor associado da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) Marco Bettini.
"Os EUA copiaram o modelo de sede conjunta proposto por Espanha, Portugal e Marrocos, porque precisavam angariar outros elementos à sua candidatura e afastar a resistência antiamericana na comunidade mundial", disse Bettini à Sputnik Brasil. "Incluir o México e o Canadá foi uma jogada de mestre, já que eles não sofrem oposição por parte dos outros países."
Segundo Bettini, os EUA contam com o auxílio de seus vizinhos para empreender o chamado "sport washing" ("lavagem esportiva"). A prática se refere à utilização de grandes eventos esportivos para melhorar a imagem do país no exterior, ofuscando a sua atuação internacional controversa.
O presidente da FIFA, Gianni Infantino, à esquerda, fala com o presidente Donald Trump enquanto caminham no gramado sul da Casa Branca, em setembro de 2019, Washington, EUA (foto de arquivo)
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A estrutura necessária para receber a Copa, que agora conta com 48 equipes, ficou tão complexa, que poucos países teriam a capacidade de absorver o evento sozinhos, disse o doutor em Ciências do Esporte e Motricidade Humana pela Université de Paris-11, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), César Teixeira Castilho.
"O novo formato facilita a candidatura de países que não estejam com a infraestrutura pronta. Os gastos para receber esses eventos são muito elevados, e existe uma diminuição no número de cidades candidatas", disse Castilho à Sputnik Brasil. "A candidatura conjunta também diminui a pressão sobre a FIFA para escolher somente um país-sede."
Por outro lado, a realização de eventos em vários países gera aumento do custo de transporte para o torcedor, "o que elitiza ainda mais esse tipo de megaevento", considerou Bettini.
Troféu exibido no gramado antes da partida final da Copa do Mundo de futebol entre Argentina e França no Estádio Lusail em Lusail, Catar, em 18 de dezembro de 2022 (foto de arquivo)
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Do ponto de vista de infraestrutura, os EUA teriam condições de receber o evento sem o apoio de Canadá e México. Na estrutura atual, a Copa será celebrada sobretudo nos EUA, que também sediará a partida final do torneio, na cidade de Nova York.
Tapetão dos EUA contra o BRICS
A escolha dos EUA como sede da Copa vem após década na qual países do BRICS dominaram a recepção de megaeventos. O ciclo iniciado pela África do Sul, que recebeu a Copa do Mundo de 2010, foi seguido pelo Brasil, com a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.
A Rússia, por sua vez, recebeu não só a Copa do Mundo de 2018, mas também os Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi, em 2014. Já a capital chinesa Pequim foi a primeira cidade da história a receber os Jogos Olímpicos de Verão, em 2008, e de Inverno, em 2022.
"Ainda devemos nos lembrar da Índia como anfitriã dos Jogos da Commonwealth de 2010 que, apesar de ser pouco conhecido no Brasil, é o terceiro megaevento mais relevante da atualidade", notou Bettini. "Essa sequência de protagonismo de países do BRICS fez os EUA reagirem e voltarem a atuar como país anfitrião de grandes eventos", disse Bettini.
De acordo com o professor da UFMG Castilho, após repetidas candidaturas malsucedidas dos EUA para receberem eventos, a Justiça norte-americana fez uma investida legal contra a FIFA, levando à queda de seu então diretor, Joseph Blatter.
Talismãs da Olimpíada na cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos em Sochi, Rússia, 23 de fevereiro de 2014
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/ "As denúncias que levaram à queda de Blatter foram feitas a partir do sistema judiciário dos EUA, que alegaram competência, afirmando que operações financeiras teriam sido feitas em instituições norte-americanas", lembrou Castilho. "Como os EUA não têm o futebol jogado, a técnica ou uma seleção de destaque, eles sempre tratam de futebol através da lógica política."
A investida judicial contra Blatter acusou a FIFA de ter corrompido o seu processo de seleção de países-sede, em particular durante a escolha do Catar como anfitrião da Copa do Mundo de 2022.
Então presidente da FIFA, Joseph Blatter, anuncia o Catar como sede da Copa do Mundo de 2022, durante cerimônia em Zurique, Suíça, em 2 de dezembro de 2010 (foto de arquivo)
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"Mesmo assim, não podemos esquecer que, quando os EUA exploram a questão do futebol, é porque têm objetivos globais, e não locais, já que o futebol por lá não é tão destacado", disse Castilho.
De fato, o futebol não está entre os esportes mais apreciados pelos norte-americanos. O futebol americano, tanto em sua liga profissional NFL quanto no modelo universitário, domina a audiência esportiva do país. O basquete e o beisebol também se destacam, com o futebol feminino e masculino amargando o quarto lugar.
Jogo de futebol americano da liga profissional NFL entre o Miami Dolphins e o Houston Texas, em 15 de dezembro de 2024, em Houston, Texas, EUA.
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"Os EUA querem desenvolver o futebol nacional e vão realizar o seu primeiro campeonato de clubes propriamente dito neste ano, aproveitando a presença do [jogador argentino Lionel] Messi no país", disse Bettini. "Mas, do ponto de vista de bilheteria, os EUA não precisam de Canadá e México para encher os estádios durante a Copa."
O jogador argentino, Lionel Messi, durante partida amistosa do seu atual time norte-americano, Inter Miami CF, em Hong Kong, em fevereiro de 2024
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Após a investida legal contra os dirigentes da FIFA, os EUA emplacam não só a sua candidatura a receber a Copa do Mundo, mas também a cidade de Los Angeles como sede dos próximos Jogos Olímpicos de Verão de 2028.
Retorno à diplomacia esportiva
A volta dos EUA aos megaeventos ocorre após o hiato gerado pelo ataque às torres gêmeas, em 2001. Por considerações de segurança, os EUA passaram a limitar a entrada de estrangeiros em seu território e passaram a considerar megaeventos esportivos empreendimentos arriscados.
Além disso, a queda na qualidade da infraestrutura de cidades norte-americanas fez com que fossem preteridas em processos seletivos. A cidade de Chicago, por exemplo, foi considerada menos apta a receber megaeventos do que o Rio de Janeiro, durante a seleção para a cidade-sede das Olimpíadas de Verão de 2016, lembrou Bettini.
Arquibancadas do circuito de canoagem slalom preparadas para os Jogos Olímpicos de 2016, sediados no Rio de Janeiro, Brasil
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"Outro obstáculo é a crescente oposição da opinião pública à realização de megaeventos. Hoje sabemos que os gastos são realmente muito altos, e o efeito positivo nas economias locais é momentâneo", disse Bettini. "Tentativas de países como Suécia, Noruega, EUA e Bélgica a se candidatarem a grandes eventos foram rechaçadas pela população do próprio país."
Vistos para torcedores
Ainda durante seu primeiro mandato, Trump prometeu à FIFA que garantiria que todos os atletas, funcionários e torcedores interessados em acompanhar o torneio teriam acesso aos EUA "sem discriminação".
"Uma das exigências básicas da FIFA para os países-sede é que a entrada seja livre", disse Castilho. "Claro que o país pode exigir que o torcedor mostre seu ingresso, por exemplo. Mas é necessário garantir que os fãs possam comparecer ao evento."
Faltando pouco menos de 500 dias para o início da Copa de 2026, cidadãos de países como Colômbia, Peru, Turquia, Honduras, Emirados Árabes Unidos e Índia podem já não ter tempo hábil para receber seus vistos, de acordo com estimativas do governo norte-americano sobre o tempo de espera para a emissão de vistos de turismo.
A emissão de vistos para latino-americanos pode ficar ainda mais demorada, considerando a inclusão de cartéis de drogas regionais na lista de organizações terroristas dos EUA. De acordo com a lei interna do país, os EUA não devem admitir a entrada de pessoas suspeitas de fazerem parte de organizações "designadas como terroristas".
Os cidadãos colombianos se encontram em situação particularmente difícil. Após disputa com o presidente colombiano Gustavo Petro, Trump suspendeu temporariamente a emissão de vistos em seu consulado em Bogotá, que agora demanda 700 dias para emitir vistos de turista.
O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, discursa para apoiadores durante um comício por suas reformas propostas na praça Bolívar, em Bogotá, Colômbia, 19 de setembro de 2024
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Trump ainda poderá retomar sua prática de emitir proibição de viagem a cidadãos de países inteiros, como fez com Irã, Somália e Sudão durante seu primeiro mandato. Além disso, o centro de emissão de vistos de Moscou, na Rússia, também se encontra fechado, o que dificultará a presença de torcedores russos no torneio.
"Sediar a Copa do Mundo é desafiador, já que a FIFA exige que o país modifique suas leis internas para poder receber o evento. Na política de vistos, é a mesma coisa: o país precisa modificar suas leis para garantir o acesso amplo aos organizadores, atletas e torcedores", explicou Castilho.
Apesar de a FIFA conseguir manter a sua autoridade durante negociações com países-sede como o Brasil e a África do Sul, não está claro se conseguirá frear Trump, caso os EUA queiram desonrar alguns compromissos assumidos com a organização, considerou Castilho.
O presidente da FIFA, Gianni Infantino, fala com o presidente dos EUA, Donald Trump, no gramado sul da Casa Branca, em 9 de setembro de 2019, Washington, EUA (foto de arquivo)
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Ambos os especialistas acreditam que Trump não abrirá mão da realização da Copa do Mundo. No entanto, ele poderá reduzir o acesso de estrangeiros ao evento e, em um cenário mais drástico, optar por receber o evento sem o apoio de seus vizinhos México e Canadá.
"Após termos realizados as Olimpíadas de Tóquio em meio a uma pandemia terrível, pela primeira vez rompendo o ciclo olímpico de quatro anos, vemos que realmente a ideia é realizar esses eventos a qualquer custo, a despeito da seriedade dos eventos ocorrendo no mundo. A ideia é mostrar que o show tem que continuar", concluiu Bettini.