Resistência palestina: objetivos comuns, estratégias diferentes
Ao longo das últimas décadas, diferentes grupos de resistência palestinos surgiram como resposta à ocupação israelense, cada um com estratégias, ideologias e métodos de atuação singulares.
SputnikDesde organizações mais tradicionais, como o Fatah, até movimentos armados, como o Hamas e a Jihad Islâmica Palestina, esses grupos refletem uma pluralidade que influencia não apenas a dinâmica local, como também as relações regionais e internacionais.
Enquanto alguns defendem negociações diplomáticas, outros priorizam a resistência armada, gerando debates complexos sobre eficácia e legitimidade e as consequências do
conflito israelo-palestino.
Para tentar entender essas nuances, o podcast
Mundioka, da Sputnik Brasil, ouviu especialistas no assunto, que esmiuçaram a diversidade de perspectivas dentro da
luta palestina por autodeterminação.
O historiador Sayid Marcos Tenório, especialista em relações internacionais, destacou que embora o Hamas seja a maior força da resistência palestina, há grupos mais antigos de grande relevância, como a Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), que surgiu nos anos 1970, a Frente Democrática para a Libertação da Palestina (FDLP) e o mais recente, a Jihad Islâmica Palestina (que contam com um braço armado, as Brigadas Al-Quds), fundada em 1981.
"O Hamas apareceu para o público global em dezembro de 1987, no calor da Primeira Intifada [1987–1993], mas ele tem uma atuação política, social, na Palestina que remonta ao início dos anos 1970, quando foi criada a Irmandade Muçulmana na Palestina, na Faixa de Gaza, por jovens estudantes que estudavam no Egito, tiveram contato com essa organização política egípcia [a Irmandade Muçulmana] e fizeram essa experiência", explicou ele.
Ele esclareceu que dentro da resistência palestina há ainda vários grupos que atuam de maneira coordenada em Gaza e na Cisjordânia em menor escala.
O Fatah, segundo ele, foi o grupo político mais importante do enfrentamento à ocupação israelense. Criado em 1959 por Yasser Arafat, com outros palestinos envolvidos na luta pela libertação da Palestina da ocupação sionista, o partido passou a ter grande expressão na diáspora palestina em todo o mundo.
"Com o passar do tempo e com a visão de Arafat de querer desenvolver ações mais no campo diplomático, que teve como auge a assinatura dos Acordos de Oslo [1993–1995], com o Estado terrorista de Israel, o partido Fatah perdeu esse elã revolucionário de resistência", opinou o historiador.
A guinada de 180 graus transformou o movimento revolucionário de resistência, que empreendeu ações armadas contra a ocupação, em uma força colaboracionista com a ocupação na Cisjordânia, no entendimento de Tenório.
Pesquisador de Oriente Médio e mestre em ciência política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o jornalista Marcelo Bamonte avaliou que a principal diferença entre a resistência armada promovida pelo Hamas e a resistência popular adotada em cidades como Hebrom e Nablus, na Cisjordânia, é principalmente tática:
"Elas dialogam muito entre si, até porque o Hamas não tem sua atuação restrita ao território de Gaza, tendo também certa influência na Cisjordânia […]. Mas a principal diferença é a questão da efetividade, do que traz dano para a ocupação israelense, do que traz de alteração tática, estratégica na operação em terra, na operação de bombardeios, enfim, operações aéreas", afirmou.
Ele citou como um dos grandes feitos do Hamas a retirada total da ocupação israelense da Faixa de Gaza em 2005. A vitória nas eleições do movimento em 2006 fez com que o partido priorizasse investimentos em projetos sociais, na educação islâmica, na alimentação, na saúde:
"Se não houvesse o Hamas, muito provavelmente já teria havido uma capitulação muito forte no sentido da resistência. Mas também há aquele misto de emoções, porque uma parte da população palestina também está cansada desse conflito, de ser retirada das residências, de ter que ficar transitando pela Faixa com o risco enorme de morrer — porque hoje é uma zona de matança indiscriminada."
Apesar dos objetivos comuns, têm sido muitas e complexas as desavenças entre Fatah e Hamas, pontuaram os entrevistados. O Fatah se recusa a fazer uma coalizão com o Hamas há muitos anos e foi a principal resistência ao grupo após as eleições de 2006.
"[…] o Fatah tem forças que lutam até contra as próprias forças de resistência islâmica, da Jihad islâmica, do Hamas, então a participação deles hoje está em evitar a diplomacia com a principal força de resistência da Palestina, que é o Hamas, e realizar acordos temporários com a ocupação israelense, visando um afrouxamento, um respiro político", comentou Bamonte.
O jornalista endossou a afirmação do colega historiador de que essas atitudes provocaram desconfiança e revolta em parte da população palestina:
"Porque ao longo da história, desde 2006, o Fatah tem um histórico muito mais de capitulação, de tentativa de coalizão, mais com Israel do que com as forças de resistência que tentam libertar o território palestino."
Por ser a maior e mais expressiva frente de resistência, o Hamas é também "o que sofre o maior processo de desconstrução, de difamação, de fake news", destacou Tenório.
Bamonte acrescentou que essa proliferação de notícias falsas e narrativas pejorativas a respeito do Hamas é pesadamente financiada e estimulada pelos EUA e por Israel, que visam reduzir o Hamas e acabar principalmente com sua ala militar, que são as Brigadas Al-Qassam. O objetivo final é transformar o território da Faixa de Gaza em um setor de exploração imobiliária:
"Para trazer um retorno financeiro, porque eles gastam muito dinheiro com essa guerra. Então eles também esperam recuperar um pouco desse dinheiro com essa limpeza étnica do povo. Só que o povo se recusa a sair. Esse é o principal entrave para os Estados Unidos e para Israel propriamente", concluiu o jornalista.
Vice-presidente do Instituto Brasil-Palestina (Ibraspal), Tenório é também autor dos livros "Palestina, do mito da terra prometida à terra da resistência" e "Imalês: fragmentos da presença de muçulmanos nas revoltas contra a escravidão no Brasil".
Ele contou que está finalizando um trabalho sobre o Hamas, em que aprofunda aspectos da existência do movimento. Por meio de entrevistas e estudos, ele concluiu que o Hamas não tem como princípio o ataque aos judeus por serem judeus.
A defesa do movimento de resistência é de um Estado único, afirmou, em que judeus, muçulmanos, cristãos e pessoas de outras religiões ou sem religião possam conviver em paz, de maneira democrática, com o princípio de cada cidadão, um voto.
O historiador lembrou que, até 1948, os praticantes das três grandes religiões monoteístas viveram tranquila e pacificamente na Palestina, em colaboração.
"A igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, até hoje tem como guardiã uma família de muçulmanos, de geração a geração. Esse aspecto religioso de que o Hamas quer destruir o Estado de Israel, quer impedir a existência do Estado de Israel, quer matar os judeus, isso é uma coisa abominável, não tem nada a ver", garantiu. "Não tem nenhum escrito oficial nem tem nenhuma declaração de dirigente político do Hamas que leve a essa questão."
As estratégias envolvendo violência, na avaliação de Tenório, são características de um exército de libertação guerrilheiro, como de qualquer exército em guerra:
"Ele vai ter que explodir mesmo as tropas, tanque de guerra, porque, do outro lado, Israel só tem a preponderância militar através da sua força aérea, quando derrama aquela infinidade de bombas e, em um único ataque, mata centenas ou milhares de pessoas, indistintamente", exemplificou. "E hoje, em um ano e meio, quase 53 mil pessoas foram identificadas como assassinadas pelos bombardeios, a maioria crianças e mulheres."
Ainda segundo o pesquisador, outro aspecto importante a ressaltar na resistência palestina é que as mulheres são as verdadeiras guerreiras no combate desigual contra a violência israelense, que abrange desde ações culturais e humanitárias a ações políticas de denúncia.
"Você vê a quantidade de mulheres que estão postando conteúdo nas redes sociais de denúncia da ocupação […]. No dia a dia, são as mulheres palestinas que estão enfrentando, junto com seus companheiros, seus maridos, seus irmãos, seus filhos, o inimigo na Cisjordânia e em Gaza […]. Se as mulheres não tomassem parte nessa luta de resistência, penso que ela não teria o alcance que tem hoje", disse ele.
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