A seguir, a íntegra da entrevista.
Sputnik: Como você analisa essa aproximação da China com os países da América Latina?
Mário Russo: Os chineses são muito pragmáticos. Em termos de diplomacia, eles não costumam dar o chamado “ponto sem nó”. Nos últimos anos, desde a formação do grupo BRICS como um bloco econômico, os chineses têm dado uma atenção cada vez maior à América Latina – ao Brasil especialmente –, não só do ponto de vista diplomático, mas principalmente na agenda econômica. Isso tem sido feito com a realização de várias missões. Lembremos que no primeiro mandato da Presidenta Dilma Rousseff ela esteve na China assinando vários acordos de cooperação econômica e de atração de investimentos.
O fato é que Li Keqiang chega nesta terça-feira acenando com cerca de US$ 53,3 bilhões em investimentos só no Brasil, e isso é um montante bastante significativo, principalmente se levarmos em consideração que recentemente a China se comprometeu a investir em toda a América Latina cerca de US$ 250 bilhões nos próximos 10 anos. O que significa isso? Há duas vertentes: a primeira vertente é econômica, e a segunda é geopolítica. Eu vou começar pela segunda, que é a geopolítica, porque a América Latina de forma geral, com algumas raras exceções, ao longo dos últimos anos vem se distanciando da agenda de comprometimento com os Estados Unidos. Nós temos casos notórios comprovados facilmente, como nos casos de Venezuela e Peru, e em parte o Equador, a Bolívia e até mesmo a Argentina. Há duas semanas, a Presidente Cristina Kirchner fez uma visita a Moscou, onde foi recebida pelo Presidente Vladimir Putin, uma semana depois de ter terminado a Cúpula das Américas patrocinada pelos EUA, no Panamá, justamente com a intenção do Governo norte-americano de uma reaproximação com os países das Américas Central e do Sul.
E por que isso? Porque ao longo dos anos houve esse distanciamento, por diversas razões, políticas, econômicas, nem digo culturais, e a China está atenta a isso. E essa visita de Li Keqiang comprova isso, quer dizer, a grande vedete que é esperada dessa visita é o investimento em ferrovias. Na verdade é um complexo de infraestrutura e logística, portos, estradas e ferrovias. Vale lembrar que os chineses já têm novos projetos nesse sentido, incluindo uma linha ferroviária ligando Vitória, no Espírito Santo, e o Rio de Janeiro, a três ferrovias em Mato Grosso, para compor a ligação entre o Atlântico e as margens peruanas do Pacífico. Qual o interesse chinês em patrocinar a ligação da chamada Ferrovia Transoceânica, que é um projeto de 2008 que até hoje não saiu do papel? É sobretudo viabilizar o escoamento de grãos e outros produtos agrícolas brasileiros para a China. Quando falamos em produtos agrícolas, vale lembrar que a Ásia de modo geral, e não só a China, na última década tem sido uma grande importadora de matérias-primas, inclusive de minério de ferro. A Vale, que é a maior exportadora brasileira de minério de ferro, e uma das três maiores do mundo, tem inclusive grandes cargueiros chamados Panamax, cargueiros de milhares e milhares de toneladas, que podem levar muito minério de ferro, e que fariam hoje uma verdadeira volta ao mundo para chegar aos portos chineses e entregar esse minério.
Tudo isso tem uma agenda econômica e uma agenda geopolítica. A China está decidida a abocanhar uma parte dessa América Latina que tem sido sistematicamente ignorada pelos EUA ao longo das últimas décadas, por razões diversas. E ela vem com um cacife alto. Uma das suas grandes vantagens, inclusive, é que a China vem utilizando já há algum tempo as gigantescas reservas que possui – US$ 4 trilhões –, que são aplicadas através de fundos soberanos, uma coisa que o nosso Banco Central não faz, ou seja, utilizar reservas como instrumento de investimentos. A China tem feito isso de forma rotineira, gradativa, e não só no Brasil, mas para a América Latina.
A maior população da face da Terra tem uma demanda expressiva, mantida até hoje, apesar de toda a crise econômica de 2008, numa locomotiva de crescimento que se mantém, já chegou a 10% ao ano e nos últimos anos está na faixa de 7% a 8%, o que é um marco. Se observarmos as economias dos EUA e de todos os países da Europa, e a nossa própria economia brasileira, vemos que estão engatinhando. O ritmo de crescimento da China exige importações maciças de matéria-prima – minério, produtos de agropecuária – e a China vinha fazendo isso na África. Inclusive em parcerias, não só do Governo como das empresas privadas chinesas. Os chineses viviam comprando e fazendo acordos com diversos governos de países africanos para assegurar os alimentos que garantem o nível de segurança alimentar para a China.
Eu acho que têm muito a ganhar tanto o Brasil quanto a China, embora no ano passado a balança comercial entre os dois países tenha apresentado um recuo. Na verdade, foi de US$ 78 bilhões de dólares a corrente de comércio, o que representou uma queda de 6% sobre 2013. Ainda assim, isso representou o segundo maior resultado da série histórica do intercâmbio comercial entre os dois países. O Brasil exportou US$ 40,6 bilhões, uma queda de 12%, e as importações chinesas chegaram a US$ 37,3 bilhões, um leve aumento de 0,1%. Com esse resultado, a balança entre os dois países fechou 2014 com saldo positivo de US$ 3,2 bilhões favoráveis ao Brasil.