SPUTNIK: Qual será o tema de sua palestra e que importância o senhor atribui ao Fórum de São Petersburgo?
S: O senhor está fazendo uma autêntica ponte aérea: Washington, São Petersburgo, deve retornar a Washington após o Fórum, depois Ufá, na Rússia, novamente, e Xangai, na China.
PNBJ: Primeiro eu vou a Xangai, tomar posse, e de Xangai vou a Moscou, para uma reunião ministerial dos BRICS, seguida de uma viagem a Ufá para acompanhar várias reuniões, inclusive uma dos bancos de desenvolvimento dos países BRICS, que é um fórum que já existe há muitos anos, para o qual foi convidada a pré-administração do novo Banco de Desenvolvimento, que é composta de um presidente indiano e de quatro vice-presidentes dos outros BRICS.
S: Como os cinco países BRICS se inserem hoje na política e na economia mundiais?
PNBJ: Cada um tem suas peculiaridades, suas tradições, suas inserções, seus aliados regionais, mas um dos traços que unem os cinco é que são países grandes. Em termos de economia, população, território, estão entre os maiores do mundo nestes três quesitos. E estes cinco países grandes estão visivelmente trabalhando em aliança desde 2008 porque sentem que a ordem internacional existente, criada depois da Segunda Guerra Mundial, não abriga suficientemente a voz e os interesses dos países em desenvolvimento, e desses grandes países em desenvolvimento, ou emergentes, que foram chamados mais recentemente de BRICS. Então há uma posição comum. É claro que a China é a maior do grupo, tem um peso maior dos que os demais BRICS, mas também a China, apesar de ser a segunda economia do mundo, talvez a primeira, dependendo da maneira como se mede, também a China se vê frustrada na maneira como os países do Ocidente encaram a chamada ordem internacional. A verdade é que, por mais que se tente, não é fácil mudar entidades que existem há 70 anos, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Os BRICS não desistiram, continuam trabalhando dentro do FMI, óbvio, dentro do pacto mundial, mas resolveram criar seus próprios mecanismos, que não são contra ninguém mas vão abrir um espaço diferente. Vão poder cooperar com o Fundo Monetário e com o Banco Mundial mas também atuar de forma independente para levar adiante os objetivos que fundaram o Banco BRICS e o Acordo Contingente de Reservas, mas com a cabeça aberta para outros países em desenvolvimento e também países avançados que podem se tornar sócios do banco que os BRICS estabeleceram.
S: O senhor concorda com a avaliação de que os BRICS serão os grandes países na economia mundial a partir dos anos 2050?
PNBJ: Não sei dizer. Acho que também é um pouco de pretensão. Não precisamos querer ser os maiores e melhores. Apenas seria interessante que os BRICS soubessem mostrar ao resto do mundo que a nossa abordagem é diferente. Porque talvez um outro traço comum aos BRICS seja o fato de eles serem países, hoje, mais bem-sucedidos, até credores do FMI, por exemplo. Mas são países que há não muito tempo, principalmente Brasil, Rússia e Índia, estavam lá, batendo na porta do FMI para receber apoio de emergência. Então, hoje, ao mesmo tempo que somos credores do Fundo, sabemos o que é ser devedor do Fundo Monetário. Então nós temos uma visão do problema internacional que talvez seja diferente daquela que têm Canadá, Austrália, Estados Unidos. Nós conhecemos os dois lados. Esses países passaram por tantos problemas, a China, por exemplo, passou um século de humilhação entre a Guerra do Ópio, em meados do século XIX, e a Segunda Guerra Mundial e a vitória do Mao Tse Tung na guerra civil. E nesse período de cem anos a China comeu o pão que o diabo amassou. Isto não é tanto tempo atrás para um país como a China, que é uma civilização milenar. Sem querer ser romântico, mas já sendo um pouquinho, para fazer diferença, os BRICS nesse Banco [o Novo Banco de Desenvolvimento] e em outras iniciativas que tomarão têm que mostrar o seguinte: nós temos uma mensagem diferente, temos valores diferentes. Não olhem para esse Banco como apenas um Banco que é igual ao Banco Mundial, por exemplo, só que controlado pelos BRICS. Se for só isso, não é uma verdadeira novidade, é só uma disputa de poder entre países grandes. Nós temos que mostrar aos países menores, aos países médios, aos países pequenos ou vulneráveis que esse Banco veio para fazer uma diferença em relação ao que está aí. Este é o grande desafio que o presidente indiano, os outros vice-presidentes e eu vamos ter que tentar enfrentar com todas as nossas limitações a partir do início de julho.
S: Talvez seja um desafio similar ao que o senhor enfrentou ao chegar ao Fundo Monetário Internacional.
PNBJ: Não, é diferente. Quando eu cheguei ao Fundo, em 2007, eu estava chegando a uma entidade estruturada. Esta é uma entidade nova. Estamos começando praticamente do zero. Do zero não, porque há um tratado que foi assinado e há documentos preparatórios, mas ele não existe fisicamente, não existe concretamente. Do Fundo Monetário eu estou saindo de uma situação de certa maneira “confortável”, porque se conta com um organismo muito bem organizado, muito bem estruturado. Eu diria estruturado demais. Tão estruturado que ele não consegue mudar. Não consegue mudar tanto quanto deveria, em face da velocidade das mudanças da economia internacional.
S: Queremos conversar agora sobre o artigo que o senhor publicou no jornal “O Globo” de 12 de junho, com o título “Sobrevivi”. O senhor iniciou seu artigo dizendo: “Há poucos dias, o Governo brasileiro, em nota oficial, divulgou a minha designação para vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento. Agora posso falar sobre o assunto. Na verdade, era um segredo de polichinelo; a informação já havia vazado para tudo quanto é lado. Quando veio a nota oficial, a repercussão foi bem modesta.”
S: Em seu artigo, o senhor prossegue dizendo o seguinte: “Mas, enfim, estou de mudança para Xangai no início de julho, em menos de um mês, portanto. Nelson Rodrigues dizia que brasileiro não pode viajar. O brasileiro, a caminho do Galeão, já na Avenida Brasil, adquire automaticamente um descarado sotaque espiritual. Se o grande cronista tinha razão, a minha nacionalidade deveria estar em avançado estado de decomposição.” É tão sério assim, Dr. Paulo?
PNBJ: Eu sempre tive a experiência concreta disso que eu leria já adulto, do Nelson Rodrigues, que é a confrontação entre um indivíduo que vem de um país subdesenvolvido e as grandes metrópoles, porque meu pai era diplomata. Então, eu criança, adolescente, vivi em muitos países da Europa, EUA, Canadá, e logo me defrontei com esta realidade. Simplificando um pouco, é o seguinte: o planeta era, naquela época em que eu era criança e adolescente, e ainda é, dividido fundamentalmente em dois – o planeta avançado e o planeta em desenvolvimento. Há uma diferença notável. Se você vai para a Índia, como eu fui no início do ano passado, e em seguida para a Austrália – eu fiz esse movimento no início de 2014 –, é impressionante, é como se passasse para outro planeta, porque os australianos, assim como os outros desenvolvidos, estão furos e furos acima. Mesmo São Paulo, que é uma cidade tão importante, tão desenvolvida, tão cosmopolita, de São Paulo para Nova York você muda de planeta, na realidade porque eles estão muito à frente da gente. Você vai de Pequim para Tóquio, o mesmo acontece. Isso só como pano de fundo. Agora no caso do Brasil, existe o famoso, para usar de novo uma frase muito citada de Nelson Rodrigues, o famoso complexo de vira-lata. Porque o brasileiro se impressiona muito, ainda. Está melhorando mas se impressiona muito ainda com os países desenvolvidos. E os desenvolvidos, por sua vez, têm um complexo de pitbull, vamos chamar assim, variando um pouco a metáfora. É que os desenvolvidos, os americanos em particular, têm a noção hereditária de que eles são chamados para alguma missão histórica, a mandar, a dar as diretrizes, estabelecer padrões. O planeta teve a infelicidade de uma circunstância histórica, de que a Revolução Industrial começou no Ocidente, na Inglaterra, em particular. É uma infelicidade histórica porque a Revolução Industrial deu um poder militar avassalador a uma parte do mundo que talvez não fosse a mais sofisticada, a mais desenvolvida, certamente não era a mais antiga, nem a mais sedimentada. Muito mais antigas eram a China e a Índia, que de maneira diferente foram submetidas a uma situação colonial, ou quase colonial, pela Europa em expansão. E esta Europa em expansão era muito sofisticada tecnologicamente mas muito rudimentar em termos de costumes, de pensamentos, de valores, acredito eu. Estou dando uma improvisada aqui, mas se o leitor gosta de História, de ver retratado o espelho do passado, eu sugiro um filme inglês muito interessante que acabou de ser lançado: “Mr. Turner”. É um filme sobre o pintor inglês J. M. W. Turner, mas que na realidade é um retrato da Inglaterra no seu auge. O auge de poder da Inglaterra vitoriana em meados do século XIX. E o que mais chama a atenção é o primitivismo do país que teve condição de construir um império global, teve condições de impor a sua ordem, por exemplo, à China, através da famosa Guerra do Ópio, e assim vai. Basicamente, o que eu queria dizer é que é difícil para um subdesenvolvido, como eu ou qualquer outro brasileiro, chegar aqui na capital do Império, vamos dizer assim, Washington, e enfrentar uma estrutura. E aí, eu dizia no artigo, qualquer subdesenvolvido que venha a Washington trabalhar no Banco Mundial ou no Fundo Monetário se defronta com a seguinte disjuntiva: pode aderir ao status quo e se tornar um membro confortável de um clube muito bom, com piscina, sauna, toalha felpuda, ou, se quiser fazer algumas considerações, algumas objeções, participar do processo decisório – aí, não, vamos ter resistência.
S: É como o senhor diz no artigo: “torna-se membro mas não votante”.
S: O senhor mencionou a conclusão de seu artigo, em que o senhor diz: “O Brasil, afinal, é um grande país – ainda que nós, brasileiros, não estejamos sempre à sua altura.” Mas o que eu gostaria de destacar mesmo é o parágrafo que se inicia com o título do artigo e diz o seguinte: “Sobrevivi. Não diria intacto, claro. Tive que enfrentar umas barras e tenho as minhas cicatrizes. Mas lutei. Lutei para que o Brasil, aquele Brasil idealizado, que só existe no coração de alguns brasileiros, pudesse se orgulhar de mim.” Dr. Paulo, o Brasil se orgulha muito do senhor.
PNBJ: Obrigado. Acho que exagerei um pouquinho aí nessa frase. Acho que, quando a gente está escrevendo às pressas, pega um embalo e acaba exagerando.
S: Mas este artigo tem um claro tom de desabafo.
PNBJ: Não, não é tanto. Foi escrito mais num tom de dizer assim: quando eu vim para cá, 2007, eu estava ainda no Brasil, escrevi uma coluna para “O Globo” em que eu dizia: olha, eu sei que é difícil, porque eu passei a vida inteira viajando, eu sei que é difícil para um brasileiro enfrentar as barras que existem na capital do Império. Mas eu dizia: estou preparado, estou tentando me preparar psicologicamente para essas barras. E eu me pergunto agora, oito anos depois: fui bem-sucedido em desafiar a tese do Nelson Rodrigues? É a de que brasileiro não pode viajar. Fui bem-sucedido? Aí eu digo não desmentir a tese, porque toda regra tem exceção, ou não seria regra, não é? Espero que haja muitas exceções assim. E sei que há muitas exceções. Muito mais exceções brasileiras dessa regra irônica do Nelson Rodrigues do que de outros países em desenvolvimento, porque o Brasil tem um peso específico que arrasta os brasileiros mesmo que os brasileiros hesitem, relutem, estar à altura do próprio país. É isto que eu tentei dizer.