As surpresas começaram com a duplicação de votos e deputados do Bloco de Esquerda (BE), cuja mediática dirigente tem ela própria corporizado a surpresa. Sendo mulher, talvez não se esperasse que vencesse, apenas com a sua capacidade de argumentação e rápido raciocínio, políticos experientes nos debates televisivos da campanha. Pertencendo a um partido considerado de extrema-esquerda, talvez não se esperasse que obtivesse mais votos que o Partido Comunista (PC).
Outras surpresas ainda estavam para vir. De repente, o Partido Socialista (PS) mostra-se interessado em falar com os partidos à sua esquerda, o que não era nada habitual nele desde que Mário Soares em 1975 escolheu o “socialismo democrático”. Há quem diga que essa decisão quebrou um tabu de 39 anos: sim, afinal é possível que os partidos de esquerda se unam, coisa em que ninguém acreditaria ser possível há um mês.
A virada do PS e do seu líder António Costa foi tão surpreendente que atraiu a atenção da grande mídia estrangeira, nomeadamente o jornal britânico The Financial Times que em um artigo destacou a possibilidade de formação de tal aliança de esquerda.
Nas redes sociais portuguesas, a surpresa também é geral. Basta ler um dos muitos diálogos sobre o tema:
“Estará o país à beira de uma guerra civil?”
“Muito pior que uma guerra civil. A esquerda ganhou as eleições.”
A coligação (ainda) governante, depois de duas reuniões com o PS onde ambas as forças não se entenderam, não disfarça algum nervosismo e irritação pelo protagonismo do líder socialista. “Afinal, nós ganhamos as eleições e o país e a imprensa estão concentrados nos socialistas?” – parecem dizer os líderes do anterior governo.
De fato, o protagonismo parece pertencer agora a novos atores e só isso é bastante para manter os cidadãos interessados.
Como encaram então os dois partidos à esquerda do PS a situação histórica?
O BE parece encarar com entusiasmo a hipótese de se juntar ao PS para apoiar um governo; o PC encara-o com alguma contenção mas com inegável boa vontade. Os comunistas estarão até dispostos a não insistir agora em algumas das suas bandeiras programáticas em troca de o PS aceitar e levar à prática decisões imediatas que sejam, na visão do PC, favoráveis à população. Ora isto é também algo completamente novo.
O que dizem os principais atores desta mudança?
Decidimos ouvir dirigentes destes três partidos — PS, PCP e BE — para sabermos como eles se posicionam nos “tempos novos” que estamos vivendo.
“Nas últimas eleições legislativas, o povo português não só derrotou as pretensões do PSD/CDS de alcançarem uma maioria absoluta, como se pronunciou claramente por uma outra política. Os resultados eleitorais são claros”, diz Vasco Cardoso.
“Tal opção do povo português nas últimas eleições deve ter consequências quer no plano político, quer no plano institucional. De acordo com a nossa Constituição, a nova composição da Assembleia da República permite uma base para novas soluções governativas que não passem pelo PSD e o CDS. Nós temos intervido neste processo procurando impedir e rejeitar qualquer solução que passe pela continuação do governo PSD/CDS. Entretanto e simultaneamente temos afirmado que nada impede o Partido Socialista de formar governo, apresentar o seu programa e entrar em funções, sendo que o PCP não faltará a todas as medidas e propostas que visem defender os direitos dos trabalhadores e do povo português, assim como nos colocaremos contra qualquer política ou opção que venha aprofundar a política de desastre nacional que nos últimos anos tem vindo a ser desenvolvida no nosso país e com dramáticas consequências nas condições de vida dos trabalhadores e do povo. (…) Das reuniões realizadas com o PS, foram duas até ao momento, o que lhes transmitimos (e a forma séria como estamos neste processo aponta nessa direção) foi precisamente isso.”
Vasco Cardoso concretiza quais as condições que o partido coloca para essa viabilização.
“Nós apresentamos um conjunto de aspectos de resposta imediata às dificuldades mais sentidas pela população portuguesa, no plano da valorização dos salários e, em particular, do salário mínimo nacional, do combate à precariedade, da reposição de direitos no plano laboral, da reposição de salários, de pensões, de feriados que foram entretanto cortados, de uma política fiscal justa que tribute fortemente os grupos econômicos e financeiros, do reforço da Segurança Social, do reforço também do Serviço Nacional de Saúde, todo um conjunto de aspectos que, em nosso entender, requerem uma resposta imediata. (…) Temos encontrado algumas dificuldades, mas isso não significa que não procuremos insistir na discussão quanto a medidas que respondam aos interesses do povo e do país.”
O dirigente comunista reconhece que há diferenças nos programas dos dois partidos mas acha que é possível ultrapassá-las. Ora este é mais um aspecto totalmente novo: a disponibilidade do PC para discutir questões fundamentais, ideológicas, dos dois projetos que, em certas áreas, são contraditórios.
“Sinalizando medidas imediatas, não passamos ao lado, bem pelo contrário, de certos constrangimentos, de problemas profundos, com os quais a solução destes aspectos naturalmente irá esbarrar, designadamente a dimensão da dívida pública e a sua insustentabilidade, o controle por parte dos grupos monopolistas dos setores estratégicos da nossa economia e, simultaneamente, um conjunto de constrangimentos externos que enquadram a economia portuguesa e a situação do país. Mas isso não impediu que procurássemos discutir com o PS soluções concretas para o país nesta fase. Aqui estaremos para dar resposta às questões que vierem a ser colocadas.
“Nós estamos essencialmente pensando no nosso povo e o que sabemos é que a política que tem vindo a ser desenvolvida por sucessivos governos, também por governos do PS ao longo destes 39 anos, de completa e cega obediência aos interesses do grande capital estrangeiro e também da União Europeia, tem levado ao aumento do desemprego, ao aumento da dependência externa do nosso país, ao aumento da pobreza, a uma extorsão dos recursos nacionais por via da dívida, à destruição do Serviço Nacional de Saúde. (…) Procuraremos intervir para que as soluções que venham a ser encontradas respondam o melhor possível não aos interesses da União Europeia, não aos interesses de Merkel, de Berlim ou de Bruxelas, mas aos interesses dos trabalhadores e do povo português. É esse o posicionamento de sempre do PCP e é nessa base que concentramos as nossas preocupações e a nossa intervenção política”, disse ele ao finalizar.