Geringonça salta fogueira no parlamento português

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O primeiro-ministro socialista português superou, com relativa facilidade, o debate parlamentar do Estado da Nação, de mais de 265 minutos, com o apoio dos deputados à sua esquerda. A quinzena terrível dos incêndios e roubo de armas nos depósitos do exército não o fizeram tropeçar.

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O primeiro-ministro português, António Costa, chegou ao debate do Estado da Nação, realizado na quinta-feira passada (6), em uma situação difícil frente aos incêndios na região de Pedrógão Grande, em que morreram 64 pessoas, e ao roubo de material militar nos depósitos de Tancos. O cenário estava montado para realização de um debate complicado para o governo socialista português, apoiado no parlamento pelos seus parceiros de esquerda, o Partido Comunista Português e o Bloco de Esquerda.

O roteiro do debate estava de antemão traçado: os partidos de direita iam falar da "crise do governo e da falência do Estado" e o Partido Socialista, e os partidos à sua esquerda, iam exibir os bons resultados econômicos do país.

Na sua intervenção inicial, depois de dez minutos dedicados à tragédia de Pedrógão Grande e à necessidade de uma reforma florestal, o primeiro-ministro António Costa recordou que pela primeira vez o país cresce mais do que a média dos países da União Europeia, que a taxa de desemprego alcança 9,5%, que o déficit, em 2017, será de 1,7%, que o investimento atingirá os níveis maiores dos últimos oito anos e que "pela primeira vez em dez anos foi cumprido o orçamentado". Um otimismo econômico que é confirmado pela Universidade Católica ao prever que o país crescerá 2,7% neste ano, um número nunca alcançado no século atual.

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À intervenção do chefe do governo, seguiu-se a do líder parlamentar do maior partido da oposição, o PSD (Partido Social Democrata). A economia não foi o principal assunto da intervenção de Luís Montenegro, que apostou em uma narrativa diferente. Para o líder parlamentar do maior partido da direita, que deixou seu cargo ontem (12), vive-se um processo de degradação do país, o Estado está à beira do colapso pela falta de autoridade e de liderança do governo e de Portugal. Exemplificou com o fogo de Pedrógão Grande, o roubo de armas em Tancos, e os convites que a petrolífera GALP fez a três secretários de Estado para irem à final do Campeonato Europeu de Futebol de 2016, que motivou a demissão dos mesmos há alguns dias, a poucos dias de serem constituídos arguidos. Uma crítica de alguma maneira irônica, dado que o mesmo deputado também foi a essa competição a convite da GALP. "[António Costa] nunca teve autoridade eleitoral, mas chega a este debate com a autoridade política muito diminuída", concluiu Montenegro, depois de ter traçado o cenário de um Estado a esboroar-se e de um governo à deriva. Uma intervenção que mereceu o aplauso de pé do seu partido, e sentado do seu parceiro do antigo governo mais à direita, o CDS.

À intervenção de Montenegro, o primeiro-ministro respondeu com os dados econômicos e afirmando — aproveitando a resposta a uma intervenção de um deputado do seu partido, o PS — que "nenhum português deseja o regresso ao Portugal pobrezinho e sem direitos que a direita propõe".

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Costa acusa o PSD de, "na sofreguidão de querer atacar o governo, atacar a Caixa Geral de Depósitos (CGD), os exames nacionais, as próprias Forças Armadas". "Poupo-o de lembrar a solidez da sua liderança, que está a cessar", diz o primeiro-ministro para Luís Montenegro, quem se prepara para deixar as funções de líder da bancada parlamentar socialdemocrata. E contra-ataca: "Senhor deputado, aquilo a que aqui assistimos não foi à descrição de colapso do Estado, foi ao colapso do sentido de Estado do PPD-PSD". No final da sua resposta a Luís Montenegro, Costa deixa uma sugestão irônica, que parece aludir a uma eventual saída da liderança do líder do PSD e ex-primeiro-ministro Passos Coelho: "Não sei se no próximo debate [do Estado da Nação, daqui a um ano] não o vou ter como interlocutor em outra qualidade". Montenegro é um dos nomes apontados para o pós-Passos na liderança do PSD.

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Na intervenção seguinte, a líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, dedicou a maior parte do tempo para atacar a oposição de direita, afirmando que de tanto pregarem "o Estado mínimo", chegaram a uma situação em que ficaram sem uma mínima ideia do que dizer, recordando que das várias tragédias econômicas para o país que PSD e CDS tinham previsto, nenhuma delas se concretizou. "Passado um ano, com um crescimento econômico indesmentível, a direita pôs-se em bicos de pés e chega ao debate do Estado da Nação sem discurso", diz. "A direita cortou tanto e ficou sem nada, está sem ideias e nem a ideia de Estado mínimo lhe sobrou", garantiu a líder do BE. Catarina Martins concretizou aquilo que seria o roteiro no debate dos partidos à esquerda do PS: atacar à direita e pressionar o governo em vésperas da discussão do Orçamento de Estado, para que haja uma maior reposição de direitos e rendimentos da população, bem como uma política que promova uma maior igualdade. Ao desafio do Bloco de Esquerda que o governo assumisse o aumento do salário mínimo nacional, o primeiro-ministro António Costa garantiu que o salário iria subir para 580 euros no próximo ano e que os impostos seriam mais progressivos, incidindo mais em quem tem maiores rendimentos.

As críticas mais fortes ao governo vieram de Assunção Cristas, líder do CDS-PP, como protagonista. Cristas pediu a demissão da ministra da Administração Interna e do ministro da Defesa, por serem responsáveis pela tragédia dos fogos de Pedrógão Grande e do roubo de material militar em Tancos, respectivamente.

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Crista engana-se no "falhanço mais básico do Estado" ao referir-se aos incêndios de Pedrógão. "A confiança foi quebrada e era urgente recuperá-la. E o que vimos? A total descoordenação" e um "governo inapto". Há duas semanas, outro episódio, que também "atingiu o coração do Estado soberano: o assalto aos depósitos de Tancos". "Na sua lógica, até estamos agradecidos por terem levado o material roubado, porque assim até nos pouparam que tivéssemos de desmantelá-lo", ironiza a líder do partido mais à direita. Sobre tudo isto, acusa o chefe de governo de deserção. "Percebemos a sua tática, vimo-la no último Orçamento do Estado e vimo-la de novo na semana passada. Quando a conversa não lhe interessa, pura e simplesmente o senhor desaparece", afirma. O tom assertivo da líder do CDS, que tem sondagens que a colocam à frente da candidata do PSD nas eleições autárquicas para a capital do país, Lisboa, recordam que o CDS não ataca apenas o governo, mas tenta competir, com o PSD, na liderança da oposição. A essas críticas, o primeiro-ministro respondeu que foi o governo de que Assunção Cristas foi ministra que cortou 46% nos gastos da defesa e 31% na proteção civil. Tendo recordado que, há um ano, a líder do CDS tinha exibido sete cartolinas nas quais inscreveu os previsíveis falhanços econômicos do governo, e que nenhum deles foi verificado.

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O líder do PCP, Jerónimo de Sousa, afirmou que a grande conquista deste governo foi demonstrar que não havia "inevitabilidades" no caminho político e econômico traçado para o país, mas que havia ainda muito para fazer. É preciso, disse, que "os orçamentos de Estado que são aprovados na Assembleia da República sejam executados", e não sirvam para apresentar serviço à UE para motivos do déficit. "Sabemos que o que está feito não é suficiente, e não é só uma questão de ritmo, é preciso ir mais longe e romper com a política que durante décadas vigorou no país, assumindo com coragem a política alternativa", garantiu. A esta intervenção, o chefe do governo sublinhou a convergência nas preocupações sociais, embora socialistas e comunistas divirjam sobre a apreciação que fazem da União Europeia e o euro.

Para Passos Coelho, o país está vivendo à conta das reformas do seu governo e da boa conjuntura internacional. O ex-primeiro-ministro reconheceu a melhoria econômica, mas disse que esta melhoria não se deve ao atual governo. "O governo maravilha perdeu tempo, ritmo no crescimento", afirmou. Passos disse ainda que "o país poderia estar melhor hoje e no futuro se o governo não andasse a boleia da conjuntura e a colher frutos das reformas que impulsionam o crescimento futuro", e acusa o executivo de estar agarrado a sua "política preferida – a política da comunicação". Uma intervenção muito aplaudida pelos deputados do PSD, mas que tropeçou no fato das desgraças econômicas, previsto por eles há um ano.

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É justamente esse aspecto que o deputado socialista André Pinotes Baptista sublinha para a Sputnik Brasil. "O dado mais relevante deste debate do Estado da Nação é o abandono da discussão econômica por parte da oposição", considera. Diferente opinião tem o deputado do PSD, Sérgio Azevedo, em declarações à Sputnik Brasil afirma que estamos perante "um debate do jogo do empurra", e que o governo "não assume as responsabilidades que tem de assumir e atira sempre todas as culpas para a oposição", nomeadamente nas tragédias de Pedrógão Grande e no roubo de Tancos. No entanto, o deputado do PSD reconhece que questões como as dos incêndios extravasam os mandatos do governo.

"É absolutamente evidente que a questão dos incêndios e da forma como se lida com a floresta tem sido transversal a vários governos, mas o que acontece neste incêndio é que ocorreu algo que nunca tinha acontecido: a morte de 64 pessoas. E é sobre esta responsabilidade, que um governo, que está há mais de dois anos, tem de assumir o que fez e não fez", defende o deputado do PSD.

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Diferente é a opinião do deputado do PS. "Nós passamos por dois incidentes trágicos, mas a oposição que está esgotada se agarrou a estes incidentes para tentar dizer que o Estado está falido e o governo está esgotado. O que é interessante é que para além da economia estar a funcionar bem, este debate provou que há uma grande solidez na geringonça [nome popular usado para as forças de esquerda que sustentam o governo]", considera.

A próxima batalha do governo será o Orçamento, vamos ver como consegue superar essa prova, entre as exigências dos partidos mais à esquerda e a "ditadura" econômica da UE.

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