Nesse contexto, as preocupações de Moscou parecem ser mais que justificadas, porém, são totalmente ignoradas pela parte ocidental. Por que isso acontece, e será que a continuidade desse conflito de interesses poderia levar a um conflito real?
Pesos e contrapesos
De fato, a época em que a existência da OTAN foi realmente relevante e se encaixava na imagem de um mundo multipolar, por mais estranho que pareça, tem a ver com a Guerra Fria. Sim, de fato, havia dois "polos" — o bloco soviético e outro sob os auspícios da supremacia estadunidense, porém, esse sistema era muito mais equilibrado do que aquele que evidenciamos hoje.
Naqueles dias, logo após a tragédia histórica que rasgou toda a Europa, ou seja, a Segunda Guerra Mundial, os atores internacionais, inclusive o próprio continente europeu, estava precisando de algumas garantias que isso não voltasse a se repetir. Bem lógico que, com esse objetivo, se tenha formado um bloco militar destinado a cimentar a segurança na área.
Entretanto, na época em que toda a geopolítica se baseava em princípios de paridade, tanto na esfera militar como científica e muitas outras, a União Soviética, país que foi o mais devastado de todos pela guerra, não podia deixar as coisas como estavam. Daí, criou outro bloco — o Tratado de Varsóvia, que existiu mesmo até ao fim da Guerra Fria.
Pode-se discutir muito sobre o caráter dessa aliança e o modo das autoridades soviéticas a terem usado para promover suas ideias no flanco leste europeu, inclusive durante as repressões de protestos democráticos na Polônia em 1956 e na Tchecoslováquia em 1968. Porém, seria justo sublinhar que após o colapso do governo comunista na Rússia, esta não chegou a criar um novo bloco de caráter militar, tendo em conta que a Guerra Fria virou coisa do passado, enquanto a Aliança Atlântica não só ficou, mas seguiu "florescendo".
Promessa dada é promessa cumprida?
Pronto, a URSS colapsou, virando um país bem enfraquecido economicamente em seu caminho longo e vulnerável de democratização. Os EUA, por sua vez, saíram da Guerra Fria como vencedores e se tornaram, de fato, no único "polo" geopolítico na época.
A promessa foi dada, com um problema só — nunca foi documentada, ou seja, se manifestou apenas em palavras. Entretanto, as autoridades russas parecem ter tido confiança nos seus parceiros ocidentais (evidentemente, na política a confiança incondicional é algo que se deve evitar) e ficaram com consciência tranquila.
Como a gente vê hoje, não tardou muito para quebrar essa promessa. Era de esperar — é por isso que hoje em dia se ouvem muitas críticas do então líder russo, Mikhail Gorbachev, que, evidentemente, não conseguiu exercer pressão suficiente sobre os europeus e americanos e exigir um acordo escrito. Nesse caso, a gente já estaria falando doutra situação.
Podemos esperar uma guerra?
Passados apenas alguns anos após o suposto consenso, a trajetória começou a se desviar do planejado. Na época em que a Rússia estava passando por um período doloroso de reformas democráticas e pela profunda crise financeira de 1998, o Ocidente começa a negociar com os países do antigo bloco soviético com a perspectiva de os acolher na Aliança.
Esta primeira ampliação de 1999 (Hungria, Polônia e República Tcheca) e a subsequente ampliação sem precedentes de 2004 desferiram um golpe duro contra a posição geopolítica russa e logo se tornaram em um dos mais sérios fatores perturbadores no relacionamento potencialmente frutífero entre os países ocidentais e Moscou.
Desde então, falando da política internacional, o Kremlin tem feito questão de reiterar sua preocupação em relação a este processo — vale relembrar o famoso discurso de Putin em Munique pronunciado em 2007. Na época, a dureza da intervenção surpreendeu muitos, mas, passada uma década, ele acabou por ser em algum sentido até profético.
A reunificação da Rússia com a Crimeia, onde fica um dos mais importantes bastiões navais russos, foi também em grande parte argumentada com a ameaça proveniente do oeste, com a aproximação cada vez maior das tropas da Aliança Atlântica das fronteiras russas sob pretexto da suposta "agressão russa", uma lógica que parece bem paradoxal.
Certamente, a situação de hoje parece ter atingido seu auge. Os canais de comunicação bilateral deixaram de funcionar em um contexto de confrontação ideológica e sanções, a retórica fica cada vez mais acalorada, o bloco já nem tenta abafar suas prioridades, ou seja, a contenção da Rússia e proteção contra sua política "agressiva".
Olhando para tudo isso com cabeça fria, fica evidente quem apenas se disfarça de pacificador. Para o Kremlin, isto já é um fato consumado e este, evidentemente, fará todo o possível para resistir ao modelo do mundo promovido pela parte ocidental e defender sua visão da multipolaridade na política. Oxalá que isto seja possível por meios meramente diplomáticos, por mais que a esperança diminua.