Angola e Portugal em guerra na justiça: até onde podem ir apurações e jogo de interesses

© AP Photo / Saurabh DasEx-vice-presidente angolano, Manuel Domingos Vicente, antes da sessão da cúpula do Fórum Índia África (IASF) em Nova Deli, 29 de outubro de 2015
Ex-vice-presidente angolano, Manuel Domingos Vicente, antes da sessão da cúpula do Fórum Índia África (IASF) em Nova Deli, 29 de outubro de 2015 - Sputnik Brasil
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Apesar das reticências do governo português, a justiça de Portugal vai mesmo querer julgar o ex-vice-presidente angolano Manuel Vicente e investigar os milhões da elite dos generais de Angola.

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O caso do ex-vice-presidente angolano Manuel Vicente já está em fase de julgamento. Os processos que envolvem poderosos empresários e generais angolanos com a justiça portuguesa são uma pedra no sapato nas relações entre Portugal e Angola. O governo de Luanda já deixou repetidamente claro que apenas haverá um descongelamento das relações caso a justiça portuguesa desista de acusar os ex-governantes angolanos. Em um esforço para desbloquear a situação, o governo pediu um parecer às autoridades judiciais portuguesas para saber se era possível que o caso em que Manuel Vicente é acusado de subornar um magistrado português para arquivar a investigação que havia contra ele, possa ser julgado, tal como as autoridades de Luanda desejam, pela justiça angolana. Esse parecer não foi entretanto divulgado pelo governo de António Costa, indiciando ser desfavorável à pretensão do governo do Partido Socialista.

O desconforto governamental é tão grande, que a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, declarou publicamente que, segundo a lei, este era o último mandato da procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal. Umas declarações que vieram indispor o Presidente da República portuguesa, a quem cabe nomear os procuradores-gerais da República (PGR), sob proposta do governo e, sobretudo, como declararam fontes próximas de Joana Marques Vidal, à Sputnik, violam a própria letra da Constituição portuguesa que, mesmo depois da última revisão, não estabelece que o mandato do procurador-geral da República deva ser único. Este procurador deu o exemplo do que aconteceu com o presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d' Oliveira Martins, que viu o seu mandato prorrogado, com um articulado constitucional idêntico.

Para ironia histórica, se formos ver o passado desta discussão sobre os mandatos do PGR, o atual presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, quando era líder do PSD, era favorável a um mandato único, coisa que agora parece não ser; e os deputados do PS, atual partido do governo, intervenientes no estabelecimento das alterações deste articulado constitucional, como o deputado José Magalhães, defenderam explicitamente que o mandato não tinha de ser obrigatoriamente único.

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A atual situação tem de ser analisada a dois níveis: a nível das relações entre o poder político e judicial português e a nível do contencioso e dos problemas que a situação coloca nas relações com Angola.

Embora o Ministério Público seja um órgão independente, haja separação dos poderes executivo, legislativo e judicial, e os procuradores do Ministério Público dirijam as investigações de uma forma independente das opiniões do procurador-geral da República, a realidade tem demonstrado que quem manda hierarquicamente no Ministério Público tem bastante poder para agilizar ou não as investigações. Uma das razões para se estabelecer uma maior rotação dos mandatos dos procuradores foi o imenso poder que o PGR Cunha Rodrigues teria tido durante os seus 16 anos de mandato, com uma enorme independência das investigações em relação aos vários poderes políticos e econômicos em contrapartida. Os seus sucessores Souto de Moura e Pinto Monteiro cumpriram apenas seis anos de mandato, cada um.

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Sendo o primeiro acusado, por alguns setores políticos, de ter permitido que o "Caso Casa Pia" — uma investigação sobre crimes de pedofilia com crianças, à guarda de instituições do Estado para proteção de menores, como a Casa Pia — tivesse derrapado para cima de alguns responsáveis políticos ligados ao PS. Isto sem nunca se ter feito uma investigação competente que permitisse ter ido até ao fim na descoberta de quem era de fato culpado e de quem estava apenas sendo enlameado com o caso. Já ao seu sucessor Pinto Monteiro acusa-se de ter atrapalhado várias investigações de casos em que o ex-primeiro-ministro José Sócrates surgia como possível envolvido, casos de corrupção e de tentativa de influenciar órgãos de comunicação social. Pinto Monteiro é acusado de estar em acordo com o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha Nascimento, de ter arquivado em um expediente administrativo de consulta proibida a justificação para a destruição de escutas telefônicas a arguidos, em que foram apanhadas conversas de José Sócrates, que poderiam indiciar atividades criminosas do chefe do governo.

Enquanto, do ponto de vista da relação do poder político com o poder judicial o caso é complicado, do ponto de vista das relações com Angola ele é ainda mais complexo. A elite angolana tem milhares de milhões de euros investidos em Portugal. Alguns dos generais e a filha do ex-presidente José Eduardo dos Santos têm interesses e posições de peso em algumas das maiores empresas portuguesas. O julgamento do antigo homem forte da Sonangol e ex-vice-presidente Manuel Vicente não vai melhorar as relações entre a elite angolana e Portugal. Sendo que a antiga metrópole colonial está duplamente exposta: por um lado, ao peso do capital angolano; e por outro, ao fato de, durante a crise, dezenas de milhares de portugueses, a maioria de quadros qualificados, terem ido trabalhar para Angola.

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No âmbito da operação Fizz, que investiga os negócios angolanos em Portugal, com o número de processo 333/14.TELSB, estão ligados outros nove processos: o caso Manuel Vicente; Denúncia de Adriano Parreira; Processo Kopelipa, Leopoldino e Carlos Silva; Inquérito Édimo Ações Banco BIG; Burla na compra das ações do BANIF; Burla a Angola; Negócios ações BES Angola; Processo Álvaro Sobrinho/Grumberg e o processo sobre a compra de apartamentos Estoril Sol. Tudo isso e o fato de grande parte do dinheiro da elite angolana circular a partir de Portugal faz igualmente com que esta relação complexa torne os ricos angolanos muito dependentes do que possa fazer a justiça portuguesa.

Como revelava na semana passada a revista Sábado, "Manuel Vicente tinha um patrimônio superior a 75 milhões de euros (cerca de 293 milhões de reais). Os generais Kopelipa e Leopoldino Nascimento possuíam ainda mais. Só na Unitel, a operadora de telefonia móvel angolana, Leopoldino recebeu 120 milhões de euros (cerca de 469 milhões de reais) de 2007 a 2010. Também a mulher de Kopelipa ganhou 33 milhões de euros (cerca de 129 milhões de reais) em apenas quatro anos. Grande parte desde dinheiro circula por Portugal através de bancos e negócios cruzados com familiares e testas de ferro".

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