O desconforto governamental é tão grande, que a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, declarou publicamente que, segundo a lei, este era o último mandato da procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal. Umas declarações que vieram indispor o Presidente da República portuguesa, a quem cabe nomear os procuradores-gerais da República (PGR), sob proposta do governo e, sobretudo, como declararam fontes próximas de Joana Marques Vidal, à Sputnik, violam a própria letra da Constituição portuguesa que, mesmo depois da última revisão, não estabelece que o mandato do procurador-geral da República deva ser único. Este procurador deu o exemplo do que aconteceu com o presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d' Oliveira Martins, que viu o seu mandato prorrogado, com um articulado constitucional idêntico.
Para ironia histórica, se formos ver o passado desta discussão sobre os mandatos do PGR, o atual presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, quando era líder do PSD, era favorável a um mandato único, coisa que agora parece não ser; e os deputados do PS, atual partido do governo, intervenientes no estabelecimento das alterações deste articulado constitucional, como o deputado José Magalhães, defenderam explicitamente que o mandato não tinha de ser obrigatoriamente único.
Embora o Ministério Público seja um órgão independente, haja separação dos poderes executivo, legislativo e judicial, e os procuradores do Ministério Público dirijam as investigações de uma forma independente das opiniões do procurador-geral da República, a realidade tem demonstrado que quem manda hierarquicamente no Ministério Público tem bastante poder para agilizar ou não as investigações. Uma das razões para se estabelecer uma maior rotação dos mandatos dos procuradores foi o imenso poder que o PGR Cunha Rodrigues teria tido durante os seus 16 anos de mandato, com uma enorme independência das investigações em relação aos vários poderes políticos e econômicos em contrapartida. Os seus sucessores Souto de Moura e Pinto Monteiro cumpriram apenas seis anos de mandato, cada um.
Enquanto, do ponto de vista da relação do poder político com o poder judicial o caso é complicado, do ponto de vista das relações com Angola ele é ainda mais complexo. A elite angolana tem milhares de milhões de euros investidos em Portugal. Alguns dos generais e a filha do ex-presidente José Eduardo dos Santos têm interesses e posições de peso em algumas das maiores empresas portuguesas. O julgamento do antigo homem forte da Sonangol e ex-vice-presidente Manuel Vicente não vai melhorar as relações entre a elite angolana e Portugal. Sendo que a antiga metrópole colonial está duplamente exposta: por um lado, ao peso do capital angolano; e por outro, ao fato de, durante a crise, dezenas de milhares de portugueses, a maioria de quadros qualificados, terem ido trabalhar para Angola.
Como revelava na semana passada a revista Sábado, "Manuel Vicente tinha um patrimônio superior a 75 milhões de euros (cerca de 293 milhões de reais). Os generais Kopelipa e Leopoldino Nascimento possuíam ainda mais. Só na Unitel, a operadora de telefonia móvel angolana, Leopoldino recebeu 120 milhões de euros (cerca de 469 milhões de reais) de 2007 a 2010. Também a mulher de Kopelipa ganhou 33 milhões de euros (cerca de 129 milhões de reais) em apenas quatro anos. Grande parte desde dinheiro circula por Portugal através de bancos e negócios cruzados com familiares e testas de ferro".