As relações entre Angola e Portugal sempre foram bastante tensas — ao menos por seu registro histórico ambíguo. Porém, os recentes eventos levaram de repente ambas as partes a expressar sua postura de uma maneira bem dura. Como se costuma dizer, cada um tem sua verdade, mas parece que esta erupção de descontentamento mútuo tem muitos escolhos e armadilhas por trás.
Fantasmas do passado colonial doloroso
A colonização, sem dúvida, sempre deixa vestígios mórbidos na vida dos povos. Vem à cabeça uma associação: por mais adultos que sejam os filhos, os pais sempre dizem que têm razão (ao menos por simplesmente serem pais). Uma coisa parecida acontece com as nações uma vez colonizadas e, na opinião delas, "usurpadas", sendo que elas se sentem oprimidas pelas ex-metrópoles mesmo após conseguirem a independência (tal como os filhos que já há muito deixaram casa materna).
Assim, por exemplo, em um dos seus recentes editoriais, o Jornal de Angola falou de que "quarenta e um anos depois da independência da Angola, as elites portuguesas continuam a tratar-nos com má educação, como se ainda fôssemos seus escravos", refletindo, deste modo, o sentimento comum presente na sociedade angolana.
Os portugueses, por sua vez, não poupam seu espirito de grandes navegadores e bons samaritanos, afirmando que sua ex-colônia não valoriza o apoio dado a ela e, mais que isso, não dá nada em troca. Ou seja, só recebem "kumbu" (dinheiro na gíria angolana) e pronto.
Angola na mira da Justiça 'desenfreada' portuguesa
A tensão se desenvolveu há algumas semanas, quando o Ministério Público de Portugal iniciou um processo judicial contra o atual vice-presidente da Angola, Manuel Vicente, acusando-o de "corrupção ativa, branqueamento de capitais e falsificação de documentos" na época de seu serviço como presidente da Sonangol, empresa angolana do ramo petrolífero, entre os anos 1999 e 2012.
Vale ressaltar que, segundo algumas fontes, o político tem tencionado apresentar sua candidatura às próximas eleições presidenciais como representante do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola, partido no poder), sendo que o atual Chefe de Estado, José Eduardo dos Santos, já decidiu não se recandidatar.
No momento frágil destes ataques judiciais recíprocos, surgem críticas de ambos os lados. Enquanto uma deputada do Partido Socialista português, Isabel Moreira, chama o atual regime angolano de "ditadura brutal", a chancelaria de Luanda afirma estar indignada pela maneira "inamistosa e desproporcionada" das autoridades portuguesas divulgarem informações sobre o acontecido, prejudicando o nome da Angola e sua imagem lá fora.
No final, tudo isso levou a que a planejada visita da ministra da Justiça portuguesa, Francisca Van Dunem, à Angola tenha sido cancelada e acrescentou mais incerteza quanto às datas da visita do premiê português António Costa, uma viagem que já se está planejando desde o ano passado.
Degradação iminente das relações ou apenas uma crise passageira?
No contexto do acontecido, têm surgido vários prognósticos. Uns dizem que os processos fazem parte de uma relação tradicionalmente tormentosa entre a ex-metrópole e a ex-colônia, e se descartarão da mesma maneira que já forem descartados, outros estão convencidos de que isto já traz sinais de uma certa ruptura nos laços.
Ao mesmo tempo, a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), que, apesar de ter combatido tal como o MPLA na guerra de independência, agora está na oposição, apelou ao Ministério Público angolano para investigar as acusações apresentadas pelas autoridades portuguesas, já que isto "faz parte das suas responsabilidades" e, se for comprovado, precisa de um tratamento adequado.
E, com efeito, esta é uma ideia muito razoável que faz surgir duas perguntas: por que um cidadão angolano, ou seja, de outro país, está sendo processado em Portugal com tanto ruído midiático, e, em segundo lugar, se ele realmente deu um suborno de 760 mil euros ao procurador português Orlando Figueira, por que ninguém fala dos defeitos da Justiça portuguesa?
Em resumo, os processos recentes parecem não ser os verdadeiros motivos do agravamento nas relações. Parecem ser uma espécie de "última gota de água" que fez verter uma irritação sempre presente. E, pelo visto, a situação dificilmente vai mudar até que as autoridades portuguesas tomem uma postura mais afastada e menos paternalista, enquanto a Angola, por sua vez, faça mais para corresponder aos padrões da democracia que afirma buscar.