Ana* tinha 15 anos quando decidiu abortar. Namorando pela primeira vez na vida com um homem de 19 anos, ela se fiava pelo método conhecido como tabelinha — em que a mulher regula as relações com base no ciclo menstrual — para transar sem preservativos. Deu errado e ela se pegou grávida.
“Esse remédio é muito forte. No dia, assim que tomei fui correndo vomitar e fiquei desesperada, achando que tinha vomitado também o comprimido. Depois de seis horas, começou [a sangrar]. E é uma dor que eu não sei como explicar, é desesperador. A sensação é uma contração, seu útero está expulsando o que tem ali, é a dor do parto, um negócio terrível”, descreve.
Diante da quantidade anormal de sangue e da forte dor, Ana conta que chorava o tempo todo e se sentia aterrorizada de precisar ir ao hospital caso tivesse uma hemorragia. Seu maior temor é que o namorado ou a própria mãe pudessem ser presos, já que ela era menor de idade. O processo inteiro durou 12 horas, mas o sangramento permaneceu por vários dias até cessar.
A história de Ana se assemelha à de milhares de brasileiras que todos os anos se submetem ao aborto ilegal e inseguro, seja através de medicamentos, seja por meio de clínicas clandestinas. Realizada a cada dois anos pelo Ibope Inteligência e encomendada pela ANIS — Instituto Bioética, a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) 2016 mostrou que 1 a cada 5 mulheres brasileiras vai realizar pelo menos um aborto até o fim do ciclo reprodutivo. Só em 2015, a pesquisa estima que foram feitos aproximadamente 503 mil abortos em todo o país.
Uma das autoras do pedido, a professora de Direito Penal e Criminologia da UFRJ e ex-candidata a deputada estadual pelo PSOL, Luciana Boiteux conta que a iniciativa partiu de uma parceria com o Instituto Bioética ainda em 2016. Ao perceber que o movimento era amplamente apoiado por mulheres filiadas ao partido, o PSOL decidiu levar a tentativa ao STF, já que apenas um número reduzido de entes políticos tem autorização para levar uma ADPF ao Supremo.
"No Congresso, a descriminalização do aborto já está em pauta há muito tempo. Tentamos por meio de um projeto de lei apresentado pelo deputado Jean Willys e houve uma completa interdição até mesmo do debate. A gente cansou de esperar. Em muitos países, o tema aborto não foi resolvido por instâncias legislativas e sim por via do judiciário, como no caso dos Estados Unidos e da Alemanha (…). Decidimos que aqui no Brasil, deveríamos nos pautar pela Constitutição de 88, que não foi adotada em sua completude neste ponto. Ainda nos fiamos pelo Código Penal de 1940, que entendemos ser incompatível com os direitos da mulher garantidos por vias constitucionais", argumenta.
Sob relatoria da ministra Rosa Weber, a peça começou a fazer barulho em agosto, quando a Corte convocou especialistas para debaterem a questão e apresentarem argumentos que podem vir a embasar a decisão dos juízes. Grupos favoráveis à descriminalização do aborto no país montaram uma rede de apoio e articulação para embasar os argumentos diante de Weber.
A cautela tem motivo, já que esta não é a primeira vez que se chega muito próximo de se descriminalizar (ou legalizar) o aborto no Brasil. Em 2002, a Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres da Presidência da República promoveu em todo o país as chamadas "Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro". A iniciativa gerou conferências municipais, estaduais e nacionais com o objetivo de finalmente elaborar uma revisão da legislação punitiva em torno do tema. Com o apoio de mais de 120 mil mulheres, a mobilização deu origem em 2004 a uma comissão dentro da Câmara que poderia ter regulamentado o aborto no país.
A “Comissão Tripartite para a Revisão da Legislação Punitiva que Trata da Interrupção Voluntária da Gravidez” foi formada por representantes do Congresso, do Governo Federal e da Sociedade Civil. Mas o tiro saiu pela culatra: a iminência da aprovação do aborto legal no país fez deputados conservadores se articularem em uma frente parlamentar pró-vida, que eventualmente esvaziou o debate e rejeitou a proposta antes que ela fosse votada em plenário. Parte da Comissão na época, a presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABBA), Lia Zanotta Machado relembra o caso com tristeza. “Foi quase uma tragédia, perdemos uma grande possibilidade e o movimento fez crescer essa onda conservadora pró-vida que cada dia ganha espaço na sociedade”, lamenta.
“A resistência, porém, não se perdeu. A Constituição fala em direito das mulheres à saúde integral psíquica e física, à dignidade. Se a gente esperar que a opinião pública seja favorável, muitas mulheres morrerão, muitas terão morbidade pelas sequelas e sofrimentos psíquicos”, argumenta a pesquisadora, que esteve na audiência convocada pelo STF em agosto.
Na ocasião, Lenise conheceu profissionais de outras áreas com princípios parecidos e passou a chefiar o movimento. Lenise foi ativa na discussão também contra a liberação de aborto em casos de anencefalia. Agora, luta para que a ADPF 442 não caminhe no Supremo Tribunal Federal.
“O STF não é o âmbito para este debate, mas sim o Congresso. E ninguém deve dizer que o Congresso está se omitindo em relação a isso. Nós tivemos uma tentativa de aprovação na Câmara e houve uma derrota do projeto de 33 a 0. O seu time joga com o meu, perde e você vai dizer que não teve jogo? Além disso, há atualmente projetos em tramitação pela legalização do aborto, como também por restringir mais, então não faz sentido dizer que no Congresso isso não está sendo debatido”, critica.
Debate pode flexibilizar legislação, mas também pode levar a regras mais duras
Lenise — que mantém contato com vários deputados contrários à aprovação do aborto — diz acreditar que, caso aconteça, o provimento da ADPF 442 será imediatamente acompanhado de um recrudescimento na legislação votada no Congresso. Ela cita como exemplo a PEC 181, que inicialmente previa aumento de licença-maternidade para as mães de bebês prematuros, mas que acabou recebendo um acréscimo pelo deputado Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP) proibindo aborto em qualquer circunstância no Brasil, inclusive nos casos de estupro e risco de morte da gestante.
A opinião de Lenise é corroborada pela professora de Direito da USP e agora deputada eleita, Janaína Paschoal. Na audiência, Janaína discorreu longamente pela manutenção da legislação atual, que ela considera moderada. A professora — que ficou conhecida no Brasil inteiro por defender o pedido que levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff — diz que a mobilização pode trazer efeitos adversos, que neste caso viriam na forma da destruição das exceções que a lei permite ao aborto.
“Se o Supremo declarar não recepcionados os artigos 124 e 126, eu acredito que o Congresso criminalize de novo, talvez com uma outra linguagem. E tende a ser pior porque a nossa lei é boa. Esse pessoal tá lutando por isso achando que vai conseguir algo bom, a chance de ter um recrudescimento na legislação é real”, alerta.
Janaína critica o texto da petição e a estratégia do PSOL e do Instituto Bioética no texto, ao mencionar a ADPF 54 (que permitiu o aborto de fetos sem cérebro ou anencefálicos) como base jurídica para o pedido atual. Paschoal diz que sinalizações do Supremo sobre casos pontuais no passado não podem ser vistos como “matéria crescente”.
“É o contrário. O Supremo só julgou o caso de anencéfalos permitindo o aborto porque no Direito Penal, há o princípio da inexigibilidade de conduta diversa, ou seja, eles reconheceram que embora a vida intrauterina seja um valor tutelado (protegido), no feto com anencefalia a vida fica inviabilizada. Eles entenderam que o Estado não tinha o direito de obrigar toda a família a passar 9 meses preparando a cerimônia fúnebre do bebê. Tem toda uma teoria de princípios constitucionais por trás desta decisão do Supremo, não é uma porteira aberta pra qualquer coisa”, argumenta.
Já para Luciana Boiteux, o Congresso não pode simplesmente passar por cima de uma decisão do Supremo Tribunal Federal aprovando uma nova lei endurecendo as penas para as mulheres. "Faz parte dessa onda conservadora fazer ameaças e elas sempre são de retrocesso. Dentro de uma democracia, esperamos que os parlamentares respeitem uma decisão do Supremo. Nosso limite é a Constitucionalidade e qualquer movimento contrário seria entendido como um sintoma de autoritarismo, passível de responsabilização da autoridade pública e de denúncia a órgãos superiores internacionais", defende.
Com ameaças de morte e perseguições, diálogo se torna mais difícil
Tão logo a audiência pública começou a ter destaque na imprensa e nas redes sociais, Débora recebeu dezenas de agressões verbais e ameaças. Ela teria sido perseguida após uma palestra e tem sido procurada na UnB por pessoas que não fazem parte da comunidade acadêmica. Na segunda semana de agosto, foi orientada pela Polícia Civil a deixar Brasília e teve o nome incluído no programa de proteção à testemunha.
“Começaram a fazer campanha me desqualificando, me chamando de assassina, de monstro e me mandaram coisas mais graves. Depois me ligaram, me mandaram mensagens com ameaças mais explícitas”, relatou a professora à Correio Braziliense, no início do mês.
A polícia posteriormente encontrou um dos autores das ameaças: um homem de 42 anos, ligado a um grupo de extrema-direita já investigado em duas operações da Polícia Federal contra crimes de ódio racial cometidos na internet.
“O brasileiro acha que quando você critica uma ideia, um argumento, você está criticando a pessoa, então nós precisamos deste ‘treino’”, analisa.
No campo religioso, a questão também parece longe de consenso. Bispo auxiliar de Porto Alegre e membro da CNBB, Dom Leomar Brustolin defende que o “diálogo só deve acontecer quando submetido à vontade da maioria”. Ele também diz que a mediação precisa ser movida pelo princípio da proporcionalidade entre os direitos da mãe, mas também do feto. “Quem vai defender o feto? A mãe tem uma autonomia, o feto não tem, é vulnerável. A partir da nossa fé, a vida tem um valor inquestionável e inviolável, a vida é um bem, é dada e por isso a defendemos a partir da nossa fé e da nossa compreensão do que é o ser humano”.
Coordenadora do movimento “Católicas pelo Direito de Decidir”, Regina Jurkewicz discorda e diz que a defesa da vida nem sempre foi vista como valor fundamental na Igreja. De fato, a proibição do aborto e o entendimento da vida como se iniciando no momento da concepção é nova dentro da Igreja: data de 1869. Até então, valia a ideia de Santo Agostinho de que o processo de hominização — momento em que o corpo ganha alma — acontecia em períodos diferentes: de 40 dias para a mulher e 80 para homens. A posição só foi revista por Pio IX. Historiadores acreditam que a mudança, contestada à época por várias entidades como o Colegiado Belga de Bispos, se deu em atendimento a um pedido do Napoleão III, que lutava contra baixas taxas de natalidade no Império Francês e ofereceu proteção ao Vaticano em troca da ordem papal.
“A defesa da vida como um absoluto não é central na Igreja Católica porque se aceita o martírio, se aceita a Guerra Santa, onde vidas são tolhidas. É algo bastante abstrato e não se concretiza, especialmente quando se pensa na morte de mulheres, na vida infeliz de crianças não planejadas. Mais do que diz o Papa, este diálogo [sobre abortar ou não] precisa ser feito entre as mulheres e a sua própria consciência”, defende.
Repercussões internacionais
É na América Latina também que ficam as legislações mais duras em torno do tema. Pelo passado colonial fortemente ligado à religião, seis países permanecem proibindo o aborto em qualquer situação. Poucos fazem exceções em casos de estupro (Brasil, Panamá e, mais recentemente, o Chile) e só em outros sete países o aborto legal é regulamentado de alguma forma.
A diferença em relação ao resto do mundo tem feito crescer o apoio em torno do tema em todo o continente. A Argentina barrou por uma margem pequena de votos no Senado um projeto de lei com amplo respaldo popular pela legalização do aborto no país. A mobilização, no entanto, ganhou as ruas e ficou conhecida como “onda verde”.
Por aqui, a recusa em discutir o tema pode vir acompanhada de condenações internacionais. Diretora Executiva da Conectas Direitos Humanos, que possui status consultivo no Conselho de Direitos Humanos da ONU, Juana Kweitel acredita que o Brasil pode vir a ser condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos caso o tratamento a que muitas mulheres são submetidas por conta da proibição seja levado ao conhecimento dos juízes.
“E caso o STF acolha a pauta, vamos continuar trabalhando ativamente pela garantia do direito da mulher em abortar. Isso porque temos visto em países onde se permite, uma onda conservadora muito forte que tenta reverter. É preciso se manter vigilante”.
Juana Kweitel foi ativa participante no processo de convencimento que fez o Brasil se decidir pela recomendação do Vaticano na ONU em setembro do ano passado. Em uma lista de mais de 200 recomendações enviadas por vários países ao Estado brasileiro, a Santa Sé orientou que se continuasse “a proteger a família natural e o casamento, formado por marido e mulher, como a unidade fundamental da sociedade, e também os nascituros”. Entre outros efeitos, o Brasil poderia ser cobrado no Conselho de Direitos Humanos da ONU caso acatasse a recomendação e promovesse mudanças na legislação referente a união de pessoas do mesmo sexo e aborto. Após pressão, Brasília decidiu vetar a proposta.
Oficialmente, nem Rosa Weber nem Ministério da Saúde comentam ADPF
A Sputnik Brasil procurou a ministra Rosa Weber para discutir o assunto. Ela, porém, não discute casos em julgamento com a imprensa e declinou de dar entrevista. O único comentário sobre o tema dentro da Corte partiu do novo presidente do STF, o ministro Dias Toffoli. Ainda durante a posse, após pedido do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, Toffoli assumiu o compromisso de não pautar a ADPF 442 pelo menos até o fim do ano.
A Reportagem também solicitou ao Ministério da Saúde uma fonte que falasse sobre a posição oficial do Governo Federal. A Pasta recusou conceder servidores ou autoridades para entrevista, mas se manifestou por meio de nota.
"O SUS, nos últimos 10 anos, gastou cerca de R$ 500 milhões somente em tratamento das complicações de aborto. São estimadas mais de 250 mil internações por ano no SUS relacionadas ao aborto induzido (…) As complicações por aborto induzido representam a 4ª causa de morte materna. Para enfrentar essa situação, estamos ampliando a qualificação da atenção à saúde das mulheres por meio do planejamento familiar, da capacitação de profissionais de saúde, fortalecimento da Atenção Obstétrica por meio de ações estratégicas como a Rede Cegonha, humanização da atenção ao abortamento e redução de complicações obstétricas", informa o texto.
Embora não seja possível precisar em quanto tempo a ADPF será julgada, o histórico do Supremo tem mostrado que ações do tipo tramitam ao longo de pelo menos quatro anos. Luciana Boiteux, porém, diz que a mobilização não ficará em suspenso. "Não esperaremos sentadas, continuaremos lutando porque acreditamos ter argumentos sólidos para respaldar a questão e dar provimento ao pedido", finaliza.
*O nome completo da fonte foi preservado a pedido da entrevistada.