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Piratas da Amazônia: a disputa pelos rios que desafiam a segurança pública da região

© Rafa Neddermeyer/Agência BrasilEmbarcações circulam no rio Igarapé Tarumã-açu, na Região Metropolitana de Manaus. Amazonas, 22 de novembro de 2023
Embarcações circulam no rio Igarapé Tarumã-açu, na Região Metropolitana de Manaus. Amazonas, 22 de novembro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 01.02.2024
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A pouco mais de 360 quilômetros de Manaus, um município de 70,5 mil habitantes às margens do rio Solimões chama a atenção pelos problemas de cidade grande: disputas entre facções criminosas, milícia e tráfico de drogas que levaram a três assassinatos em apenas um dia no ano passado. Mas a fama de violência que Coari carrega é por outro motivo.
O pequeno município é conhecido como a "capital dos piratas", que são grupos de criminosos que atuam quase livremente nos rios. As hidrovias são o principal meio de locomoção das comunidades ao longo de cursos d'água como Solimões, Negro e Amazonas. De entreposto de drogas a mercado consumidor, a cidade convive diariamente com o medo e a insegurança e se tornou ponto de cooptação de piratas, geralmente com idades entre 17 e 40 anos, profundos conhecedores dos rios da região.
Mas o problema não é exclusivo de Coari e se alastra para toda a Amazônia. A Sputnik Brasil conversou com um agente da Polícia Federal (PF), que atua há décadas na região e pediu para não ser identificado. Apesar da falta de dados oficiais, policiais como ele que estão no dia a dia do combate ao crime possuem um veredito único: a pirataria é cada vez maior nos rios amazônicos.
"Percebi que essa questão é fruto de um recolhimento da presença do Estado, intensificada na região do Alto Solimões a partir de 2013, quando foram desmobilizadas as operações de fronteira", argumenta.
No rio Amazonas, que é a principal hidrovia da região, há uma divisão em dois trechos: de Tabatinga, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru a Manaus, com 1,7 mil quilômetros, e de Manaus a Belém, no Pará, com outros 1,6 mil quilômetros. De acordo com o agente, não há nenhum posto de fiscalização da PF em toda essa extensão.

"A atuação dos piratas é mais intensa entre Tefé, Alvarães e Fonte Boa [todas no Amazonas]. O estado instalou a Base Arpão [da Polícia Militar] para fiscalizar e tentar frear a ação dos piratas e traficantes, porém, há canais no rio que burlam essa atuação. O efetivo e as ações da polícia [local] também são insuficientes perante a amplitude da criminalidade", explica.

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Como são os piratas de hoje?

Termo que está no imaginário da população, os piratas de hoje não são aqueles criminosos do passado que faziam sucesso nos filmes pelas características singulares. Quase sempre fortemente armados e até com embarcações poderosas, podem ser encontrados em todo o mundo, a exemplo da Região Amazônica. Segundo o pesquisador e mestre em segurança pública pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Roberto Magno Reis Netto, há nomenclaturas mais apropriadas para esse grupo de criminosos.
"Acaba sendo mais fácil usar essa palavra para tratar as pessoas que praticam criminalidade nos rios ou no mar, mas ela não existe no Judiciário. Se eles estão envolvidos com o tráfico, são traficantes, ou com assaltos, cometem o crime de roubo, e por aí vai", pontua.
Já o agente da PF acrescenta que a pirataria atua nos moldes de uma milícia.
No Amazonas, esses criminosos têm como foco carregamentos de drogas que vêm do Peru e da Colômbia.

"As lanchas são abordadas por embarcações de piratas fortemente armados. As drogas, as armas e os motores [do barco] são tomados e, normalmente, os traficantes são mortos, por vezes até esquartejados, e jogados nos rios", revela.

Já no Pará, o alvo dos piratas é principalmente por meio de balsas, que carregam combustíveis e contêineres com diversas mercadorias e produtos eletrônicos. "Atuam a partir da cidade da Prainha e são quadrilhas fortemente armadas que tomam de assalto e sequestram balsas para retirar esses produtos. Essa modalidade de crime só faz crescer, e os principais rios da Amazônia passam por um processo de 'piratização'", explica.

Quem são os piratas da Amazônia

Desde 2022, o setor de inteligência da PF intensificou a fiscalização contra piratas que atacavam narcotraficantes e garimpeiros ilegais, em que eram registrados confrontos entre esses criminosos que contavam com o uso até de granadas e levavam pânico aos rios amazônicos.
O grupo até se passava por agentes da corporação, com lanchas que possuíam a inscrição da PF. Foi justamente na região próxima à fronteira com a Colômbia e o Peru, onde o tráfico é ainda mais intenso, que o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips foram assassinados no começo do ano passado.
Porém, o agente da PF relatou à Sputnik Brasil que, apesar das unidades de polícia marítima em Santarém, Belém, Manaus e Macapá, o efetivo é pequeno e as fotilhas (embarcações usadas nas fiscalizações e operações) estão sucateadas.

"A maior parte da frota é de 2008 ou ainda da década de 1990. Já as mais recentes são inapropriadas para o trabalho, não têm blindagem e motores adequados para o trabalho de patrulha fluvial", declarou.

"O efetivo é insuficiente, não há uma política de qualificação desses agentes, nem bonificação para esse tipo de trabalho, que é altamente perigoso", diz. Procurada, a corporação não respondeu aos questionamentos e o espaço segue aberto para uma eventual manifestação.
Já com relação a um possível apoio da Marinha do Brasil no combate aos piratas da Amazônia, seria necessário um decreto presidencial de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o que também não garantiria uma redução do problema, finaliza.
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PCC, CV e milícia: a reconfiguração do crime na Amazônia

Para entender o fenômeno da pirataria nos rios, o especialista em segurança pública Roberto Magno ressalta que antes é preciso voltar à reconfiguração das redes de criminalidade em toda a Região Amazônica nos últimos anos.
Diante da consolidação como uma nova rota para o escoamento das drogas produzidas na Colômbia e no Peru, a região também atraiu grandes facções brasileiras, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), que também passaram a disputar com grupos locais, como a Família do Norte (FDN), atualmente considerada extinta.
Conforme um estudo publicado no ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os estados da Amazônia contam com a presença de 22 organizações criminosas nacionais e estrangeiras em 178 municípios, onde vivem quase 60% da população. Além disso, quase um terço dos moradores convivem com localidades que possuem disputas por poder e território entre as organizações. Há também possíveis envolvimentos até de grandes autoridades com o crime: no ano passado, o então secretário de Estado de Segurança Pública, general Carlos Alberto Mansur, chegou a ser preso e também investigado por extorsão contra as próprias organizações criminosas.

"A reconfiguração da criminalidade mudou as relações econômicas, ou seja, quem passou a se envolver adquiriu mais recursos e poder. Então, a presença desses agentes criminosos, incluindo as facções, trouxe mais dinheiro para que essas pessoas adquirissem armas e realizassem mais atividades criminosas como um todo. E, para instrumentalizar o trabalho deles, passam também a realizar outras atividades como roubo de cargas, embarcações e combustíveis", resume.

Tudo isso também alterou as características dos piratas, cada vez mais armados. "O enfrentamento à criminalidade nos rios tem feito também com que essas organizações cooptem cada vez mais as comunidades tradicionais de ribeirinhos. Mas a pirataria já é antiga, eram de roubo mesmo, sem vinculação com o tráfico, com ataques aos próprios ribeirinhos ou às embarcações de turismo. É um fenômeno relativamente comum aqui, mas os dados específicos sobre a questão da pirataria sempre foram escassos", diz.
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Tem pirata no Brasil?

Mesmo com piratas no Brasil, os dados sobre esses criminosos praticamente não existem, seja por atuarem em regiões muito isoladas ou até por falta de efetividade das forças de segurança. "Quanto às facções, sabe-se quem são as lideranças, tanto as políticas quanto a administração carcerária. E com relação aos piratas, por que não se sabe?", questionou Fabio Magalhães Candotti, coordenador do coletivo de pesquisa Ilhargas — Cidades, Políticas e Violências, da Universidade Federal do Amazonas.
Outra questão é com relação à ausência de estatísticas sobre o roubo, por piratas, de mercadorias consideradas ilegais, como drogas, produtos do garimpo não legalizado e até madeira.

"Diferentemente de facções, em que existem relatórios e grandes operações, até pavilhões dedicados exclusivamente a seus membros no sistema penitenciário, os piratas não aparecem como uma facção bem delimitada, com lideranças. Só aparecem notícias, às vezes de pessoas de organizações envolvidas com piratas, ou de policiais nesse tipo de pirataria", acrescenta.

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