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Afeganistão, Ucrânia e Israel: insucessos consecutivos dos EUA provam o declínio da Pax Americana?

© AP Photo / Michael ClubbBandeira dos Estados Unidos sobre escombros após um tornado em Dawson Springs, no estado do Kentucky. EUA, 12 de dezembro de 2021
Bandeira dos Estados Unidos sobre escombros após um tornado em Dawson Springs, no estado do Kentucky. EUA, 12 de dezembro de 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 31.05.2024
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Em entrevista à Sputnik Brasil, historiadores afirmam que a elite política dos EUA ainda não percebeu que o país não é mais a potência de antes e alertam que Washington pode agravar o uso da força para tentar conter a erosão de sua hegemonia.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos se consolidaram como a maior potência global bélica e econômica. Porém, esse posto está sob contestação diante da ascensão da multipolaridade e das três derrotas consecutivas recentes colecionadas por Washington em confrontos bélicos e entraves diplomáticos.
A primeira derrota foi no Afeganistão. Após 20 anos de ocupação, os EUA bateram em retirada do país em 2021, sem apresentar resultados concretos na consolidação da democracia e entregando o controle ao Talibã e à Al-Qaeda (organizações terroristas proibidas na Rússia e em vários outros países), os dois grupos que motivaram a invasão dos Estados Unidos ao Afeganistão após os ataques do 11 de Setembro.
Um ano depois, Washington interviu no conflito entre Rússia e Ucrânia liderando o apoio a Kiev por meio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e exortando aliados a impor sanções ao petróleo e gás russo, uma estratégia que se provou um tiro pela culatra, uma vez que o embargo desencadeou uma crise energética na Europa e nos EUA.
Nos últimos meses, o governo do presidente estadunidense, Joe Biden, se vê isolado em seu apoio incondicional a Israel, em um momento que a comunidade internacional condena e denuncia como genocídio a ofensiva israelense na Faixa de Gaza.
Diante dos fatos, é levantada a questão: a era da chamada Pax Americana está em declínio? Para responder a essa pergunta, a Sputnik Brasil conversou com os historiadores Sidnei J. Munhoz, historiador e professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM), do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e autor de Guerra Fria: história e historiografia (2020); e Francisco Carlos Teixeira, professor titular da cadeira de história moderna e contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Declínio da hegemonia dos EUA começou no Vietnã

Munhoz aborda a atual situação ucraniana enfatizando que após a Guerra Fria não ocorreu a instituição de uma nova ordem global, mas sim "a expansão da ordem vitoriosa naquele conflito de dimensões mundiais às expensas da potência que se esfacelava", a União Soviética (URSS). Ele destaca que nesse período foi prometido a Mikhail Gorbachev, então dirigente soviético, "que se ele não interviesse no processo em andamento, a OTAN não expandiria uma polegada em direção às regiões soviéticas".
"A promessa não foi cumprida e o seu descumprimento está na gênese da crise que levou à intervenção da sucessora da URSS, a Rússia, na Ucrânia."
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Ele aponta para uma análise feita por Jack Matlock, ex-embaixador dos Estados Unidos na União Soviética durante o período Reagan-Bush/Gorbachev, que destacou que o conflito entre Rússia e Ucrânia "era perfeitamente evitável e o que [o presidente russo] Vladimir Putin solicitava era bastante razoável".

"Bastava que a Ucrânia assumisse um compromisso de neutralidade e não aderisse à OTAN. No entanto, o pedido não foi atendido e a Rússia iniciou uma ação armada contra a Ucrânia. Em grande medida, a Ucrânia está sendo destruída pelo envolvimento irresponsável por parte do seu governo em um conflito entre duas potências. Tomar o lado da adversária, quando se faz fronteira com a potência da qual já foi parte constituinte, foi colocar toda a população ucraniana sob risco incomensurável."

Sobre o declínio da Pax Americana, Munhoz afirma que isso vem ocorrendo gradativamente desde a Guerra do Vietnã. Ele pontua que o país ainda detém peso econômico, poderio bélico e comando de organismos internacionais, mas enfrenta "uma contínua crise de hegemonia há seguramente meio século".
"Os EUA possuem muitos recursos econômicos, políticos, militares e culturais e os têm empregado para sustentar um possível segundo século de hegemonia global. O grande problema desse cenário é que historicamente toda vez que um hegemonista está sofrendo uma erosão da sua capacidade de sedução e de atração, ele passa cada vez mais a empregar a força para obter aquilo que antes lhe era fornecido por adesão razoavelmente voluntária. Em síntese, o cenário global aponta para um processo de incremento de conflitos que se fugirem ao controle podem ganhar uma dimensão global", explica.

"Ao considerarmos o poderio bélico e, em especial, a capacidade nuclear instalada das maiores potências do planeta, um novo conflito global poderia significar o fim da civilização humana, como a conhecemos e, mais ainda, ameaçaria toda a vida no planeta", acrescenta.

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Segundo Munhoz, esse cenário é agravado pelas mudanças que se tem observado na Europa Ocidental, que durante muito tempo "se acostumou a estar sob o guarda-chuva protetor dos Estados Unidos, embora isso implicasse, a grosso modo, em subserviência".
"Isso foi vantajoso durante muito tempo, pois os EUA financiaram a reconstrução da Europa Ocidental após a Segunda Guerra Mundial, por intermédio do Plano Marshall. O plano possuía ao menos dois objetivos distintos. Em primeiro lugar, conter a possibilidade de influência soviética na Europa e, dessa forma, fazer parte da estratégia de contenção à URSS. De modo correlato, o plano visava ao atendimento das demandas do capitalismo estadunidense, pois tinha por objetivo redirecionar o modelo de capitalismo europeu e moldá-lo às necessidades estadunidenses."
Ele acrescenta que a URSS foi convidada a fazer parte do plano, mas recusou porque uma das condicionantes de Washington era "o acesso às informações econômicas e às contas públicas dos países que aderissem".

"Observo que hoje, para ficarmos em apenas um exemplo, a Europa — em decorrência do posicionamento da Comunidade Europeia em associação com a OTAN — está comprando gás muito mais caro do que comprava da Rússia. Isso está tendo um impacto enorme na economia do continente e, mesmo, na economia alemã, a mais robusta e sólida do continente apresentou uma performance adversa em 2023. Além disso, as economias europeias estão perdendo competitividade, o que pode ser desastroso para o continente", destaca.

Munhoz aponta que, paralelamente, ocorre na Europa um movimento no sentido de garantir "uma maior autonomia bélica em relação aos Estados Unidos".
"Conforme aponta [o cientista político] José Luís Fiori, a Alemanha está mudando a base de sua indústria e está assumindo um projeto de se tornar a espinha dorsal de dissuasão e defesa coletiva da Europa. Em outras palavras, está iniciando um projeto de investimentos robustos na produção de armamentos, de forma a se tornar uma grande potência bélica", afirma.

"Quais serão as implicações dessa mudança de curso para a economia alemã e europeia e quais serão as implicações globais desse novo percurso? O tempo nos dará respostas muito em breve. Considero o cenário atual extremamente preocupante, pois está havendo um esgarçamento das possibilidades de negociação. Nesse contexto, a possibilidade de expansão descontrolada dos conflitos emergentes é imensa", complementa.

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Ele ressalta ainda que a recente decisão de Biden de autorizar a Ucrânia a usar armas dos EUA em ataques contra alvos militares em territórios da Rússia agrava a situação e deixa o mundo "assombrado pela real possibilidade da escalada do conflito".
"Essa decisão terá consequências e, certamente, acelerará a escalada do conflito", afirma o historiador.

Apoio a Israel prova incapacidade dos EUA de serem um líder político e moral

Para Francisco Carlos Teixeira, "os Estados Unidos estão vivendo uma das fases mais complexas e difíceis de sua história de política externa". Ele aponta que a ascensão de novos atores, entre eles China, Índia e Brasil, "fazem com que o poder americano não seja mais uma força inconteste no mundo".
Teixeira acrescenta que a retirada do Afeganistão, repetindo a tragédia do Vietnã, é uma prova clara de que após duas décadas "de guerra, mortes e sofrimento, os EUA não conseguem impor sua política nem a países, nem a movimentos sociais do terceiro mundo extremamente precários nas suas condições de luta".

"A imensa panóplia militar americana não garante, de forma alguma, resultados políticos. Nesse sentido, os Estados Unidos acabam optando por formas obscuras de guerra híbrida, de guerra interna, fomentando a desestabilização de países inteiros, como aconteceu, por exemplo, na Síria e na Líbia, com resultados catastróficos para a população", afirma.

O historiador afirma que a elite política dos EUA, particularmente a elite burocrática do Partido Democrata, não percebe que o país "não é mais a potência que era em 1950 ou, mesmo, em 1980", nem "as mudanças que se deram no mundo desde 2001".
Ele cita como exemplo o fato de os Estados Unidos manterem "sua aliança umbilical com Israel, mesmo com hoje o mundo inteiro e as organizações internacionais da ONU [Organização das Nações Unidas] até o Tribunal de Haia considerarem que o governo de Israel é um governo criminoso que comete seguidos crimes de guerra e crimes contra a humanidade".

"Os EUA perderam a capacidade de ser um guia, não só um guia político, mas também um guia moral e falar em nome de direitos humanos e de democracia. Cada vez que o governo dos Estados Unidos fala em democracia e em direitos humanos, ele comete um estelionato político. Na verdade, hoje o governo americano se identifica com as forças mais tradicionalmente conservadoras, reacionárias e mesmo fascistas na violação dos direitos humanos e das condições mínimas de convivência harmônica numa ordem mundial."

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