Com F-16, OTAN segue dando 'armamentos obsoletos a conta-gotas' para Ucrânia, diz analista
11:12 26.07.2024 (atualizado: 16:29 01.08.2024)
© AP Photo / Toby TalbotUm caça F-16 decola com pós-combustores carregados de mísseis Sidewinder ativos da base da Guarda Aérea Nacional em South Burlington, Vermont, EUA, dezembro de 2001
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OTAN promete novamente a Kiev o envio de caças F-16, apesar dos altos custos e baixo impacto no campo de batalha. Segundo analista, países da OTAN não são altruístas e oferecem caças F-16 antigos para poder adquirir modelos mais novos.
A OTAN se prepara para enviar caças norte-americanos F-16 para a Ucrânia nos próximos meses, no intuito declarado de contestar o domínio dos ares russo. Com infraestrutura insuficiente e capacidade de defesa antiaérea diminuta, Kiev terá dificuldade de garantir a efetividade do uso destas aeronaves, acreditam especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil.
Durante a Conferência da Aliança Militar do Atlântico Norte (OTAN), realizada em Washington entre os dias 9 e 11 de julho, os países ocidentais prometeram o envio de até 65 aeronaves F-16 para Kiev, o que dobraria o número de caças à disposição da Força Aérea ucraniana, composta majoritariamente de aeronaves de origem russa e soviética MiG-29 e Su-27.
No início de julho, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, declarou que aeronaves F-16 já teriam deixado o território de países como Dinamarca e Países Baixos a caminho da Ucrânia. No entanto, ainda não está claro se as aeronaves já estariam em solo ucraniano.
"O processo de transferência desses F-16 está em andamento, e a Ucrânia estará voando com F-16 operacionais neste verão [Hemisfério Norte]. Não podemos fornecer detalhes adicionais neste momento devido a preocupações com a segurança operacional", versa a declaração de líderes dos EUA, Países Baixos e Dinamarca emitida após a conferência da OTAN em Washington.
Nas últimas semanas, as forças russas retomaram a realização de ataques em bases aéreas ucranianas, no intuito de danificar aeronaves adversárias ainda em solo. Bases aéreas como Mirgorod e Krivoi Rog, na região central do país, e a de Starokonstantinov, à leste da capital Kiev, teriam sido atingidas por mísseis russos Iskander, de acordo com vídeos publicados pelo Ministério da Defesa da Rússia.
Essa não é a primeira vez que a OTAN sugere o envio de caças F-16 para a Ucrânia. No passado, a aliança chegou a aventar a possibilidade de enviar mais de 80 unidades para Kiev, o que não se concretizou. Além da baixa disponibilidade de caças F-16 disponíveis dentro da aliança, existem dificuldades logísticas em transportar essas armas até bases aéreas em território ucraniano.
"A distância das bases áreas da OTAN até a base de Starokonstantinov – a única que possui hangares protegidos subterrâneos para abrigar essas armas – não é curta, o que gera problemas logísticos", disse o doutor em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE), Fabrício Ávila, à Sputnik Brasil.
Moradores da cidade de Starokonstantinov, que abriga a base aérea, expressam preocupação quanto à chegada dos caças norte-americanos, que transformarão a região em alvo prioritário para as forças russas, reportou a AFP.
"Estou com medo da chegada dos F-16. Não sei o que acontecerá com a cidade se eles vierem para cá," declarou um morador de Starokonstantinov a repórteres.
Considerando que o manejo de aeronaves norte-americanas será uma novidade para a Força Aérea ucraniana, que tem larga experiência no uso de caças soviéticos, Kiev enfrentará dificuldades para integrar os F-16 aos seus sistemas de defesa aérea.
© AFP 2023 / Roberto Schmidt Os ministros da Defesa da Polônia, Wladyslaw Kosiniak-Kamysz; da Itália, Guido Crosetto; e da França, Sebastian Lecornu, assinam uma Carta de Intenções sobre uma “Abordagem Europeia de Ataque de Longo Alcance”, ou ELSA, que visa melhorar a capacidade, como europeus, de desenvolver, produzir e entregar capacidades na área de ataque de longo alcance, à margem da cúpula do 75º aniversário da OTAN, em 11 de julho de 2024
Os ministros da Defesa da Polônia, Wladyslaw Kosiniak-Kamysz; da Itália, Guido Crosetto; e da França, Sebastian Lecornu, assinam uma Carta de Intenções sobre uma “Abordagem Europeia de Ataque de Longo Alcance”, ou ELSA, que visa melhorar a capacidade, como europeus, de desenvolver, produzir e entregar capacidades na área de ataque de longo alcance, à margem da cúpula do 75º aniversário da OTAN, em 11 de julho de 2024
© AFP 2023 / Roberto Schmidt
"Aeronaves F-16 são produzidas há muitas décadas, e a expectativa é que a Ucrânia receba modelos da década de 90. Serão necessárias adaptações e modernização da parte eletrônica e aviônica, para que elas se mantenham funcionais", disse o professor do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) e pesquisador do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE) João Gabriel Burmann à Sputnik Brasil.
Além disso, essas aeronaves demandam pistas de pouso e decolagem em estado impecável, condições que a Ucrânia teria dificuldades para providenciar sem reformas abrangentes na sua infraestrutura aérea. No entanto, qualquer reforma seria facilmente identificada pelo sistema de vigilância russo, que conta com satélites e drones de observação.
Burmann ainda nota que o treinamento de pilotos ucranianos é "um dos grandes gargalos para a entrega" de caças F-16 para a Ucrânia, "já que a aviônica e as partes de combate são muito distintas das aeronaves soviéticas".
"O treinamento do pouso em área acidentada também é um obstáculo, assim como o pouso carregando armamentos que não foram totalmente despejados sobre o inimigo, que muitas vezes são muito caros", disse o presidente do ISAPE Ávila. "O treinamento de um piloto de F-16 em nível avançado pode levar até quatro anos e custar cerca de US$ 5 milhões [cerca de R$ 28 milhões]."
Além da dificuldade técnica, os pilotos ucranianos "foram acostumados durante toda a sua carreira a pilotar jatos MiG-29, e agora terão que mudar totalmente a chave mentalmente para se adaptar ao F-16 e ao padrão OTAN", disse Ávila. Segundo ele, os ucranianos vivem o dilema entre treinar pilotos do zero ou aproveitar seus pilotos experientes, mas formados em outra escola de aviação.
© Foto / Força Aérea da UcrâniaCaça MiG-29 da Força Aérea ucraniana com novos pilones
Caça MiG-29 da Força Aérea ucraniana com novos pilones
© Foto / Força Aérea da Ucrânia
"O risco de acidente aéreo para o piloto ucraniano é significativo, não só por estarem lidando com treinamento em outra língua, mas também com aeronaves [F-16] que são antigas, muitas vezes em operação desde o final da década de setenta", notou.
O complexo processo de treinamento aumenta ainda mais os custos de cada F-16 abatido ou eliminado em solo pela Rússia, levando a Ucrânia a tratar tanto os pilotos quanto os caças como "um trunfo, uma arma a ser guardada e muito bem preservada", considerou Burmann.
Impacto no campo de batalha
O número insuficiente de caças F-16 a serem fornecidos para a Ucrânia, o alto nível de investimento por aeronave e a atual situação de domínio dos ares russo no campo de batalha diminuem sobremaneira o impacto dessas armas no campo de batalha, acreditam os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil.
"A Rússia conseguiu praticamente deixar a Força Aérea ucraniana fora de combate desde o início do conflito", disse Ávila. "A superioridade aérea da Rússia é patente, mas se mantém pelas debilidades ucranianas e pela impossibilidade da OTAN de repor alguns armamentos."
O especialista ainda nota que o custo de desenvolvimento de forças aéreas são normalmente 50% mais elevado do que de forças terrestres, "o que vai comprometer ainda mais os recursos ucranianos, que já são escassos".
"Estamos falando de um gasto de US$ 6 mil [cerca de R$ 33 mil] a US$ 28 mil [cerca de R$ 157 mil] por hora para manter um caça F-16 em voo", calculou Ávila. "Tudo isso para decolar de uma base aérea desprotegida, lançar um míssil que, ao contrário do que a mídia diz, será de curto alcance e ficar à mercê da guerra eletrônica russa."
Estrategistas em Moscou já se preparam para a eventual chegada dos F-16 no teatro de guerra ucraniano, instalando sistemas de defesa antiaérea S-300 e S-400 adicionais na região de Donbass, adiantou Ávila.
"Na minha opinião, esse é mais um evento midiático do que algo que realmente terá impacto no conflito", considerou Ávila. "É mais um armamento obsoleto dado aos ucranianos de forma restrita e a conta-gotas."
Apesar do baixo impacto que os F-16 poderão ter para os ganhos militares reais da Ucrânia, eles são capazes de escalar as tensões nucleares entre Rússia e OTAN que, segundo avaliação do próprio presidente dos EUA Joe Biden, já estão no nível mais elevado desde a crise dos mísseis em Cuba, em 1962.
"A OTAN mantém armamentos nucleares dos EUA, mas que seriam transportados ao alvo por caças de outros países da Europa, como Itália e Bélgica. Até agora, a capacidade da OTAN era de transportar armas nucleares ao território de Kaliningrado. Considerando que o raio de combate do F-16 é de 500 quilômetros, podemos dizer que a OTAN está testando a sua doutrina de combate de emprego de armas nucleares táticas com possível penetração no território russo", disse Ávila.
Ainda em março deste ano, o presidente russo Vladimir Putin tratou do tema e alertou que a Rússia poderá reconsiderar sua posição e considerar bases aéreas que recebam esses F-16 como alvos legítimos de suas Forças Armadas.
"Os F-16 são capazes de carregar armas nucleares, e nós precisaremos levar isso em consideração quando organizarmos nossas operações de combate", disse o presidente Putin.
Por outro lado, o interesse da OTAN no fornecimento dessas aeronaves à Ucrânia pode não estar relacionado aos avanços militares de Kiev ou à escalada nuclear, mas sim à compra de novas aeronaves por parte de países ocidentais. De acordo com Burmann, países como Dinamarca, Países Baixos e EUA comprarão caças mais modernos após fornecer F-16 de gerações mais antigas a Kiev.
"Cada aeronave enviada para a Ucrânia será substituída em casa por um modelo mais recente. Isso gera maior dinamismo para as suas próprias indústrias de defesa e aumenta a demanda pela produção de aeronaves. Por isso, esses países não estão sendo completamente altruístas", concluiu o especialista.