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Contramão: enquanto Israel e Ucrânia clamam por munição, Brasil abre mão de fábrica, diz analista

© Sputnik / Konstantin MikhalchevskyUm militar russo de uma unidade antiaérea móvel carrega munição para uma metralhadora DShK na traseira de um caminhão UAZ enquanto está em serviço de combate para repelir ataques de veículos aéreos não tripulados ucranianos durante a operação militar especial da Rússia na Ucrânia
Um militar russo de uma unidade antiaérea móvel carrega munição para uma metralhadora DShK na traseira de um caminhão UAZ enquanto está em serviço de combate para repelir ataques de veículos aéreos não tripulados ucranianos durante a operação militar especial da Rússia na Ucrânia - Sputnik Brasil, 1920, 01.08.2024
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Marinha do Brasil decide pela concessão da principal fábrica de munições do país ao capital estrangeiro, em mais um golpe à base industrial de defesa nacional. Nova onda de privatizações de empresas militares brasileiras em contexto geopolítico desfavorável agrava vulnerabilidade nacional, diz analista à Sputnik Brasil.
Nesta quarta-feira (31), a empresa vinculada à Marinha do Brasil EMGEPRON confirmou a sua intenção de conceder uma das principais fábricas de munição brasileiras ao capital estrangeiro. A concessão da Fábrica de Munição Almirante Jurandyr da Costa Müller de Campos foi ofertada a empresas de Reino Unido, Suécia, Itália e Israel durante evento realizado no Itaim, em São Paulo.
De acordo com a Marinha, a Empresa Gerencial de Projetos Navais (EMGEPRON), em parceria com a Diretoria de Sistemas de Armas da Marinha (DSAM), realizou um "road show" no centro financeiro paulistano, visando a entrega da Fábrica de Munição Almirante Jurandyr da Costa Müller de Campos (FAJCMC) à iniciativa privada.
© AFP 2023 / Ludovic Marin Soldados da Marinha do Brasil montam guarda durante o lançamento do submarino Tonelero na Base Naval de Itaguaí, em Itaguaí, Estado do Rio de Janeiro, Brasil, em 27 de março de 2024
Soldados da Marinha do Brasil montam guarda durante o lançamento do submarino Tonelero na Base Naval de Itaguaí, em Itaguaí, Estado do Rio de Janeiro, Brasil, em 27 de março de 2024 - Sputnik Brasil, 1920, 01.08.2024
Soldados da Marinha do Brasil montam guarda durante o lançamento do submarino Tonelero na Base Naval de Itaguaí, em Itaguaí, Estado do Rio de Janeiro, Brasil, em 27 de março de 2024
A intenção da força é angariar fundos para a "modernização da fábrica" por meio da implementação de "novo modelo de gestão" que alavanque o empreendimento. A Marinha promete publicar os editais ainda neste semestre e concluir a concessão da fábrica por até 20 anos.
O bom desempenho nacional e internacional da Fábrica Müller de Campos anima os investidores. Advogado que atua nas tratativas defendeu a concessão, lembrando que "a fábrica é uma das principais produtoras de artefatos militares do mundo e, a partir da concessão à iniciativa privada, certamente vai gerar mais receita", reportou o portal Metrópoles.
De fato, a fábrica opera a contento, produzindo munições de qualidade para as Forças Armadas e exportando o seu excedente para parceiros do Brasil no Sul Global. Então, afinal, para que abrir mão dessa fábrica estratégica para o Brasil? A Sputnik Brasil conversou com especialistas para compreender os motivos por trás de mais uma privatização na Base Industrial de Defesa (BID) brasileira.

"Infelizmente, a privatização de fábricas de defesa não é novidade no Brasil. Existe uma ideia de que toda empresa que não dá lucro está dando prejuízo ao Estado brasileiro", disse o pesquisador do Núcleo de Avaliação da Conjuntura da Escola de Guerra Naval, Rafael Esteves Gomes, à Sputnik Brasil. "Mas sabemos que em setores estratégicos a lógica de mercado se aplica de forma um pouco diferente."

De acordo com o especialista, a concessão da fábrica consiste em "uma estratégia equivocada, que afeta uma área muito sensível para as Forças Armadas que é a de munições. Convenhamos que nada funciona sem munições".
© AP Photo / Matt RourkeFuncionária de indústria metalúrgica move um projétil de artilharia M795, de 155 mm, durante o processo de produção na fábrica de munições do Exército em Scranton, Pensilvânia. EUA, 13 de abril de 2023
Funcionária de indústria metalúrgica move um projétil de artilharia M795, de 155 mm, durante o processo de produção na fábrica de munições do Exército em Scranton, Pensilvânia. EUA, 13 de abril de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 01.08.2024
Funcionária de indústria metalúrgica move um projétil de artilharia M795, de 155 mm, durante o processo de produção na fábrica de munições do Exército em Scranton, Pensilvânia. EUA, 13 de abril de 2023
A notícia sobre a concessão da Fábrica de Munição Almirante Jurandyr da Costa Müller de Campos agrava os ânimos de setores nacionalistas da sociedade brasileira, já insatisfeitos com a possível venda da fábrica de foguetes Avibrás ao capital estrangeiro.
"O Brasil não está olhando para o contexto internacional quando decide abrir mão de fábricas de munições ou da Avibrás", disse o especialista militar e oficial da reserva da Marinha do Brasil Robinson Farinazzo à Sputnik Brasil. "Estamos em um momento tenso geopoliticamente, com as principais potências se rearmando até os dentes. E o Brasil, ao contrário, abrindo mão das suas capacidades militares e tecnológicas."
Conflitos de larga escala sendo travados na Ucrânia e no entorno de Israel demonstram o caráter essencial das munições no campo de batalha. O Brasil se encontra em posição confortável nessa área, justamente pela produção nacional desses artefatos pela Fábrica Müller de Campos.
"Vemos os EUA modernizando suas fábricas de munição a toque de caixa, vemos as Forças Armadas de Israel e Ucrânia desesperadas atrás de munições no mercado mundial. E o Brasil, por incrível que pareça, se desfazendo da sua fábrica", considerou Farinazzo. "A fábrica tem bons balanços, exporta e é bem-sucedida, não sei qual o cálculo por trás dessa decisão."
A concessão da fábrica ao capital internacional também surpreende, uma vez que a Marinha poderia prospectar empresas brasileiras interessadas na empreitada. Como evidenciado no caso da Avibrás, bancos brasileiros demonstram resistência em participar de investimentos na área de defesa.
© AP Photo / Alex BrandonCarregamento de munições para envio à Ucrânia na base da Força Aérea do EUA em Dover
Carregamento de munições para envio à Ucrânia na base da Força Aérea do EUA em Dover - Sputnik Brasil, 1920, 01.08.2024
Carregamento de munições para envio à Ucrânia na base da Força Aérea do EUA em Dover
"A verdade é que não há nenhuma política para priorizar as compras nacionais", lamentou Farinazzo. "Este é um problema antigo, uma vez que o rearmamento das Forças Armadas deveria estar atrelado ao desenvolvimento da indústria nacional."
O aumento da presença estrangeira nas indústrias de defesa nacionais amplia o já considerável nível de dependência externa que as Forças Armadas enfrentam, particularmente no setor de aviação. Nesse sentido, a redução do comprometimento do Executivo com políticas de conteúdo nacional e desenvolvimento tecnológico nacional preocupa.
"Falemos claramente: outros países não repassarão tecnologia militar de ponta para o Brasil", considerou Farinazzo. "Ninguém vai te ensinar a fazer procedimentos sensíveis na área militar. O Brasil é quem precisa desenvolver suas capacidades e autonomia."
Apesar dos problemas estruturais, Gomes acredita que a sociedade civil organizada poderá agir contra a concessão da Fábrica Müller de Campos ao capital estrangeiro. O especialista cita como exemplo a recente resistência à venda da Avibrás no Congresso Nacional.
© Foto / Divulgação / AvibrásLançamento de foguete pelo sistema de mísseis Astros II brasileiro
Lançamento de foguete pelo sistema de mísseis Astros II brasileiro - Sputnik Brasil, 1920, 01.08.2024
Lançamento de foguete pelo sistema de mísseis Astros II brasileiro
"O projeto de lei sobre a reestatização da Avibrás mostra que existem setores no Brasil que são contra a concessão de empresas da BID a grupos estrangeiros, principalmente no Congresso", disse Gomes. "A mesma mobilização poderá ser feita agora em relação a essa fábrica de munições."

Ponta do iceberg

A concessão da Fábrica Müller de Campos se insere em um contexto mais amplo de retomada da penetração dos EUA e seus aliados da OTAN no setor de defesa brasileiro. As dificuldades dos EUA em manter a sua posição estratégica em regiões como Oriente Médio e África, aliada aos revezes sofridos no conflito ucraniano, levam os EUA a recrudescer o controle sobre o seu entorno geográfico, explica o oficial da reserva da Marinha do Brasil.

"O que sobra para os EUA nesse contexto são o seu quintal América Latina. A intenção é criar um clientelismo militar na América Latina, de maneira que, em caso de conflito, a região não tenha para onde correr", disse Farinazzo. "Já vemos os EUA fomentando a dependência das Forças Armadas de países como Argentina e Colômbia, vemos as pressões sobre o Peru e Equador. O Brasil precisa se preparar para isso e buscar um caminho para garantir a sua independência."

O aumento das pressões norte-americanas sobre a base industrial de defesa brasileira é evidenciado pelo caso da Avibrás, quando Washington fez gestões para que a empresa chinesa Norinco não fosse considerada como possível compradora da empresa responsável pelos foguetes Astro.
© flickr.com / Tech. Sgt. Brigette WaltermireAla de operações especiais da Guarda Nacional dos EUA embarca em um helicóptero UH-60 Black Hawk durante o exercício Tradewinds 23, na Guiana, em 19 de julho de 2023
Ala de operações especiais da Guarda Nacional dos EUA embarca em um helicóptero UH-60 Black Hawk durante o exercício Tradewinds 23, na Guiana, em 19 de julho de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 01.08.2024
Ala de operações especiais da Guarda Nacional dos EUA embarca em um helicóptero UH-60 Black Hawk durante o exercício Tradewinds 23, na Guiana, em 19 de julho de 2023
Além disso, há renovado entusiasmo norte-americano na venda de seus equipamentos militares para o Brasil. Ainda que obsoletas, essas armas mantêm as Forças Armadas brasileiras atreladas aos padrões da OTAN. Exemplos são a recente compra brasileira de helicópteros Black Hawk e negociações para arrematar um lote de caças F-16 usados.

Governo ausente

A mais nova onda de privatizações e concessões de empresas de defesa brasileiras ocorre justamente durante um governo ligado à esquerda, que tradicionalmente adotava posições nacionalistas quanto à indústria brasileira. No entanto, as limitações políticas e financeiras do governo reduzem o papel de Lula e do Palácio do Planalto nas tratativas referentes à BID, lamenta Gomes.
"O governo infelizmente está dando pouca atenção para a indústria de defesa, o que é preocupante. Prometeu investir, mas não entregou", disse o pesquisador da Escola de Guerra Naval. "O marco fiscal é um dos motivos pelos quais o governo resiste a investir mais na BID ou a assumir a dívida da Avibrás, por exemplo."
Conforme reportado pela Agência Brasil, o governo federal não se disponibilizou a arcar com a dívida da Avibrás, estimada em R$ 700 milhões, ou estatizar definitivamente a empresa. De acordo com o deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP), "não há condições, nesse momento, de financeiramente o governo entrar nessa".
© Fabio Rodrigues-Pozzebom / Agência BrasilO presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro da Fazenda Fernando Haddad na sessão de Sherpas do G20, no Palácio do Itamaraty, Brasília, em 13 de dezembro de 2023.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro da Fazenda Fernando Haddad na sessão de Sherpas do G20, no Palácio do Itamaraty, Brasília, em 13 de dezembro de 2023. - Sputnik Brasil, 1920, 01.08.2024
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro da Fazenda Fernando Haddad na sessão de Sherpas do G20, no Palácio do Itamaraty, Brasília, em 13 de dezembro de 2023.
"O orçamento de defesa do Brasil cresce em números absolutos, mas não em porcentagem do PIB, permanecendo na casa dos 1,5%", avaliou Gomes. "Isso se demonstra insuficiente para a modernização das Forças Armadas, que buscam outras alternativas para atrair investimentos e manter os seus projetos funcionando."
Na avaliação de Gomes, a concessão à iniciativa privada é uma forma de levantar fundos para bancar projetos estratégicos, já que os R$ 127 bilhões garantidos pelo governo à defesa são majoritariamente revertidos para gastos de pessoal e administrativos.
"Afirmar que o Brasil tem o objetivo de modernizar as suas Forças Armadas, mas manter o investimento em defesa baixo e revertido para o pagamento de pessoal me parece, para o dizer o mínimo, uma incongruência", concluiu o especialista.
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