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Unilateralismo made in USA: imagem dos EUA como defensores da democracia 'já ruiu', diz analista

© AP Photo / Julio CortezBandeira dos EUA serve de pano de fundo para a decoração de entrada de uma residência na manhã seguinte a um tornado mortal em Valley View, Texas. EUA, 26 de maio de 2024
Bandeira dos EUA serve de pano de fundo para a decoração de entrada de uma residência na manhã seguinte a um tornado mortal em Valley View, Texas. EUA, 26 de maio de 2024 - Sputnik Brasil, 1920, 30.10.2024
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À Sputnik Brasil, analistas explicam que os EUA construíram sua hegemonia por meio da força, mas chancelados por instituições globais, como a ONU. Porém, a invasão do Iraque marcou o início de uma nova fase, na qual passaram a ignorar a opinião da comunidade internacional, arruinando sua própria imagem de "defensores da democracia".
A violência que marca o processo eleitoral dos EUA espelha a própria história do país, permeada de confrontos diretos e indiretos. Prova disso é que quase todos os ex-presidentes americanos tiveram uma guerra para chamar de sua.
Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas explicam como o patrocínio a guerras e o discurso belicoso serviram de motores propulsores da projeção da hegemonia americana e por que essa tática vem ruindo, sobretudo com a ascensão do Sul Global.
José Renato Ferraz da Silveira, professor de relações internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), explica que a história dos EUA do século XX está ligada ao termo "complexo industrial-militar", usado pelo presidente americano Dwight D. Eisenhower (1953–1961) para descrever o intricado processo pelo qual os EUA cada vez mais produziam armas e tecnologias bélicas.
Segundo ele, esse complexo foi reforçado durante a Guerra Fria e ainda hoje influencia fortemente a política externa dos EUA e é utilizado como fator de expansão do poder norte-americano no mundo, seja em governos democratas ou republicanos.
"No mundo pós-Guerra Fria e, principalmente, na Guerra ao Terror, com o desejo e a expectativa de consolidar-se como uma superpotência solitária, os EUA utilizam-se da lógica do espelho em que se veem como o 'Bem', com valores e princípios morais singulares, e os seus inimigos como a personificação do 'Mal'. Portanto, a lógica da guerra e do inimigo externo são vetores indispensáveis e que sustentam, a longo prazo, o posicionamento ativo dos EUA no plano global", afirma.
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Nesse contexto, ele destaca o papel da gestão de George W. Bush, que "reforçou o unilateralismo norte-americano em ações militares", consolidando sua "hegemonia global e seu papel de superpotência solitária".

"Os EUA utilizaram os atentados de 11 de Setembro como justificativa a uma 'cruzada mundial contra o terror' em defesa da 'paz mundial' e da sua segurança interna", observa.

Silveira explica que Washington passou a classificar como "Eixo do Mal" países que acusava de abrigar ou patrocinar terrorismo ou que contestassem o poder americano.
"A expressão 'Eixo do Mal' é uma dupla referência histórica: 'eixo' lembra o eixo Berlim-Roma na Segunda Guerra Mundial. E 'mal' retoma o termo império do mal, forma como o governo [Ronald] Reagan se referia à União Soviética durante a Guerra Fria. Um eixo do mal mantém latente a ameaça exterior e justifica a necessidade de manutenção de um expressivo orçamento, do governo Bush, na defesa."

Bush marca o processo de deslegitimação das instituições globais

Pedro Allemand Mancebo Silva, pesquisador e doutorando em relações internacionais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), afirma que toda hegemonia é um misto de coerção e consenso e todo ator hegemônico institui mecanismos de construção de consensos para legitimar seus interesses frente ao mundo. Segundo ele, até a invasão do Iraque, em 2003, a hegemonia norte-americana ainda prezava muito por preservar essas estruturas, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e outras organizações internacionais, "que permitiam aos EUA exercer o uso da força, mas chancelado pela comunidade internacional".

"Em 2003, a invasão do Iraque foi lançada sem essa chancela, e em violação direta de resoluções do Conselho de Segurança. Isso inaugurou uma nova etapa da hegemonia dos EUA, na qual o uso da força, o início de novas guerras, passa a ser feito de forma discricionária, baseado na vontade americana, e pouco importa a opinião da comunidade internacional, as resoluções da ONU ou do Conselho de Segurança. No máximo, a OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] passa a dizer algo."

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Com isso, acrescenta Allemand, "os EUA estabelecem um precedente de violar as resoluções e determinações desses órgãos da governança global".
"Basta ver como aliados menores, mas agressivos, como Israel, se utilizam da mesma coisa e chegam a desacreditar a ONU e atacar seus funcionários."
Ele afirma que para entender a construção da imagem dos EUA como defensores da democracia, é importante compreender a ideia de "guerra justa", na qual as consequências são toleradas porque os motivos são considerados justos, seja "a expansão da ordem mundial baseada em regras, a defesa do interesse nacional ou a defesa de um aliado".
No entanto, "os EUA têm cada vez menos se preocupado com a justificativa nos termos da defesa da democracia e cada vez mais colocado o interesse nacional como justificativa".
"Novamente, se olharmos para Israel, os EUA justificam e apoiam o genocídio do povo palestino com base no direito de Israel se defender e na necessidade de apoiar um aliado que está 'ameaçado'."
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Allemand afirma que o sucesso de Bush "em derrotar Saddam Hussein — e destruir o Iraque no processo — teve um custo muito alto, que a gente ainda está pagando, em termos de desestabilizar a geopolítica do Oriente Médio, bem como para a imagem e legitimidade dos organismos internacionais de construção de consenso".
"Hoje, a sensação de que a ONU 'não serve para nada' só cresce diante da incapacidade da organização de mediar soluções pacíficas de controvérsias, e da ausência de vontade de alguns atores de se comprometer com esse tipo de solução."

Ascensão do Sul Global põe em xeque a hegemonia dos EUA?

Silveira aponta que em toda sua história os EUA se consideraram singulares, com valores e princípios morais únicos e, após a Segunda Guerra Mundial, "assumiram o papel de artífices da ordem internacional", com um comportamento cruzadista e messiânico que defenderia a democracia e os direitos humanos em todo mundo, "mesmo que fosse necessário bombardear países e matar inocentes para levar democracia e direitos humanos".

"É um terrível paradoxo que mostra a ambivalência do discurso oficial e oficioso norte-americano."

Porém, ele afirma que, na atualidade, a imagem norte-americana está sendo colocada em xeque diante da contestação do Sul Global a essa dominação econômica e política dos EUA e seus aliados no Ocidente.
"O Sul Global busca se distanciar do Ocidente, tramar seu próprio desenvolvimento, ensaiar políticas autônomas e não continuar a ser dominado por uma força ocidental liderada pelos EUA."
Allemand, por sua vez, considera que essa imagem dos EUA como defensores da democracia "já ruiu", independentemente da ascensão do Sul Global.
"Não acho que a ascensão do Sul Global tenha papel nisso, mas sim os desafios colocados pela ascensão da China e a retomada das iniciativas estratégicas da Rússia. Sem falar na própria atuação dos EUA, que tem sistematicamente atacado instituições e regimes importantes para a consolidação da ordem mundial do pós-Guerra Fria."
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