O ano era 2008, a África do Sul ainda não era o "S" da coalizão de países e quem representava o "B" de Brasil nesse acrônimo internacional era o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim, durante a segunda gestão do então presidente reeleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), atual líder isolado na disputa presidencial das eleições brasileiras deste ano.
Quatorze anos depois, as placas tectônicas da geopolítica mundial se movimentaram. Muita coisa mudou, mas o BRICS segue sendo um dos grupos mais importantes na nova ordem de um mundo multipolar. De acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), o BRICS concentra 31,8% do produto interno bruto (PIB) global atualmente.
De lá para cá, o ex-chanceler brasileiro fez um balanço da atuação do grupo em entrevista exclusiva de pouco mais de uma hora concedida à Sputnik Brasil na última segunda-feira (1º), além de projetar o cenário para o BRICS no caso da possível eleição de Lula, como as mais recentes pesquisas eleitorais vêm apontando.
Amorim aponta as similaridades entre o grupo, mas enfatiza, principalmente, duas grandes diferenças entre os países que o compõem: a questão das armas nucleares — sobre a qual defende veementemente a eliminação total delas — e a dificuldade de se encontrar um consenso sobre a reforma do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), que considera urgente e cujo entrave principal, em sua avaliação, se encontra na posição chinesa a respeito.
"O Brasil é membro do BRICS, mas o Brasil também é membro da Coalizão da Nova Agenda, com países variados, como Nova Zelândia, que querem a eliminação total das armas nucleares. Porque nós partimos do pressuposto de que, enquanto existir algum país com arma nuclear, o risco existe. Em geral, as potências nucleares falam muito em não proliferação. Tudo bem, mas temos que falar na eliminação das armas nucleares", sublinha.
Veja abaixo os principais trechos da entrevista do ex-chanceler Celso Amorim sobre o BRICS, parte de uma série publicada ao longo desta semana.
Sputnik Brasil: Qual a importância que o grupo terá em um eventual novo governo Lula, considerando que o Lula foi um dos grandes responsáveis pela projeção do grupo?
Celso Amorim: Pela projeção eu nem diria. Eu diria que pela criação mesmo. O termo BRICS tinha sido inventado por um economista do Goldman Sachs, Jim O'Neil. Uma vez eu o encontrei e disse: "Foi você quem inventou o BRICS, né?" E ele disse: "Foi". E eu disse: "Mas nós é que criamos". Porque, na realidade, era apenas um acrônimo para definir países com alguma semelhança. E ele não incluiu a África do Sul, na verdade.
Eu acho que certamente o BRICS vai ter muita importância [no possível governo Lula em 2023]. Eu acho que o mundo evoluiu de lá para cá. Embora a China já fosse a economia mais forte, ela também se comportava com uma certa timidez, com um certo cuidado, eu diria, nas relações internacionais. E agora essa situação é diferente. Então, a meu ver, é preciso também que haja um certo equilíbrio dentro do BRICS. Isso exige que todos se articulem.
Acho que é certa uma ampliação do BRICS; já há uma proposta, um convite feito à Argentina. Da minha parte (e eu nem conversei com o presidente Lula sobre isso), eu sou totalmente a favor, porque eu acho que isso apenas fortalece o Brasil e fortalece a América do Sul, porque nós caminhamos para um mundo de blocos. Há outros países que podem participar, e isso pode ser considerado.
Agora, não devemos ter a imagem do BRICS sendo um grupo que é contra outro. Eu acho que ele é parte de um equilíbrio global. Mas o Brasil, por exemplo, não deixará de ter uma parceria estratégica com a União Europeia [UE] nem deixará de ter um diálogo especial com os Estados Unidos. Em alguns momentos funciona, em alguns momentos não funciona. Mas eu acho que cada um dos países do BRICS tem situações análogas. Ele [o BRICS] é parte dessa pluralidade de articulações que constituem a teia complexa das relações internacionais de hoje, o que é muito importante.
Na área econômica ele revelou grande importância: foi a primeira vez que teve uma pequena reforma no sistema de cotas do FMI, e também influiu nas decisões tomadas no G20. Também é importante em certas áreas como energia, alimentos... Enfim, tem muita coisa que se pode fazer em comum, tem muita afinidade entre os países [do BRICS].
SB: Dentro desse contexto de nova ordem multipolar, de que maneira o Brasil poderia se beneficiar, sendo um dos integrantes do BRICS?
CA: O BRICS não se opõe, o BRICS é parte dessa ordem. Eu acho que isso nos dá alternativas. Eu acho que o Brasil não tem que estar com todos os ovos em uma única cesta. É muito bom ter boas relações com os EUA, é muito bom ter relações com a UE; nós somos a favor, fortemente, disso. Mas também é muito bom ter com os países do BRICS e com outros países, aliás, com a África, com a América do Sul; fortalecer a integração com a América do Sul e a América Latina é absolutamente fundamental. Então você tem que atuar em várias direções. Para usar uma expressão: alianças de geometria variável.
Então depende muito do ponto, e nós temos muitos pontos em comum com o BRICS. Mas em um ponto, por exemplo, nós não temos, que é a reforma do Conselho de Segurança [da ONU]. Até hoje nós não conseguimos um apoio unânime à necessidade de reformar o Conselho de Segurança com novos membros permanentes. Isso, para nós, é um ponto fundamental, porque é a raiz do desequilíbrio na organização mundial. Eu acho que a Rússia tem sido até um pouco mais flexível, pelo menos ao verbalizar posições, mas a China é muito rígida nesse ponto. Ela não fala que é contra, mas não faz nenhum movimento para que isso ocorra. Enfim, então, é assim.
Dois países do BRICS são possuidores de armas atômicas e reconhecidos como potências nucleares pelo TNP [Tratado sobre a Não Proliferação de Armas Nucleares]. Um outro país do BRICS tem armas atômicas sem ser membro do TNP, que é a Índia, e dois outros são países que renunciaram às armas nucleares. Então isso também nos dá uma mudança de visões, quer dizer, o Brasil é membro do BRICS, mas o Brasil também é membro da Coalizão da Nova Agenda, com países variados, como Nova Zelândia, que querem a eliminação total das armas nucleares. Porque nós partimos do pressuposto de que, enquanto existir algum país com arma nuclear, o risco existe.
Em geral, as potências nucleares falam muito em não proliferação. Tudo bem, mas temos que falar na eliminação das armas nucleares.
SB: Na semana passada, a imprensa brasileira divulgou que Lula estava planejando se reunir com os embaixadores do BRICS e, em seguida, com outros embaixadores. Por que separar as reuniões, isto é, primeiro com os BRICS e depois com os outros?
CA: O Lula não é uma autoridade para convocar embaixadores. Aliás, é o presidente [Jair] Bolsonaro quem faz isso (e eu nunca vi isso, mas enfim). Ele [Lula] está conversando, e é uma conversa mais produtiva se ela é uma conversa em grupo. Não é só sobre esse tema. Mais amplamente, é sobre a cooperação bilateral. Ele não está convocando, as oportunidades surgem. Acho que é natural que ele faça e esteja discutindo. Há a questão de que os embaixadores europeus estão de férias neste período.
Lula esteve [nos últimos meses] na França, na Alemanha, na Espanha e na União Europeia. Quanto à América Latina, ele foi à Argentina, foi ao México. Então o BRICS era um pouco o que estava faltando.
Como não há condição de visitar os quatro países do BRICS, é uma das maneiras de ele ter uma reunião com eles.
SB: No tema das reservas internacionais em dólar, o senhor acha que o Brasil deveria ampliar a cesta de moedas e incluir o yuan e o rublo, sobretudo ante o congelamento dos ativos russos?
CA: Já discutimos no BRICS, no tempo em que eu ainda era ministro. Estávamos começando uma discussão sobre a possibilidade do uso das moedas, de se fazer o comércio com as moedas locais, com as moedas nacionais. Acho que seria uma boa maneira de contornar certos problemas com o dólar. Não sou economista, mas na nossa cesta de reservas eu sei que o yuan já entra um pouquinho. Muito pouquinho, mas entra.
Mas o que eu vejo no comércio do BRICS é que se poderia fazer um comércio entre os países do BRICS ou bilateralmente, entre dois deles, em moedas locais. Isso seria uma maneira de incentivar o comércio e de se colocar fora do risco dessas sanções. Agora, se você vai trocar as moedas por outra moeda, isso é uma coisa complicada, acho que não é uma coisa que um país, sozinho, vai decidir.
SB: China e Rússia defendem uma moeda para o BRICS. O senhor defende uma moeda própria para o BRICS? Como facilitar as transações econômicas entre os membros do grupo?
CA: Isso é complexo porque a moeda, essencialmente, é confiança. Antigamente havia o ouro que lastreava a moeda, hoje em dia não tem. Para se chegar a uma moeda comum é um caminho muito longo. O que eu acho razoável pensar é ter contas de comércio bilateral, ou pode ser plurilateral, do BRICS usando moedas nacionais. Isso eu acho que é possível, e há uma maneira de você se colocar fora, digamos, do império do dólar. Não porque se é contra o dólar, mas porque não se quer estar sujeito a isso. E isso acho que é possível.
Agora, pensar em uma moeda do BRICS… Acho que as economias têm dimensão muito desproporcional entre China e África do Sul, por exemplo. Agora, sim, procurar libertar o comércio e os investimentos desses países do império do dólar é razoável. Ou de qualquer outro império, nada contra especialmente o dólar, mas de qualquer outro império.