Panorama internacional

'Brasil perdeu seu papel de influenciador junto ao continente africano', avalia especialista

Seja por questões econômicas ou geopolíticas, a Rússia, a China, a Índia, a Turquia e até mesmo os Estados Unidos vêm se aproximando e tentando fortalecer laços com o continente africano.
Sputnik
Ontem (23), por exemplo, a China anunciou o perdão de dívidas de empréstimos de 17 países da África, além do redirecionamento de US$ 10 bilhões (R$ 51 bilhões) de suas reservas no Fundo Monetário Internacional (FMI) para nações do continente. A anistia vem sendo adotada desde o começo dos anos 2000, de acordo com um estudo conduzido pela Universidade Johns Hopkins.
Esses movimentos suscitam uma questão: onde o Brasil está na corrida pelo potencial africano? A Sputnik Brasil conversou com João Bosco Monte, presidente do Instituto Brasil África (Ibraf) para entender como a nação brasileira está mantendo as relações e o diálogo com o outro lado do oceano.
Em termos de contexto global contemporâneo, ele aponta que, em pleno auge da pandemia, entre 2020 e 2021, o investimento direto da China nos países da África foi bastante expressivo e que há diversos projetos de infraestrutura ocorrendo em várias cidades africanas.
Mais recentemente, prossegue, a China criou uma grande agenda de cooperação com muitas nações da África por meio de um programa de zonas de cooperação comercial. O governo chinês definiu 16 países a serem contemplados com essa agenda.

"Não se pode deixar de lado o One Belt, One Road [Nova Rota da Seda], projeto ousado que levou diversos chefes de Estado africanos a conversar com o Xi Jinping [presidente chinês] em diversas ocasiões", lembra.

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O presidente do Ibraf também mostra que alguns países têm buscado uma "atenção objetiva".

"A Rússia aumentou sua influência na África por meio de investimentos estratégicos em energia e em minerais. O Banco Africano de Exportação e Importação realizou, em 2018, a sua reunião anual fora do continente africano, em Moscou. Isso é um fato simbólico muito importante. No ano passado, a administração do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou planos de aumento do comércio e do investimento entre Estados Unidos e África de forma bastante expressiva, e o ponto de partida foi a reformulação de um programa desenvolvido pelo Donald Trump [ex-presidente norte-americano] chamado Prosper Africa [África Próspera, em tradução livre], que estimula a participação de empresas americanas com parceiros africanos para que a indústria de base africana seja melhor desenvolvida e para que os produtos africanos ganhem as prateleiras de diversos mercados", indica Bosco.

Ainda de acordo com ele, outro ator importante que tem se destacado mais recentemente nas relações com o continente é a Turquia.
Bosco nota que o presidente Recep Tayyip Erdogan visitou a África mais de uma vez. Neste ano ele já esteve em diversas reuniões com seus homólogos africanos.

"A agenda de investimentos através da agência de cooperação turca é muito intensa. Tem um dado importante com relação à empresa aérea Turkish Airlines: atualmente a empresa tem 53 cidades africanas como destinos de seus voos. É um número gigantesco, comparado com o que acontecia em 2011; naquele momento, eram 18. Há esse crescimento gigantesco que demonstra o interesse da Turquia no continente africano como um todo", observa o especialista.

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E quanto ao Brasil?

Outrora parceiros de primeira hora, hoje a política externa do governo de Jair Bolsonaro levou o Brasil a um distanciamento oceânico da África, metafórica e literalmente. Isso porque em todo este mandato, que se encerra neste ano, o presidente não fez nenhuma visita a qualquer país da África.

"Não há uma liderança hoje no Brasil que chame a África para conversar. Por exemplo, o presidente do Brasil nunca viajou ao continente africano nos quase quatro anos de governo. Isso tem uma representação negativa muito grande, porque não há interesse específico do governo em dialogar. Enquanto outras nações já demonstraram, já fizeram os atos, as suas interlocuções que demonstram abertura e interesse muito grande em conversar e fazer negócios com a África", analisa o presidente do Ibraf.

Mapa da África, com destaque para Uganda
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que disputa com Bolsonaro e lidera a corrida presidencial, de acordo com as pesquisas mais confiáveis, deve costurar uma reaproximação com os países africanos caso seja eleito, segundo apontou o ex-chanceler e principal conselheiro em política externa, Celso Amorim, em entrevista exclusiva concedida à Sputnik Brasil no começo deste mês.
Na avaliação de Bosco, o Brasil perdeu muito da sua relação próxima, direta e objetiva com o continente africano.
Ele relembra que, em 2003, quando Lula, então presidente, disse que a África seria prioridade para o seu governo, de fato ele empreendeu diversas incursões continente adentro, levando consigo muitos agentes públicos e também empresários, que, de forma muito clara e direta, conversavam com seus homólogos africanos.
Isso "demonstrava o interesse do governo e do Estado", segundo o presidente do Ibraf, "que se manteve firme e objetivamente conectado com os Estados africanos".

"Perdemos nosso caminho com a África porque outros países identificaram uma grande oportunidade em dialogar, mas também em fazer negócios com a África. O Brasil perdeu seu papel de influenciador junto ao continente africano. Em pouco tempo, o Brasil deixou de ser um amigo leal, um parceiro estratégico para nações africanas, não apenas países de língua portuguesa, que, por si só, já têm um ativo para nós — o componente linguístico é muito importante e tem que ser considerado. Mas outros componentes também (culturais, afetivos) podem e devem ser levados em consideração. O Brasil não se aproxima e não usa essas prerrogativas para se aproximar e fazer com que as partes sejam mais próximas", afirma.

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Desperdício de potencial

Das dez nações que mais cresceram em 2019 (recorte antes da pandemia, portanto), sete estão localizadas no continente africano, elenca Bosco, acrescentando que a região tem condições de dar vazão a necessidades de agricultura, com a provisão de insumos e fertilizantes, itens tão cobiçados em tempos de escassez devido às sanções econômicas impostas à Rússia por sua operação militar especial na Ucrânia.
O presidente do Ibraf conta que o continente africano tem uma agenda de aproximação entre seus países pela zona de livre comércio continental africana, que foi implementada no ano de 2021 e cria um mercado continental único de bens e serviços entre 54 países, com negócios e investimentos que certamente vão ampliar e reformular as economias africanas.

"Há uma ação interna muito grande que coloca o continente como líder na agenda comercial do mundo. Não há nenhuma zona com esse tamanho e potencial. E o Brasil pode se aproximar e fazer uma relação direta com esses países. Qual a saída para que vejamos de maneira pragmática uma resposta? É termos interesse, um interesse real. Sem ele não há condições de buscarmos uma ação objetiva. Também tem uma oportunidade que surge, que é a ligação marítima e aérea que o Brasil pode implementar com e na África, conectando não apenas o Brasil, como também a América do Sul, ao continente. O Brasil pode ser a ligação entre os dois ambientes, além de se tornar um parceiro da zona de livre comércio continental africana. Temos muito a ganhar, mas precisamos colocar nossa ação pragmática em realidade objetiva", finaliza Bosco.

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