Panorama internacional

Especialista: Gorbachev idealizou Rússia como parte da UE, mas se frustrou com hostilidade ocidental

Um ideal que não deu certo devido ao descumprimento de acordos por parte do Ocidente. O ex-presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev, queria a integração da Rússia com a União Europeia, à época em gestação, mas se decepcionou porque, embora a Guerra Fria tenha se encerrado, a postura de hostilidade do Ocidente em relação à Rússia prosseguiu.
Sputnik
A autocrítica aparece na jornada do seu pensamento ao longo de décadas, segundo o pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) Cesar Albuquerque, que se debruçou sobre ensaios, artigos, livros, entrevistas e pronunciamentos de Gorbachev desde antes da ascensão ao poder, passando pelo período em que administrou o fim da União das Repúblicas Socialistas Sov­­­­­­­­­­­­­­­iéticas (URSS), até o começo do século XXI.
Há quatro eixos em sua pesquisa, cuja tese de doutorado será defendida em novembro na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da universidade: ideológico-político, doméstico, econômico e de política externa.
O ex-presidente soviético morreu na semana passada, aos 91 anos.

"Estamos falando de alguém que foi responsável por uma mudança estrutural da geopolítica global", disse Albuquerque em entrevista exclusiva à Sputnik Brasil.

Ex-presidente da URSS, Mikhail Gorbachev acena em evento em Moscou, em 7 de novembro de 1989
Ele explica que o seu trabalho começa com a evolução do pensamento de Gorbachev até a chegada ao Kremlin e pouco antes de ele chegar ao posto de secretário-geral do Partido Comunista, equivalente ao cargo de líder máximo da União Soviética.
Nessa parte, Albuquerque investiga se já havia elementos ideológicos que levariam às reformas econômicas e sociais (Perestroika e Glasnost, respectivamente) da próxima etapa da análise, que é a gestão em si — calcada na tentativa de modernização do Estado por meio dessas reformas, no fim da Guerra Fria e no colapso da URSS.
Os últimos dois capítulos são relativos ao período pós-União Soviética.

"Na década de 1990, ele tinha uma produção bem intensa de livros, principalmente, e de alguns artigos muito publicados no exterior, onde ele tinha uma imagem bastante positiva nesse período pós-Perestroika. Ali, também, eu procuro demonstrar de que modo o pensamento dele reagia ao período [do ex-presidente da Rússia Boris] Yeltsin, que havia sido seu principal algoz na Perestroika, seu principal rival no período. [Há] a questão da identificação dele com a social-democracia, que é uma bandeira que ele passa a defender, e cria, depois, um partido, dois", narra o pesquisador.

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Em seguida, Albuquerque se debruça sobre a primeira década do século XXI, na relação de Gorbachev com a dinâmica da política russa, já sob a era Putin, e também com a política externa.

"E aí tem uma questão muito interessante, porque há, de uma certa forma, uma divergência [de Gorbachev] em relação ao assunto da política doméstica na Rússia, principalmente no fim da primeira década do século, no início dos anos 2010, mas um alinhamento em relação à política externa russa em tempos mais recentes", indica.

A frustração com o Ocidente e o alinhamento à política externa de Putin

Para muitos analistas no Ocidente que acompanharam Gorbachev e que têm uma visão muito simplista do pensamento dele, pode parecer contraditório que o ex-presidente da URSS tenha defendido a reunificação da Crimeia à Rússia (aprovada em referendo popular em 2014) e o fim da Guerra Fria.
Mas não é bem assim, argumenta o pesquisador da USP: há uma coerência que liga ambos os pontos ao longo de décadas.
Ex-presidente da URSS, Mikhail Gorbachev, posa ao lado da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, em 15 de dezembro de 1984
Já no começo da década de 1990 e após a dissolução da União Soviética, segundo a tese de Albuquerque, Gorbachev começa a falar sobre a questão do avanço da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e de um descumprimento de acordos — ainda que naquele momento não houvesse nenhum documento oficial que comprovasse aqueles acordos.
O incômodo de Gorbachev era com a OTAN incorporando membros, inicialmente da Europa Oriental, e, depois, até de ex-repúblicas soviéticas.

"Isso era apontado por ele, sim, como um fator bastante negativo e um descumprimento de promessas que foram feitas nas negociações dele — tanto da não intervenção soviética na dissolução dos regimes da Europa Oriental, da Europa do Leste, quanto no processo de renegociação do tratado da União [Soviética], antes de a União Soviética ser desfeita", mostra Albuquerque.

O ex-presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev, durante participação em programa de rádio de Moscou, em 6 de março de 2012
Nesse sentido, o discurso dele vai se tornando mais crítico a esse avanço da OTAN. E à própria incorporação da Alemanha na aliança militar, que, segundo o especialista, também é uma questão que Gorbachev aponta em alguns textos: havia um compromisso selado, ainda que verbalmente, com os líderes alemães e os líderes ocidentais de não ingresso do país germânico.
Mais tarde, a contragosto de Gorbachev, a Alemanha se tornou membro da coalizão.

"Isso ajuda a compreender essa continuidade, esse alinhamento em relação à política externa do Gorbachev para com o Putin, para a política externa que o Putin adota, principalmente depois de 2007: de recuperar o protagonismo da Rússia e, ao mesmo tempo, de se ver como, de algum modo, ameaçado com esse avanço da OTAN, que vai cercando cada vez mais as fronteiras russas e a [sua] esfera de influência natural [em países vizinhos] (ou, pelo menos, que a Rússia entende como natural dela ao longo da história). Isso para ele é muito claro. E é aquilo que eu comentei agora, em relação a essa frustração que ele de fato revela em vários textos, principalmente no fim da década de 1990 e no início [da] de 2000. Das oportunidades de cooperação, de aproximação e de integração, por exemplo, em relação à Europa, à integração europeia", diz Albuquerque.

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Gorbachev jamais se descreveu como "traído" pelo Ocidente. No entanto, pondera o pesquisador da USP, "frustrado" é uma expressão bastante interessante nessa dinâmica da política internacional, da cooperação econômica, do que ele imaginava que seria possível de se construir em termos geopolíticos.

"Em certo ponto, ele era bastante idealista. Os discursos dele, embora ele não seja um teórico por natureza, são de um político que também tem uma dimensão ideológica e teórica. Mas ele é, em primeiro lugar, um agente político. Ele tinha uma certa visão idealista, que em alguns aspectos o guiou ao longo das reformas e mesmo do que ele entendia, ao fim, do que seria um sistema político, um sistema econômico ideal — e que, no fim, não se concretizaram."

Ex-presidente da URSS, Mikhail Gorbachev conversa com lituanos na ex-república soviética, em 11 de janeiro de 1990
Exemplo disso eram seus discursos ao fim da reforma econômica do Estado soviético, a Perestroika, que culminou com a extinção da URSS.

"O Gorbachev, no fim da Perestroika, falava muito no lar comum europeu. A Europa já tinha seu mercado comum e depois foi construindo as bases da União Europeia [UE]. E o Gorbachev defendia que a Rússia deveria fazer parte desse processo. A União Soviética, ainda, e mais tarde a Rússia, não poderiam ser excluídas desse processo de integração porque ela é parte natural da Europa historicamente. Ao longo de toda a sua história, a civilização russa também é europeia. Isso, para ele, acaba sendo mais frustrante porque ele vê a Rússia praticamente alijada de qualquer processo de integração. Muito pelo contrário: há a manutenção de uma lógica de hostilidade, de afastamento. E [da Rússia] vista sempre como 'o outro', como o diferente. Então isso para ele também era outro aspecto bastante frustrante", avalia Albuquerque.

A visão idealista levou a certa ingenuidade no xadrez da política com o Ocidente, diz o pesquisador.

"Essa visão dele sobre acordos que ele, de algum modo, costurou (mas que não estavam formalizados), ou promessas de que uma redução das tensões levaria naturalmente a uma integração e a uma cooperação, depois vimos que não se construíram. A ajuda que o Ocidente depois vai oferecer à Rússia nos anos 1990, ela se dá através de mecanismos tradicionais como [os que] nós, por exemplo, na América Latina, sempre tivemos. É FMI, é receituário neoliberal: faz assim, o dinheiro vem; faz assim, o dinheiro não vem. Então existe toda uma forma como ele passa a, depois, enxergar que eu acho que vai gerar essa frustração", conclui o especialista.

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