Em lugar das antigas discussões sobre a dissuasão nuclear entre superpotências, tópicos como o combate à proliferação de armas de destruição em massa e o enfrentamento ao terrorismo internacional acabaram adquirindo maior importância nas relações bilaterais Moscou-Washington.
No entanto, com o passar dos anos, os americanos voltaram a enxergar a Rússia como um rival, mostrando-se incapazes de lidar com um Estado que conduz sua política externa de forma independente.
A fim de compreender as nuances por trás dessa mudança, é necessário analisar com detida atenção um dos mais importantes documentos de Estado emitidos pela Casa Branca, a Estratégia de Segurança Nacional.
Durante a administração de Bill Clinton (1993-2001), esses documentos demonstravam que os Estados Unidos consideravam a Rússia um "Estado-chave" para a obtenção de seus objetivos nacionais, com Washington se comprometendo a apoiar e ajudar a consolidação das reformas democráticas em seu "ex-rival", transformando assim uma antiga ameaça em um valioso parceiro diplomático.
O então presidente dos EUA, Bill Clinton, levanta sua taça para brindar com o presidente russo, Boris Yeltsin, em um jantar de recepção no Kremlin em Moscou, 10 de maio de 1995
© AP Photo / Aleksandr Zemlianichenko
Em 1997, por sua vez, os Estados Unidos declaravam ter interesses vitais de segurança na evolução da Rússia e em sua integração pacífica em uma comunidade internacional liderada pelos americanos.
Ainda em 1997, porém, Washington já declarava abertamente que pretendia ampliar a OTAN pela absorção dos países do Leste Europeu, próximos às fronteiras da Rússia. Ficava então a pergunta: como os Estados Unidos consideravam a Rússia um valioso parceiro diplomático e ao mesmo tempo buscavam expandir uma aliança militar fundada para conter a Rússia?
Simples, as reais intenções de Washington eram mitigar a influência de Moscou no espaço pós-soviético sob o disfarce de um discurso sobre cooperação e parceria estratégica que nunca esteve de fato nos planos. Foi assim que em 1999 a Polônia, República Tcheca e Hungria aderiram à OTAN durante a primeira onda de expansão da aliança para o Leste.
De todo modo, com a virada do século a administração de George W. Bush mencionava a Rússia como sendo um "ex-adversário" dos americanos, atuando como um parceiro importante na "guerra contra o terror". Isso porque, como um gesto de boa vontade, a Rússia consentiu com o estacionamento de tropas americanas no Afeganistão para o combate à Al-Qaeda de Osama bin Laden.
Ora, na verdade, as relações dos Estados Unidos com a Rússia somente melhoraram no momento em que Washington percebeu que ambos possuíam temporariamente um inimigo comum, e não porque a Casa Branca levava genuinamente em conta as apreensões e os interesses da Rússia no sistema internacional.
Não por acaso, em 2004 foi a vez de Estônia, Letônia, Lituânia, Eslováquia, Romênia e Bulgária entrarem para o quadro da Aliança Atlântica, quando a OTAN passou a fazer fronteira com a Rússia por meio dos Estados Bálticos.
Com isto, caças da OTAN podiam patrulhar o espaço aéreo em torno do mar Báltico, a uma distância de apenas poucos minutos de São Petersburgo, segunda maior cidade russa. Em 2006, por sua vez, os Estados Unidos relutantemente reconheciam que, por motivos geográficos e de poder, "a Rússia possui uma grande influência não apenas na Europa e em sua vizinhança imediata, mas também em muitas outras regiões de interesse vital [para os americanos]".
Naquele mesmo ano, vale lembrar, a Rússia saldou toda sua dívida externa herdada da União Soviética junto ao Clube de Paris (grupo composto por 17 nações desenvolvidas), o que contribuiu para aumentar a confiança do Estado.
Foi nesse contexto que se deu o histórico discurso de Putin na Conferência de Munique em 2007, na qual o presidente russo fez duras críticas ao avanço da OTAN para o Leste e à unipolaridade estadunidense nas relações internacionais.
A lógica expressada por Putin na ocasião envolvia a percepção de que o poder nas mãos de uma potência hegemônica lhe concede a possibilidade de ditar as regras do sistema internacional e sob tais circunstâncias a Rússia não poderia ter uma voz independente.
Com efeito, a reação dos Estados Unidos diante do discurso de Putin foi hostil e histérica. Muito embora a administração subsequente de Barack Obama (2009-2017) tenha tentado "resetar" as relações com a Rússia, dando sinais de que estaria disposta a cooperar com Moscou em assuntos de interesse mútuo, fato é que essas tentativas acabaram sendo frustradas novamente por conta das ambições geopolíticas dos americanos no mundo.
Já em 2010, a Casa Branca voltou a reconhecer na Rússia uma "voz forte" na arena internacional, como um dos "centros de influência do novo século XXI".
Barack Obama se encontra com o presidente russo, Vladimir Putin, em Enniskillen, Irlanda do Norte, 17 de junho de 2013
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Em 2014, com a crise política na Ucrânia e a prontidão de Moscou em defender os interesses das populações russófonas na região de Donbass e da Crimeia (que não reconheceram o golpe de Estado em Kiev patrocinado pelo Ocidente), a administração Obama cinicamente apontava a Rússia como um país beligerante, contribuindo para prejudicar de vez as relações entre Moscou e Washington.
Os Estados Unidos, como principal financiador da crise política na Ucrânia de 2014 e como fator agravante do conflito armado na Síria, não conseguiu aceitar a bem-sucedida atuação da Rússia em ambos os casos, em prol da defesa de seus interesses nacionais e de segurança.
Como resultado, em 2017, agora sob a administração de Donald Trump, a Estratégia de Segurança Nacional mencionava que a Rússia (ao lado da China) representava um desafio ao poder, à influência e aos interesses americanos no mundo. Em resumo, a Rússia voltava a ser um país "rival" dos Estados Unidos.
Isso porque a América demonstrou mais uma vez que não estava pronta para admitir que um Estado importante como a Rússia passasse a defender seus valores e interesses nacionais num mundo que, até então, parecia estar sob o total controle dos americanos.
Acontece que, diferentemente de alguns Estados europeus, a Rússia não é um país que se acomodaria ao papel de vassalo de Washington. Pelo contrário, a Rússia estava pronta para decidir, de forma independente, o seu próprio caminho e destino.
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