No dia 22 de dezembro, os EUA reivindicaram território maior do que o estado do Mato Grosso no espaço marítimo nas regiões do Ártico, Atlântico e Caribe, informou documento oficial publicado pelo Departamento de Estado do país.
Washington declarou unilateralmente a expansão de sua plataforma continental no equivalente a um milhão de quilômetros quadrados, principalmente nas regiões do Ártico e mar de Bering, reportou a Bloomberg.
As novas reivindicações territoriais podem gerar desavenças com vizinhos norte-americanos no Atlântico Norte, indicou o pesquisador sênior do The Arctic Institute e pesquisador na Escola Superior de Economia de Moscou, Pavel Devyatkin.
"As demandas potencialmente se sobrepõem às reivindicações do Canadá e do Japão. Os EUA precisarão estabelecer fronteiras marítimas com estes países no futuro", disse Devyatkin à Sputnik Brasil.
No entanto, autoridades russas reagiram com surpresa às reivindicações norte-americanas. O chefe do Comitê Estatal do parlamento russo, a Duma, Nikolai Kharitonov, acredita que elas poderão aumentar as tensões na região do Ártico.
Soldados dos EUA fazem treinamento com sapatos especiais para uso na neve, em treinamento chamado "Luz do Ártico", em 2012 (foto de arquivo)
© AP Photo / Justin Connaher
"A expansão unilateral das fronteiras no Ártico é inaceitável e só pode levar ao aumento da tensão. É necessário, antes de tudo, provar a identidade geológica desses territórios, como a Rússia fez [para embasar as suas reivindicações na região]", disse Kharitonov.
Para o deputado russo, as demandas dos EUA deveriam ser analisadas por comitê especializado da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, também chamada de Convenção de Montego Bay. A Comissão das Nações Unidas sobre os Limites da Plataforma Continental, vinculada à Convenção de Montego Bay, é reconhecida internacionalmente pela sua expertise e já regulou diversas demandas territoriais marítimas, inclusive feitas pelo Brasil.
Os EUA, porém, nunca ratificaram a Convenção de Montego Bay, por isso não está claro qual órgão internacional poderá avaliar as demandas territoriais feitas por Washington.
"Ao contrário das demandas da Rússia, as reivindicações dos EUA não foram submetidas à Comissão das Nações Unidas sobre os Limites da Plataforma Continental, mas sim realizadas unilateralmente", explicou Devyatkin. "Os EUA ainda poderiam apresentar os seus dados sobre os limites da plataforma continental dos EUA à Comissão ou na qualidade de Estado não parte, ou após uma eventual adesão à Convenção de Montego Bay."
O especialista nota que ambas as soluções estão citadas no documento do Departamento de Estado dos EUA e que a administração do presidente norte-americano Joe Biden já declarou interesse em aderir à Convenção de Montego Bay.
Submarinos norte-americanos USS Connecticut e USS Hartford emergem do gelo no Ártico
© Foto / Marinha dos EUA
A adesão ao órgão da ONU pode ser vantajosa diante dos enormes recursos minerais e energéticos existentes na plataforma continental requisitada pelos EUA. Segundo estimativa de pesquisa geológica conduzida pelo governo norte-americano, as reservas de petróleo no território poderiam representar até 13% das reservas mundiais e as de gás, até 30%.
"O anúncio mostra a importância econômica do Ártico para os EUA. A área indicada contém um fundo marinho rico em minerais importantes e metais de terras-raras", notou Devyatkin.
De olho nas eleições?
As circunstâncias do anúncio norte-americano – publicado no fim do ano, às vésperas do início da campanha presidencial de 2024 – pegaram analistas de surpresa.
Para o analista do Finam Financial Group, Nikolai Dudchenko, Washington estaria em busca de boas notícias na área de política externa tanto para suas elites, quanto para o seu eleitorado, reportou a Sputnik.
"EUA estão certamente interessados em obter o controle deste território, o que reforçará a sua posição no mercado energético", disse Dudchenko. "Esta é mais uma vantagem adicional para as elites políticas às vésperas das eleições do próximo ano."
De acordo com o professor de Relações Internacionais e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), Pedro Costa Júnior, a política externa do governo Biden amarga três derrotas importantes e, de fato, precisa de boas notícias para o seu eleitorado em 2024.
"Em 2023, os EUA travaram três guerras concomitantes: a primeira é pelo poder global, contra a China [...], a segunda contra a Rússia no território ucraniano e [...] a terceira no Oriente Médio, ao lado de Israel, na promoção do massacre em Gaza", disse Costa Júnior à Sputnik Brasil.
A guerra contra a China seria de longa duração, travada no espaço geoeconômico, geopolítico e cultural, contando com apoio interno de ambos os partidos norte-americanos.
USS Chung-Hoon, destróier dos EUA, observa navio da Marinha da China no estreito de Taiwan, 3 de junho de 2023
© AP Photo / Especialista em Comunicação de Massa de 1ª Classe Andre T. Richard
"Neste embate estrutural contra a China, os EUA vêm perdendo espaço. Vemos que sete economias que mais crescerão em 2023 estão no Sul Global, especialmente na Eurásia: a Índia é a economia que mais crescerá, seguida pela China", disse Costa Júnior.
No front ucraniano as coisas tampouco vão bem para a administração Biden. A crescente aversão da opinião pública ao financiamento do conflito leva à crescente popularidade de ideias isolacionistas, personificadas na figura do candidato republicano à presidência Donald Trump.
O presidente dos EUA, Joe Biden (à direita), e o presidente ucraniano, Vladimir Zelensky, chegam para entrevista coletiva na Casa Branca. Washington, D.C., EUA, 12 de dezembro de 2023
© AFP 2023 / Mandel Ngan
A ação militar de Israel na Faixa de Gaza veio para complicar um ano de já bastante desgaste para a diplomacia dos EUA. O apoio incondicional dos EUA ao seu aliado no Oriente Médio é cada vez mais questionado pelos próprios eleitores do Partido Democrata. No âmbito internacional, os EUA estão praticamente isolados em votações sobre o conflito nas Nações Unidas.
"A política externa de Biden tem sido uma tragédia [...]. Na guerra contra a China, a trajetória dos EUA é de derrota, e nesse ano não foi diferente. Na guerra contra a Rússia vemos uma derrota militar, enquanto a guerra do Oriente Médio dá um grande golpe no poder brando norte-americano", declarou Costa Júnior. "O rei está nu."