Panorama internacional

Segurança hídrica e estratégica: governança compartilhada da Antártica pode estar com dias contados?

Gerida por um modelo único de governança, a Antártica é um continente sem dono. A região é administrada pelo Sistema do Tratado Antártico, documento assinado em 1959 que congelou as posses territoriais e proibiu a militarização do local. A riqueza em recursos naturais, contudo, pode pôr um fim nisso, disseram analistas ouvidos pela Sputnik Brasil.
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Neste ano comemoram-se os 204 anos da descoberta da Antártica pelo explorador russo Fabian Gottlieb Thaddeus von Bellingshausen, o primeiro que a avistou e a circum-navegou. No contexto do imperialismo e das grandes explorações, iniciou-se, algumas décadas depois, a era heroica da exploração do continente gelado, em que exploradores e cientistas buscaram mapear, conhecer e reivindicar partes do continente.
A história e atualidade da Antártica foram debatidas no episódio de hoje (29) do Mundioka, podcast da Sputnik Brasil apresentado pelos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho.

Antártica: de região contestada a governança compartilhada

Após a descoberta do continente por Von Bellingshausen, nenhuma nação deu muita atenção à vastidão gelada, afirma Gabriele Hernandez, doutoranda em estudos estratégicos e professora de geopolítica polar na Universidade Federal Fluminense (UFF), em declarações ao Mundioka.
Os principais interessados, afirmou, foram os baleeiros, que viram na fauna de baleias e focas um grande potencial econômico, especialmente depois que essas populações foram quase extintas no Ártico.
Décadas mais tarde, passada a era heroica de exploradores da Antártica, muitos países começam a se interessar pela região. O Reino Unido foi o primeiro a reivindicar um pedaço do continente. Em seguida, pede para suas colônias, Austrália e Nova Zelândia, reivindicarem também.

"Foi a primeira vez que um Estado reivindicou um território na Antártica."

A partir daí, outros países começam a estabelecer suas próprias reinvindicações: França, Noruega, Argentina e Chile. Chega um momento em que essas sete nações reivindicam um pedaço do continente para si, mas essas demandas não são reconhecidas pelas demais.
Em 1959, durante a Guerra Fria, o Tratado da Antártica é estabelecido, na Conferência de Washington. O documento coloca de lado as disputas militares e territoriais em prol da manutenção da paz na região.
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O tratado "tem sido um sucesso de 64 anos de plena concordância de todos os países", afirmou Jefferson Cardia Simões, primeiro glaciólogo brasileiro.
Para participar da gestão das discussões que envolvem o continente, explicam os especialistas, é preciso desenvolver atividades e pesquisas científicas na Antártica. Hoje são 29 países com direito a voto e 33 que realizam pesquisas científicas na Antártica.

"A região, que nunca foi militarizada, que proíbe explosões nucleares ou mesmo experimentos nucleares, é dedicada à ciência", afirmou Simões, também em entrevista ao podcast.

O tratado, destaca o pesquisador, é extremamente específico. Todas as pesquisas científicas realizadas na Antártica são divulgadas. Os pesquisadores de um país podem visitar as estações científicas de qualquer outro país, com 72 horas de aviso.
"Esse sucesso tem sido pleno, e nunca houve conflitos, mesmo durante a Guerra Fria, e até mesmo durante a Guerra das Malvinas os britânicos e os argentinos se falavam lá", afirmou o pesquisador.

"A Antártica é, talvez, o único caso que a gente tem no mundo de uma gestão entre diversos Estados sem ter necessariamente um dono", disse Hernandez.

O futuro da Antártica é incerto

Tamanho é o espírito de desenvolvimento científico e pacífico na Antártica que há outros acordos entre os países que têm atividades no continente, como o de conservação de animais marinhos, de proteção ambiental e de proibição de atividades extrativistas. Há na Antártica, afirmou Simões, uma "moratória de que você não pode explorar recursos de óleo, de gás e minerais".
Estipulado em 1998, o acordo não enfrentou muita resistência por parte dos signatários, uma vez que era economicamente inviável explorar minérios por lá. "A gente não consegue ainda fazer uma exploração efetiva debaixo do gelo antártico, porque ele é muito espesso", explicou Hernandez. "Seria extremamente caro, ainda não vale a pena."
"No oceano austral", sublinha Simões, "nós temos provavelmente os últimos grandes campos de petróleo, mas teriam um custo, pelo menos hoje, inviável". "Mas a tecnologia evolui, nós não sabemos o que vai ocorrer daqui a 50, 60 anos."
A moratória de exploração tem duração de 50 anos, ou seja, tem previsão de terminar em 2048. Para Simões, o fim dessa proibição pode trazer instabilidade para o Tratado da Antártica. "Eu acredito que até lá nós estamos seguros", disse.
Quando falamos de atividade econômica na Antártica, lembra Simões, "é o continente propriamente dito e mais um oceano de 36 milhões de km²". "É quase 10% do planeta Terra."

O que tem de interessante na Antártica?

Com 13,8 milhões de km², quase um Brasil e meio, a Antártica é um continente que migrou para o sul há cerca de 500 milhões de anos. Sua formação geológica, inclusive, é muito similar à do nosso país, afirmou Simões.
Isso faz com que nele sejam encontrados todos os tipos de rochas, de todas as idades, e minerais de todos os tipos, até mesmo fósseis. Tudo no solo debaixo de uma plataforma de 2 km a 5 km de gelo, que vai se formando no interior do continente e flui para sua costa.
Segundo Hernandez, graças a essa formação geológica variada, estima-se que haja muitos recursos minerais energéticos, "como carvão, gás natural e petróleo", no solo do continente.

"Então é uma região que todo mundo fica de olho porque tem recursos que futuramente a gente vai precisar bastante", completou.

Mas o recurso que mais pode desencadear atrito entre os países, afirmam os pesquisadores, é um que o continente tem em abundância: a água.
Diferentemente do Ártico e da Groenlândia, cujo gelo é mar congelado, a plataforma de gelo da Antártica é composta de água doce, um recurso que está cada vez mais escasso no mundo. O continente gelado representa 70% de toda a reserva de água potável do mundo. "Do jeito que vai essa crise hídrica, até mesmo em partes do Brasil, esse poderá ser o primeiro recurso mineral a ser explorado", disse Simões.
Hernandez aponta para outra questão que deve surgir no futuro. A Antártica, explica, é uma região estratégica não só pelos seus recursos, mas também "pela sua localização".
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"Não só é uma região sem dono", disse a pesquisadora, "como é a fronteira final dos principais oceanos da Terra, o Índico, o Pacífico e o Atlântico". É uma passagem estratégica que ganha destaque comercial quando há bloqueios no canal do Panamá ou no canal de Suez, afirmou.
"A região é importante para a gente porque ela é uma mistura de tudo, […] segurança climática, energética, hídrica e estratégica", resumiu Hernandez.
Um exemplo dessa importância estratégica, aponta Simões, se vê do outro lado do globo, no Ártico, onde ocorre a maior parte do degelo das calotas polares. A consequência do aquecimento global lá é tão clara que está mudando o jogo geopolítico das marinhas.

"Hoje muito mais navios estão entrando no Ártico adentro, sem quebra-gelos, sem [] submarinos, porque o gelo marinho está desaparecendo", afirmou.

"Já há uma corrida para o Ártico, inclusive com novos atores, que nem a Índia e a China. E, é claro, a Rússia está muito preocupada, porque grande parte do Ártico é russo."
Nesse sentido, destaca Simões, o Programa Antártico Brasileiro (Proantar), da Marinha brasileira, representa um "sinal claro para a comunidade internacional de que o Brasil tem não só o interesse, mas quer reservar os seus direitos para decidir o futuro de 10% do planeta Terra".
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