Fim de ajuda humanitária da ONU até para populações famintas: hipocrisia ocidental não tem limites?
Graves crises humanitárias, mais de 80% da população abaixo da linha da pobreza e extrema dependência de ajuda internacional. Em lugares como o Iêmen e a Faixa de Gaza, no Oriente Médio, nada disso importa frente às pressões ocidentais que levam agências ligadas à ONU a paralisarem sua atuação diante de interesses maiores.
SputnikMuito mais do que uma referência geográfica definida pelo dicionário, o termo Ocidente faz referência às nações que compartilham um
sistema social, cultural e econômico parecido. Em bom português, é caracterizado pelo compacto bloco formado pelas chamadas potências desenvolvidas na
Europa, América do Norte e Oceania, a exemplo da Austrália e Nova Zelândia, além do Japão, sob a hegemonia dos Estados Unidos. E são esses países que historicamente impõem seus interesses a todo custo na rotina da
Organização das Nações Unidas (ONU), apesar de a entidade representar 193 países.
Sequer instituições como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR),
que atua em países em crise humanitária, escapam da "mão pesada" do mundo ocidental. Nos últimos meses, pelo menos duas situações são um retrato dessa atuação que é marca desde o fim da Segunda Guerra Mundial, quando foi criado o sistema das Nações Unidas: são os casos do Iêmen, onde
66% da população depende exclusivamente de assistência para sobreviver e
16 milhões de pessoas sofrem com a fome, e da Faixa de Gaza, dizimada por Israel nos
últimos cinco meses por conta da guerra contra o Hamas.
Após anos de conflitos internos, o Iêmen só viu a ACNUR começar a atuar para conter os
problemas humanitários depois que os EUA deixaram de considerar os houthis, que dominam grande parte do território,
como organização terrorista. Mas tudo mudou desde o fim do ano passado, quando a classificação foi retomada por conta dos ataques realizados pelo grupo no mar Vermelho contra embarcações ligadas a Israel e outros países que apoiam o
conflito em Gaza,
uma das principais rotas comerciais do planeta. Com isso, a agência da ONU pode deixar a região a qualquer momento, mesmo diante de tanta miséria e urgência.
Na Faixa de Gaza, onde os bombardeios israelenses já deixaram
mais de 80% dos 2,3 milhões de habitantes desabrigados e praticamente metade em situação de fome catastrófica, o governo do
primeiro-ministro Benjamin Netanyahu também passou a atacar a ACNUR, responsável pela
escassa ajuda humanitária que tem chegado à região. Mesmo sem provas, membros da entidade foram acusados de participarem dos
ataques promovidos pelo Hamas no dia 7 de outubro contra Israel, o que fez diversos países interromperem o financiamento da agência.
Que fatores proporcionaram aos Estados Unidos terem a hegemonia econômica mundial?
O coordenador da graduação em relações internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF), Fernando Roberto de Freitas Almeida, lembra à Sputnik Brasil que a prática dos EUA em classificar como terroristas grupos políticos "hostis aos seus interesses" é comum.
"A partir do momento em que atuam de maneira agressiva, o que pode ser de várias formas, passam a ser consideradas entidades terroristas. É interessante observarmos que a Al-Qaeda era uma entidade beneficente muçulmana até o ataque em Nova York […]. No caso dos houthis, foi depois do envolvimento com o conflito em Gaza", explica.
Uma classificação como essa pode fazer com que a assistência internacional liderada pela ONU deixe de atuar, mesmo em países em extrema crise humanitária, e prejudica até o acesso a alimentos.
"Então o que se pode considerar como hipocrisia é fazer um discurso de defesa da democracia, dos direitos humanos e de igualdade e, no mundo real, jogar contra isso. Quem é latino-americano sabe muito bem como funcionou aqui o tempo inteiro, com ditaduras sanguinárias apoiadas. E acontece também no Oriente Médio, ainda mais sendo a grande reserva de energia do mundo", diz.
De acordo com o especialista, o fator humano é colocado como secundário frente às "estratégias" para o controle de recursos naturais no mundo.
"Essas populações que estão em situação de alta vulnerabilidade não estão só naquela região. Vários países africanos enfrentam problemas seríssimos, como o Sudão e o Congo. Na
América Latina, temos o Haiti, destruído por políticas econômicas impostas pelo que se entende por Ocidente, que foi o
fundo monetário internacional [FMI]. Essas pessoas têm realmente um valor menor do que as populações dos países desenvolvidos", critica.
Com relação ao Iêmen, o coordenador da UFF acrescenta que o país já foi atacado diversas vezes pelos EUA, com o objetivo de conter a
atuação dos houthis, que por serem xiitas são ligados ao Irã, um dos principais
inimigos dos norte-americanos, o que intensificou os problemas históricos de uma das nações mais pobres do mundo.
"Houve Bush, Obama, Trump e agora Biden [presidentes em exercício na época dos ataques]. Então nós vemos que, independentemente de ser democrata ou republicano, há ações de defesa dos interesses nacionais dos Estados Unidos, e isso é muito importante a ser considerado o tempo inteiro", enfatiza.
Doutorando e mestre em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), João Victor Motta pontua à Sputnik Brasil que toda crise no Oriente Médio está diretamente ligada às sucessivas intervenções das potências ocidentais.
"Com o objetivo de impor sua agenda geopolítica para região, o Norte Global promoveu uma série de intervenções, financiamento de milícias e conflitos armados que intensificam as razões da crise e geram novas problemáticas para a estabilização da região. Com a escalada do genocídio palestino, as movimentações nos países da região se intensificaram e exteriorizaram outros conflitos da região, como o caso do Iêmen", afirma.
Além disso, Motta acredita que para as potências centrais do sistema político e econômico, "pragmaticamente há uma clara diferença entre vidas que são passíveis ou não de solidariedade".
"Internacional e nacionalmente, no Ocidente há pessoas que importam mais e são as elites políticas, econômicas e sociais que sustentam as estruturas de desigualdade e opressão. Com isso, nas ações reais da política internacional, a destinação de ajuda humanitária e apoio aos conflitos também segue essa lógica hegemônica", complementa.
O que foi a crise da ONU?
Em janeiro, a ONU chegou a divulgar uma carta aos principais departamentos sobre a deterioração da situação financeira do órgão, com dificuldades até para o pagamento de salários em um momento de tantas tensões globais. Outro ponto que tem levado cada vez mais ao enfraquecimento da atuação da entidade é justamente a hegemonia dos EUA, que têm poder de veto sobre as iniciativas, principalmente por meio do Conselho de Segurança da Nações Unidas (CSNU).
"A Europa, membro da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte], que deveria ter sido desativada há muito tempo, se coloca de uma maneira subordinada em relação aos norte-americanos", afirma Fernando Almeida.
Segundo o especialista, mesmo em
momentos de divergência entre esses atores, como ocorreu na votação da
proposta brasileira de cessar-fogo em Gaza logo no início do conflito, quando o país estava na presidência do órgão,
a vontade de Washington se sobressaiu. "A França votou a favor da proposta, o Reino Unido se absteve, mas os Estados Unidos vetaram. Então, em última instância, caímos nos interesses da manutenção de um sistema internacional sob a hegemonia do país", diz. Além dos norte-americanos, também têm poder de veto França, China, Rússia e Reino Unido.
Todas essas decisões do órgão afetam diretamente a atuação das agências humanitárias. "Pode haver muita coisa benevolente dentro da ONU. E há. Mas hoje os vetos nessa questão de pacificação são provenientes dos Estados Unidos, até pelas ligações que eles têm com Israel e também a Arábia Saudita [no caso do Iêmen]. Isso é algo que não vai se resolver tão cedo, se for resolvido algum dia […]. Os interesses do Conselho de Segurança vão passar por cima. Por que o Brasil é um dos países que mais insiste na reforma do órgão? Para que haja maior poder para participar das decisões", analisa.
Entre as propostas brasileiras, estão o fim do veto e a entrada de novos membros, pleito que também é apoiado pelo Japão e pela Alemanha.
"Tudo isso [
o Conselho de Segurança] é uma relíquia da Segunda Guerra Mundial. Os países que conquistaram esses assentos com direito de veto foi a partir das mortes que todos tiveram no conflito. Por isso, não adianta o Brasil fazer essa reivindicação se ficar ao lado dos dois países, que como potências deveriam estar lá, mas são os derrotados da guerra", declara. Apesar disso, caso o país, que se coloca com uma diplomacia universalista, consiga apresentar bem seus pontos de vista pacifistas e negociadores, "é melhor para todo o mundo, não só para nós [o próprio país]".
'Quem paga a banda escolhe a música'
Já o pesquisador João Victor Motta retoma um velho ditado popular ao se referir à situação da ONU.
"Quem paga a banda, escolhe a música. E tem sido dessa forma nas agências da ONU, que se veem cada vez mais fragilizadas e dependentes de poucos doadores", acrescenta. Com isso, Motta avalia que não há autonomia para a realização das ações humanitárias nos locais que mais necessitam.
"Os ataques à ACNUR mostram isso, deslegitimar e desfinanciar a agência são essenciais para a consolidação da narrativa do governo de Benjamin Netanyahu, como uma estratégia de apagar as décadas de genocídio e da política colonial na Palestina", finaliza.
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