'Combate abaixo de zero': avanço da militarização do Ártico eleva o risco de uma guerra polar
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas apontam que o acirramento entre Washington e Moscou por conta da expansão unilateral dos EUA de sua plataforma continental levou os países árticos, como o Canadá, a se prepararem para um cenário de confronto.
SputnikEm dezembro do ano passado, o presidente americano, Joe Biden,
divulgou novos mapas que
expandem a plataforma continental dos EUA no Ártico, no Atlântico Norte, no mar de Bering e no golfo do México.
Feita de forma unilateral, a expansão visa garantir para os EUA recursos minerais estratégicos presentes no fundo marinho da região, como manganês, níquel, cobre, cobalto e terras-raras, cada vez mais disputados conforme o aquecimento global avança.
Porém,
a expansão arbitrária é contestada pela Rússia, que divide com os EUA a fronteira no estreito de Bering,
e pela China, concorrente na exploração dos minerais presentes na região. Moscou já afirmou que não reconhece os novos limites traçados pelos EUA.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas analisam quais os efeitos da disputa entre Moscou e Washington e qual o papel do Conselho do Ártico na questão.
O que são as plataformas continentais e qual sua importância?
Victor Gaspar Filho, editor do Boletim Geocorrente e doutor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos (PPGEM) da Escola de Guerra Naval (EGN), explica que "a plataforma continental são o leito e o subsolo marítimos existentes na zona marítima do país", e que durante séculos a divisão das zonas marítimas sempre foi muito limitada, o que mudou no século XX.
"No século XX, o direito internacional evoluiu de forma a estabelecer algumas zonas marítimas distintas, separando, por exemplo, o mar territorial, a zona econômica exclusiva, o alto mar, e tudo isso foi definido através de alguns tratados firmados principalmente ao longo do século XX, o principal deles sendo a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982, que a gente chama de UNCLOS, na sigla em inglês."
23 de dezembro 2023, 13:08
Ele afirma que a convecção determinou que "uma plataforma continental é definida até 200 milhas náuticas a partir da costa" de um país.
"O país tem direito soberano sobre os recursos ali presentes, pode explorar esses recursos que estão ali, e uma revisão pode ser feita caso o país julgue que a sua plataforma continental se expande em termos geológicos, topográficos, para baixo do que a gente considera águas internacionais."
Por que a Rússia não reconhece os novos traçados pelos EUA?
Gaspar Filho sublinha que Moscou contesta a expansão da plataforma continental dos EUA porque os norte-americanos nunca fizeram parte da UNCLOS, pois o Congresso americano entende que isso limitaria a projeção de poder do país.
"Os Estados Unidos assinaram durante a administração [Ronald] Reagan a UNCLOS, mas isso nunca foi ratificado por seu Congresso. […] A expansão da plataforma continental depende de um pleito que é feito pelos países que são signatários [da UNCLOS] e submetido à Comissão de Limites da Plataforma Continental [CLPC]."
Ele afirma que, para uma expansão ser aprovada, são necessários anos de pesquisas batimétricas, que avaliam a profundidade de lagos ou oceanos, além de pesquisas geofísicas, para que seja justificado que o leito oceânico presente abaixo das águas internacionais tem uma composição semelhante àquele que está presente na plataforma continental.
"Existem fórmulas […], só que os Estados Unidos fizeram isso de forma unilateral. Durante os últimos 20 anos eles empreenderam pesquisas offshore, o maior projeto offshore conduzido pelas agências americanas. Tem diversas agências do governo envolvidas nesse projeto, só que depois de levantar todos esses dados, isso foi aprovado pelo próprio governo [dos EUA]. Isso não foi submetido a um pleito internacional como o Brasil, por exemplo, vem fazendo."
28 de dezembro 2023, 11:01
Ele explica que
o Brasil vem pleiteando "a expansão da sua plataforma continental, parte do que a gente chama hoje de Amazônia Azul, de forma a expandir esse território e pensar a exploração de recursos e proteção também desses ecossistemas".
"Mas os Estados Unidos fizeram isso de forma unilateral, sem submeter à ONU [Organização das Nações Unidas]. E a Rússia, por sua vez, faz parte da UNCLOS. Então o discurso que foi feito pelo representante russo na Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos [ISA, na sigla em inglês], que fica em Kingston, na Jamaica, fala exatamente sobre isso, que não cabe aos Estados Unidos escolher a dedo quais são os dispositivos presentes para o tratado que lhe convém."
Qual o papel do Conselho do Ártico na disputa?
Pedro Allemand Mancebo Silva, pesquisador e doutorando em relações internacionais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), lembra que "o Ártico é uma região colonizada", onde haviam comunidades indígenas antes dos Estados reivindicarem a região como parte de seus territórios.
Por conta disso, o debate quanto a quem pertence o Ártico "dificulta mais do que esclarece as coisas".
Para ele, a questão central seria entender "como o Ártico deixou de ser um oceano, pensado como um oceano, e passou a ser esse quebra-cabeça, essa colcha de retalhos de soberanias nacionais". Nesse contexto, o papel do Conselho do Ártico é fundamental.
"O Conselho do Ártico é uma organização intergovernamental fundada em 1996. Ele tem oito Estados-membros permanentes, que são os Estados árticos, então Estados Unidos, Canadá, Islândia, Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia", explica.
"O critério para ser membro permanente [do Conselho] é ter território nacional acima do Círculo Polar Ártico, que é acima do Paralelo 66. Inclusive, por esse critério, a Islândia quase não é um Estado ártico, mas por causa de uma ilhota ela entrou", acrescenta.
Silva afirma que, além dos membros permanentes, há seis organizações indígenas que são participantes permanentes do Conselho, e "cada uma delas ou representa um povo específico do Ártico ou um povo que se espalha por mais de um país".
"Além disso, o Conselho do Ártico também tem Estados observadores. Por exemplo, a França, a Alemanha, a Itália, o Japão, a Coreia do Sul e a China são alguns países que não têm território no Ártico, mas participam das reuniões do Conselho como observadores. […] Para você entrar como observador, precisa ser aceito por unanimidade pelos membros permanentes."
Ele destaca que o Conselho do Ártico tem vários grupos de trabalho, "com temas muito específicos voltados para questões concretas".
"Por exemplo, tem um grupo de trabalho de um programa de ação sobre contaminantes no Ártico, sobre poluição de resíduos sólidos, de resíduos líquidos. Tem um grupo de trabalho de avaliação, monitoramento, um programa de avaliação e monitoramento das condições ambientais do Ártico. Questões, por exemplo, de socorro, de emergência, de apoio logístico a navios que se perdem no gelo. Tudo isso é negociado no âmbito do Conselho do Ártico."
O Conselho, no entanto, não discute questões de segurança militar, conforme disposto na Carta de Ottawa, que é o documento fundador do Conselho do Ártico, segundo aponta Silva.
"O fraseamento da questão [na Carta de Ottawa] é exatamente assim: o Conselho do Ártico não lidará com matérias relacionadas à segurança militar. Em 2019, inclusive, o então secretário de Estado americano Mike Pompeo falou que estava na hora de rever isso devido à escalada das tensões entre os membros do Conselho do Ártico, que se polarizam entre a Rússia e a OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte]. Hoje em dia isso é ainda pior do que era em 2019."
13 de setembro 2023, 10:55
Ele acrescenta que a intensificação da atividade militar e até o tensionamento militar influenciam muito na forma como o Conselho do Ártico vai lidar com os temas de sua agenda, como o combate à poluição e a eliminação de resíduos.
"O Conselho do Ártico busca construir consensos, então ele nunca vai buscar uma matéria, uma agenda polêmica, não importa qual seja a presidência de turno. Por exemplo, a gente teve a presidência da Rússia, agora a presidência é da Noruega até 2025, e elas sempre evitam essas temáticas mais espinhosas justamente para evitar que esse tensionamento geopolítico, que é global, maior do que o Ártico, influencie nas questões do Conselho que funcionam nesses grupos de trabalho […] mais como política pública."
Países árticos se preparam para 'combate abaixo de zero'
Apesar das tentativas do Conselho do Ártico de evitar o tensionamento militar na região, a corrida pela militarização do leito oceânico, somada ao aquecimento global, tornam esse cenário inevitável, como aponta Gaspar Filho.
"A presença americana naquela região incomoda [a Rússia] porque está colocando ali uma espécie de espaço que pode virar um posto avançado dos Estados Unidos numa região extremamente próxima da costa leste da Rússia. E o Ártico hoje passa por uma corrida de estabelecimento de quais vão ser as zonas do Ártico capazes de serem exploradas pelos Estados. A gente está falando da maior reserva natural de petróleo do mundo ainda intocada. […] os recursos que existem abaixo do leito oceânico do Ártico são absolutamente intocados e capazes de suprirem as economias por muitas décadas", explica o especialista.
"Se você somar ao contexto de degelo que a gente tem em virtude do aquecimento global, essa região hoje é muito mais explorável do que era na metade do século XX. Você tem zonas ali completamente navegáveis na costa norte dos países do Círculo Polar Ártico e coisas que não eram possíveis há 50 anos porque o degelo não permitia que você navegasse. Também com a evolução dos quebra-gelos e com a necessidade de fazer comércio, você hoje circula pelo mar Ártico caso tenha capacidade de fazer isso, se você tiver uma frota capaz de fazer isso", complementa.
Ele afirma que, por isso, a proteção da costa norte da Rússia é vital para Moscou, e ter uma presença americana naquela região é algo potencialmente contencioso.
Segundo o especialista, a escalada de tensão no Ártico levou países como o Canadá, por exemplo, que tem a maior parte de sua população localizada no sul próxima à fronteira com os EUA, a pensar na militarização do norte do seu território para se preparar para um cenário de guerra polar.
"Isso hoje é uma possibilidade real. Os Estados Unidos ficaram décadas envolvidos em guerras que se passavam no Oriente Médio, preparando-se para um tipo de combate que era feito efetivamente no deserto, mas hoje eles são instruídos. A doutrina americana hoje passa por treinamentos no Alasca, porque o soldado hoje nos Estados Unidos e em outros países que têm uma porção ártica no seu território se preparam para um combate abaixo de zero", afirma Gaspar Filho.
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