Panorama internacional

EUA usam venda de armas ofensivas para a Arábia Saudita a fim de pressionar Israel, diz analista

EUA voltarão a vender armas ofensivas para a Arábia Saudita, em contexto de alta tensão por operação de Israel na Faixa de Gaza. A concessão norte-americana tem intuito de reforçar a posição de Washington na região e responder à aproximação da Arábia Saudita com China e Irã, acreditam especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil.
Sputnik
Os EUA preparam a retirada do veto à venda de armas ofensivas para a Arábia Saudita, de acordo com fontes no governo americano ouvidas pelo jornal britânico Financial Times. Washington e Riad preparam a assinatura de amplo pacote de acordos bilaterais para renovar relações nas áreas de defesa e energia.
A retomada da venda de armas ofensivas norte-americanas para a Arábia Saudita colocaria fim ao veto imposto pela administração Joe Biden no início de seu mandato. Na época, a Casa Branca expressou preocupação em relação a alegadas violações aos direitos humanos pela Arábia Saudita durante sua campanha no Iêmen e à perseguição de oponentes políticos.
Entretanto, o veto não impediu a continuidade do comércio de armas entre as partes, nem a manutenção da Arábia Saudita como principal comprador de armamentos do Oriente Médio, de acordo com dados do SIPRI. Recentemente, pacote de vendas aprovado pelo Congresso dos EUA previu a modernização de aeronaves do sistema de vigilância aérea tática RE-3A da Arábia Saudita, a um valor estimado de US$ 582 milhões (cerca de R$ 3 bilhões).
Bandeiras dos EUA e da Arábia Saudita tremulam em praça no contexto da visita do presidente estadunidense, Joe Biden, ao país do Oriente Médio, Jidá, 14 de julho de 2022
No entanto, a retirada do veto é uma mudança significativa na posição pessoal do presidente dos EUA, Joe Biden, que durante sua campanha presidencial prometeu retaliar o reino saudita pela morte do jornalista Jamal Khashoggi. No início de seu mandato, Biden prometeu transformar a Arábia Saudita em um Estado pária durante o seu mandato.
De acordo com o professor adjunto de Segurança Internacional na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fernando Brancoli, os EUA temiam que a Arábia Saudita utilizasse suas armas para promover agenda própria, incompatível com a de Washington.
"Apesar de ser um aliado dos EUA, a Arábia Saudita tem uma agenda própria. Então não havia garantias para Washington sobre como essas armas seriam usadas, especialmente se considerarmos o histórico saudita", disse Brancoli à Sputnik Brasil.
A recente diversificação na política externa da Arábia Saudita, sua aproximação da China e entrada no BRICS levam os EUA a realizar concessões a fim de reter Riad como parceiro prioritário no Oriente Médio.
Visita do presidente russo Vladimir Putin à Arábia Saudita em 6 de dezembro de 2023
"O barco de uma Arábia Saudita exclusivamente vinculada aos EUA já partiu. A Arábia Saudita passará, sim, a conduzir uma política externa mais autônoma", garantiu Brancoli. "Nesse contexto, o fornecimento de armamentos é uma ferramenta que os EUA têm de garantir o seu espaço e uma aproximação com os sauditas."
O fornecimento de armas de alto valor tecnológico implica a formação de uma parceria de longo prazo, "uma vez que só os EUA poderão fornecer peças e serviços de manutenção" para esses equipamentos, apontou o especialista. "Logo, os sauditas deverão ter em mente que é necessário manter boas relações com os EUA, caso contrário podem perder a operacionalidade de seu arsenal ofensivo."
O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, dá início à sua agenda em Riad se reunindo com a autoridade máxima do país, Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro e primeiro-ministro da Arábia Saudita, em 28 de novembro de 2023
De acordo com o pesquisador em Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jonuel Gonçalves, a tentativa de Biden de pressionar o seu parceiro saudita deu errado, compelindo a Casa Branca a adotar uma política mais realista em relação ao reino.
"A administração Biden chegou à conclusão de que a Arábia Saudita passaria a buscar armamentos em outras fontes, como fez o Egito", disse Gonçalves à Sputnik Brasil. "Logo, concluíram que seria mais realista do ponto de vista diplomático e do complexo industrial militar norte-americano retomar essas vendas aos sauditas."

Recado a Israel

A dificuldade da administração Biden de impor limites à escala da operação israelense em Gaza, que tem gerado constrangimento público à Casa Branca e prejuízos eleitorais graves ao Partido Democrata, também motiva os EUA a se reaproximar da Arábia Saudita. Para Gonçalves, os EUA precisam manter a Arábia Saudita na mesa de negociações para concluir um cessar-fogo em Gaza.
"Em um momento no qual Israel está impondo obstáculos, o fortalecimento dos laços com a Arábia Saudita parece importante para Washington. Os EUA estão muito insatisfeitos por Israel, que é um aliado dos EUA, não estar seguindo a disciplina do sistema. Segundo o Pentágono, Israel caminha para uma derrota estratégica", disse Gonçalves. "Nesse contexto, os EUA fazem pressão em Israel através dos sauditas."
De fato, em recente oitiva no Congresso dos EUA, o secretário de Estado do país, Antony Blinken, relacionou os obstáculos impostos por Israel a um cessar-fogo na Faixa de Gaza e a reaproximação entre Washington e Riad, reportou a Reuters.
Primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, participa de uma sessão especial para votar um novo governo no Knesset em Jerusalém (foto de arquivo)
"Até agora [as negociações para um cessar-fogo] vêm sendo uma questão hipotética ou teórica para Israel. Caso concluamos os acordos com a Arábia Saudita, essa questão hipotética ou teórica torna-se real, e eles terão que responder de uma forma ou de outra", disse Blinken.
Para Gonçalves, a reaproximação entre Washington e Riad também "aumenta a pressão sobre Israel, para que volte a fornecer condições para a assinatura dos acordos de normalização das relações com a Arábia Saudita".
O professor Brancoli concorda, lembrando que "os EUA têm muito interesse na normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita, no âmbito dos Acordos de Abraão".
Presidente dos EUA, Donald Trump, ao lado do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu após a assinatura do documento que reconhece a soberania de Israel sobre as Colinas de Golã
"A ideia dos Acordos de Abraão era a de que os países árabes reconheceriam Israel em troca de auxílio financeiro e militar dos EUA", lembrou Brancoli. "Mas com a enorme crise instaurada na região desde 7 de outubro, vemos que os EUA se esforçam para manter os sauditas na mesa de negociações."

Retorno dos houthis

A retomada da venda de armas ofensivas dos EUA para a Arábia Saudita também configura uma resposta à ofensiva do grupo iemenita houthi contra embarcações ocidentais, que levou ao bloqueio de importantes rotas comerciais, sérios prejuízos econômicos. De acordo com porta-vozes do grupo, a ofensiva foi uma retaliação à operação militar israelense na Faixa de Gaza.
Coalizão comandada pela Arábia Saudita iniciou operação no Iêmen em 2015 para combater a milícia houthi, que mantém ligações com o Irã. Ainda que amplamente financiada por Washington, a operação caiu no desgosto de membros do Congresso norte-americano, que pressionaram pelo fim da empreitada. Em 2022, um acordo de cessar-fogo mediado pela ONU permitiu significativa desescalada da violência, apesar da continuada crise humanitária iemenita.
Partidários dos houthis participaram de um comício contra os ataques liderados pelos EUA contra o Iêmen e em apoio aos palestinos na Faixa de Gaza, em Sanaa, Iêmen, 26 de abril de 2024.
O início do conflito em Gaza, no entanto, colocou o Iêmen e a região do mar Vermelho de volta na agenda estratégica dos EUA. Em dezembro de 2023, o Pentágono lançou operação naval na área, com o apoio de países como Reino Unido, Noruega, Canadá, França e Itália. Em janeiro deste ano, Washington voltou a classificar o grupo houthi como uma organização terrorista, consolidando a tendência de retomada da violência no Iêmen.
De acordo com Gonçalves, a expectativa é de que os novos acordos garantam a Riad o acesso a meios navais para participar de futuras operações no mar Vermelho.
"O fato é que a Arábia Saudita até agora não colocou nem uma fragata sequer para participar da operação conduzida pelos EUA no mar Vermelho, ainda que fosse para marcar presença simbolicamente", apontou Gonçalves. "Temos que manter em mente que a situação no mar Vermelho não apontará sinais de melhora, enquanto a operação israelense em Gaza continuar."
Brancoli acredita que o envio de novas armas para a Arábia Saudita proporcionará o engajamento mais contundente de Riad nesse tipo de operação.
Operação da Marinha dos Estados Unidos contra ataques a embarcações comerciais no mar Vermelho, em 9 de agosto de 2023
"Caso haja nova tentativa de bloquear rotas comerciais na região, os EUA terão mais instrumentos na região para responder", considerou Brancoli. "Com os novos armamentos, os sauditas poderão ser convidados ou impelidos a serem atores provedores de segurança na região de maneira mais ativa."
Apesar dos riscos que o envio de armas ofensivas impõe para equilíbrio estratégico regional, a concessão norte-americana pode ser considerada uma vitória da virada autonomista da política externa saudita. A expansão do rol de parceiros internacionais permitiu a Riad mais margem de manobra na negociação com os EUA, acredita Brancoli.
"Do ponto de vista da Arábia Saudita, a situação atual é vantajosa. Afinal ela consegue pulverizar suas relações, estabelecendo laços com China e Irã, ao mesmo tempo que adquire novas armas dos EUA", considerou Brancoli. "Agora, vendas de armas sempre levantam suspeitas nos países vizinhos, seja no Oriente Médio ou em qualquer outra região do mundo."
Com o possível objetivo de acalmar os seus novos parceiros regionais acerca da compra de armas ofensivas dos EUA, neste sábado (25), o príncipe saudita Mohammed bin Salman recentemente aceitou convite para visitar o Irã. A visita, que ainda não tem data marcada, será a primeira de um líder saudita ao Irã em duas décadas, reportou a agência estatal iraniana IRNA.
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