Dia da Língua Russa: cada vez mais brasileiros de várias gerações se apaixonam pelo idioma (VÍDEOS)
Comemorada nesta quinta-feira (6), a língua russa tem ganhado cada vez mais adeptos no Brasil e gerado oportunidades profissionais dentro e fora do país.
SputnikAs letrinhas "diferentes" assustam um brasileiro desavisado ao ver o alfabeto cirílico pela primeira vez. E ainda tem as declinações, que mudam as terminações dos adjetivos, pronomes e nomes, e os verbos de movimento.
A aluna Ana Júlia Ignácio, 15 anos, do 1º ano do ensino médio do Colégio Estadual Tenente Otávio Pinheiro (CETOP), colégio intercultural Brasil-Rússia em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, conta que, passado o susto, pegou gosto pelo idioma.
"São 33 letras e um monte de coisa! No início falei 'Cruz credo, tá amarrado!', mas depois peguei o jeito. Depois que aprende, é tranquilo", conta a estudante.
Inaugurada em 2022, a unidade é o primeiro polo de educação intercultural Brasil-Rússia no país e une as disciplinas do ensino médio brasileiro com matérias que envolvem língua, cultura, geopolítica e história da Rússia.
Ouvida pela Spunik Brasil, que visitou a escola, Ana Júlia não acha que os desafios do idioma prejudicaram seu fascínio:
"De início, estudava apenas porque era matéria da escola, mas depois acabei gostando. Estudo aqui na escola e também em casa, pela plataforma da faculdade da RUDN [sigla em russo para Universidade Russa da Amizade dos Povos], vejo vídeos, ouço música russa e gosto de ler poemas", conta ela. "Você se aprofunda e se apaixona, já era", garante a adolescente.
15 de fevereiro 2022, 16:13
"Antes só conhecia aqueles castelos [Kremlin], pontos turísticos… Agora já sei que a Rússia tem 11 fusos horários, que tem lugares em que faz menos 45 °C… Fiquei boba", conta. "E que o índice de analfabetismo é muito baixo, pois na época da União Soviética fizeram um intensivão de aulas", explica a estudante.
A colega Anna Julia Barbosa, 15 anos, já pensa em fazer faculdade na Rússia:
"Nunca achei que fosse sair do país, mas para a Rússia tenho muita vontade. Tenho muita curiosidade de conhecer as pessoas, como elas vivem, é um choque cultural que adoraria viver."
De visita ao Brasil, a professora da RUDN Olga Kutsoni diz ter ficado impressionada com a receptividade e o interesse dos alunos da escola de Belford Roxo pela cultura russa:
"Os alunos são muito abertos, muito ativos, interessados. Com os do terceiro ano, falamos sobre a Rússia por meio de poesias, autores contemporâneos. Falamos sobre os símbolos do Estado russo, as tradições russas, os povos que vivem no território da Rússia e falam a língua russa", conta ela.
Número de alunos brasileiros só aumenta
De acordo com os especialistas e professores ouvidos pela Sputnik Brasil, a demanda por cursos de russo tem aumentado ano a ano nas últimas décadas.
Professora de literatura e cultura russas da Universidade de São Paulo (USP), Elena Vassina lembra que há 25 anos, quando ingressou como professora na instituição, o número de alunos não passava de três por turma. "Cogitaram até fechar o departamento", lembra. "Hoje recebemos cerca de 30 alunos por turma", celebra Vassina.
"É maravilhoso, porque vejo como a cada ano está crescendo, se ampliando o interesse pela língua russa, pela literatura russa. Agora três alunos nossos estão fazendo intercâmbio em Moscou. Além da USP, vejo como se amplia o interesse", comemora.
A maioria dos alunos de Vassina tem a literatura como principal atrativo para cursar a faculdade:
"Ontem fiquei das 18h00 até meia-noite falando de Nabokov, de "Lolita", com o Clube das Meninas, na faixa de 20 anos de idade. Amanhã vou à Biblioteca do Senado falar sobre os demônios de Dostoiévski."
Mas também há alunos que são motivados pela música, destaca ela, e, mais recentemente, "vieram muitos por interesse político". Ainda segundo a professora da USP, todos os seus alunos formados, "de um jeito ou de outro, encontram trabalho".
No último
Festival Mundial da Juventude, na cidade russa de Sochi, realizado em março, a
delegação brasileira contou com quase 300 jovens de diferentes estados do país, uma das mais numerosas do evento, segundo os organizadores, de um universo de
20 mil estudantes de 180 países.
O professor de russo Lucas Rubio, do Instituto Soyuz, foi um deles:
"Os russos são simpáticos e ficam encantados quando descobrem que sou brasileiro e falo russo. Foi ótimo não só por conta do conteúdo humano e intelectual que adquiri lá, mas também para praticar quase 100% do tempo o idioma que tanto me esforço para aprender e ensinar aos outros", conta.
Possibilidade de driblar a russofobia
Para Rubio, o domínio do russo lhe possibilitou "driblar o bloqueio midiático e fugir da propaganda de guerra russofóbica ocidental".
"A pessoa que aprende russo pode acessar uma infinidade de obras técnicas das mais diversas áreas do conhecimento, da medicina, engenharia, até a computação, cosmonáutica, pedagogia e geofísica. Além disso, os russos são parceiros estratégicos do Brasil no âmbito do BRICS e muitas empresas russas atuam no Brasil e no mundo", destaca Rubio.
Guerra Fria prejudicou tradução direta de clássicos
Vassina lembra que há cerca de 50 anos não havia traduções diretas do russo para o português — o que se faziam antes eram traduções a partir do inglês e do francês, principalmente.
Essa realidade mudou, sobretudo com o fim da Guerra Fria, opinam os especialistas. O jornalista, especialista em música clássica e tradutor de russo Irineu Franco Perpétuo é prova viva da mudança:
"A grande maioria [dos tradutores] tem sobrenome latino, português, italiano, que é o meu caso também. Somos pessoas sem nenhuma ligação com a Rússia do ponto de vista de sangue, de descendência, mas que nos encantamos com a cultura russa a partir da literatura", comenta ele.
O tradutor afirma que para o público brasileiro a literatura russa é sinal de qualidade, o que possibilita editoras a lançarem autores russos pouco conhecidos mundialmente. "O leitor brasileiro vai dar um crédito para essa literatura porque ela foi escrita em russo."
"Tem vários autores contemporâneos sendo traduzidos, entrando aos poucos no Brasil, se somando a esse cânone que rendeu a invasão russa no Brasil. Essa invasão literária fez com que pessoas como eu e muitos outros que não têm nada a ver com aquela parte do mundo tenham se encantado com a língua", comenta Perpétuo.
Ele afirma que as traduções indiretas são cada vez menos aceitas pelo público.
"A literatura russa está muito consolidada, vejo pelas encomendas que recebo. Tem mais 10, 20, 30 pessoas que podem traduzir o mesmo livro. Há algum tempo, há uma formação constante de gente habilitada a trabalhar profissionalmente com o russo, então tem essa sinergia do mercado, uma coisa alimenta a outra", explica Franco Perpétuo.
O fato de ter mais gente estudando o idioma também aumenta a demanda por títulos fora do comum, pondera ele, por autores mais raros.
"O interesse por essa cultura só vejo realmente crescer, não vejo arrefecer", afirma o tradutor.
O legado soviético
O interesse de Lucas Rubio pelo russo começou no ensino fundamental, ao estudar a
Revolução Russa.
"A vitória na Grande Guerra Patriótica também me interessava muito. Gostava de pesquisar na Internet cartazes e músicas soviéticas e sempre quis entender o que aquelas coisas diziam, já que estavam em um idioma totalmente diferente do meu", lembra ele.
Para Franco Pepétuo, o impacto da obra
"Irmãos Karamazov", de Fiódor Dostoiévski, foi tamanho que, aos 14 anos, ingressou na
União Cultural Brasil-União Soviética, uma escola de língua russa que existia na cidade de São Paulo na década de 1980. Desde 1997, o nome da unidade foi alterado para
União Cultural pela Amizade dos Povos.
"Os cursos eram relativamente baratos, e consegui convencer meus pais de que naquela fase terrível da adolescência a melhor coisa que eles tinham a fazer era se livrar de mim, me deixando brincar com o alfabeto cirílico", conta ele.
O
passado soviético é um dos principais atrativos para muitos brasileiros que
se embrenham no estudo do russo, apontam os especialistas.
"Muitas pessoas estão politicamente ligadas à União Soviética ou à Rússia moderna e seu projeto de construção de um mundo multipolar. Outras são apaixonadas pela cultura e pela riquíssima literatura da Rússia", opina Rubio. "Há ainda os que me procuram para aprender russo por razões profissionais, atuam em áreas onde os russos são ótimos, e os aventureiros que só querem aprender algo novo e se lançam no desafio do russo."
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O professor de russo Lucas Rubio, do Instituto Soyuz, em visita à Rússia durante o Festival Mundial da Juventude na cidade de Sochi
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Lucas Rubio durante o Festival Mundial da Juventude em Sochi
Protagonismo feminino na literatura contemporânea
Os clássicos
Dostoiévski, Tchekhov, Gógol, Tolstói e Nabokov continuam sendo
referências literárias russas a influenciar outras literaturas mundo afora e diferentes gerações ao longo dos últimos séculos, inclusive no Brasil. Entretanto, segundo os especialistas ouvidos pela Sputnik, a literatura russa contemporânea vem florescendo em território brasileiro,
principalmente a produzida por mulheres.
Na Rússia, a partir do século XX, segundo Franco Perpétuo, as mulheres passam a dominar os espaços de leitura e criação.
"Acho que tem uma emergência de autoras na Rússia. Isso, na verdade, ajuda um pouco que elas sejam bem recebidas hoje aqui no Brasil, tem uma demanda também por escrita feminina. Então acho que isso se encontra", avalia Franco Perpétuo.
Vassina também nota o crescente interesse da academia pelo estudo de escritoras russas:
"Minhas alunas, muitas querem estudar, traduzir a literatura de mulheres russas", afirma a professora.
Rússia por e para brasileiros
Segundo o Itamaraty, em 2023 havia cerca de mil residentes brasileiros na Rússia, número que deve ser maior, já que o registro na representação consular não é obrigatório.
O professor de dança e bailarino Antonio Claudio Luz Silva teve a oportunidade de conhecer a Rússia em 2003 a trabalho. O projeto original era ficar seis meses, mas cerca de 20 anos depois, Kakau, como é conhecido no meio artístico, continua na Rússia, agora casado e com um filho de 1 ano e 9 meses, que já tem o russo como língua materna.
O idioma, o frio e o choque cultural foram uma prova de fogo para um baiano acostumado a praia e calor. A chegada em outubro o fez ter contato com a neve pela primeira vez:
"Lembrei daquele filme do Macaulay Culkin, 'Esqueceram de mim', aquela neve toda. Muito frio, tempo nublado, todo lugar tem que vestir casaco, cachecol e aquele chapeuzinho do Chaves", brinca.
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Dançarino e residente na Rússia há mais de 20 anos, o brasileiro Antonio Claudio Luz Silva, conhecido como Kakau, joga capoeira na Praça Vermelha, em Moscou, em junho de 2024
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Professor e dançarino brasileiro, Antonio Claudio Luz Silva, o Kakau, que vive na capital russa, Moscou, posa com alunos mirins, em junho de 2024
Ele, que já rodou o país todo fazendo apresentações com sua companhia de dança, conta que o idioma segue sendo um desafio duas décadas depois. A esposa, russa, é sua principal professora do idioma.
"Ela fala que tem que estar sempre estudando. Tanto que estou sempre estudando. Sempre me corrige em alguma coisa. Que erro quando me empolgo, né? Quando não sai, quero falar inglês. Ela fala: 'Não. Vai procurar essa palavra no dicionário'", comenta.
Sobre a data
Instituído pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, na sigla em inglês) em 2010, o Dia da Língua Russa é celebrado em 6 de junho e coincide com o aniversário do poeta, prosador, dramaturgo, historiador e literato Aleksandr Pushkin (1799-1837).
Em 2011, o governo russo instaurou o Dia da Língua Russa no país para "preservar, apoiar e desenvolver a língua russa como patrimônio nacional dos povos da Federação da Rússia".
De origem eslava, o russo é o
oitavo idioma mais falado no mundo, com cerca de 270 milhões de falantes, sendo 146 milhões somente na Rússia, de acordo com dados divulgados pelo
Instituto Pushkin de Língua Russa.
Além da Rússia, Belarus, Quirguistão e Cazaquistão são países em que o russo é a língua oficial, mas ele também é amplamente falado na Armênia, no Azerbaijão, na Estônia, na Moldávia, no Tajiquistão e na Ucrânia. O domínio da língua é também primordial para
quem deseja se tornar cosmonauta.
"Fiquei fascinado pela história da União Soviética e suas imensas conquistas sociais, econômicas, militares e tecnológicas. Lembro que a figura de Yuri Gagarin exercia um grande magnetismo sobre mim, e o russo é o idioma do Cosmos. O primeiro satélite e os primeiros humanos a chegarem e a habitarem o espaço aberto foram os soviéticos, e o primeiro idioma falado lá fora entre as estrelas foi o russo. Ninguém pode apagar esse título", conclui Rubio.
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