Análise: rusga entre Alemanha e Itália atrasa envio de blindado comprado pelo Exército Brasileiro
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas afirmam que a retenção do Centauro II no porto de Hamburgo é fruto de divergências entre os dois países europeus em relação ao conflito ucraniano, e que o caso expõe a necessidade de o Brasil reduzir a dependência externa na fabricação de blindados.
SputnikAdquirido pelo Exército do Brasil para a renovação da frota terrestre, o Centauro II-BR, também chamado de Veículo Blindado de Combate de Cavalaria (VBC Cav),
está retido no porto de Hamburgo, na Alemanha.
Fabricado na Itália pelo Consórcio IVECO-Oto Melara (CIO), que venceu o processo de licitação para a compra de 98 unidades do Centauro II-BR, no valor de R$ 5 bilhões, o blindado passa por uma fase de testes antes de a compra ser finalizada. A primeira avaliação técnica foi feita na Itália, por engenheiros brasileiros, e já tem 80% das etapas concluídas. A segunda fase é feita no Brasil, com testes em situação de combate no terreno brasileiro, que tem características diferentes do da Itália.
O veículo deveria ter desembarcado no Brasil em 20 de junho, mas ficou retido no porto de Hamburgo por conta de ausência de documentação. A expectativa era que os trâmites alfandegários fossem solucionados até a última terça-feira (2), o que não ocorreu. O Exército não informou os motivos do novo adiamento para o envio, mas destacou que o embarque segue dentro do prazo estabelecido para a aquisição dos veículos. Em Hamburgo, a justificativa dada foi falta de documentação.
O caso ganha contornos políticos, uma vez que o blindado foi retido em um porto da Alemanha, que em fevereiro de 2023 vetou a exportação de 28 blindados Guarani, desenvolvidos pelo Exército do Brasil junto com a IVECO, para as Filipinas, medida vista na época pelo governo Lula como retaliação ao Brasil por conta da recusa do governo brasileiro em vender munição de tanques para Berlim repassar à Ucrânia em seu confronto com a Rússia.
Em entrevista à
Sputnik Brasil, Pedro Paulo Rezende, especialista em assuntos militares, explica que há um aspecto político no caso, mas não
envolvendo o governo brasileiro, e sim a primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, e o chanceler alemão, Olaf Scholz.
"A questão da retenção do Centauro está muito mais ligada a problemas entre a Itália e a Alemanha do que entre a Alemanha e o Brasil. Nós já conseguimos consertar nossa relação com a Alemanha em relação à exportação dos Guaranis para as Filipinas. A Alemanha forneceu os equipamentos necessários, e eles, hoje em dia, já foram entregues ao Exército filipino. Então o problema maior é entre a Itália e a Alemanha."
Ele acrescenta que a Alemanha acusa a Itália de não fornecer o suficiente para o conflito na Ucrânia, então "usou um subterfúgio, que foi a falta de um documento relativo ao impacto ambiental, para bloquear o Centauro II em Hamburgo".
"O que é engraçado é que a Itália resolveu enviar [o tanque] para [o porto de] Hamburgo para antecipar a entrega do blindado ao Brasil. Eles só teriam navios em La Spezia rumo ao Brasil, 20 dias depois da saída do navio de Hamburgo. Então a tentativa de acelerar o processo de entrega do blindado ao Brasil terminou atrasando a entrega do blindado", afirma o especialista.
Fabrício Schiavo Avila, doutor em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE), ressalta que a aquisição do Centauro II é um
passo importante na modernização da frota terrestre
"porque serviria como apoio para a infantaria, para o reconhecimento blindado e como um caça-tanques".
"O carro de combate apresenta um bom emprego dos recursos à disposição das Forças Armadas brasileiras por apresentar essas três funções em um único armamento. Os brasileiros, russos e franceses possuem muita experiência no manejo de blindados com rodas em vez de lagartas. O veículo é bem adaptado ao tamanho do Brasil, e sua velocidade de mais de 100 km/h e seu alcance de quase 800 km atendem aos requisitos de nossas dimensões continentais. Em princípio, não torna o Centauro II tão dependente do transporte aéreo", explica.
29 de janeiro 2023, 13:34
Ele destaca que o Brasil possui cerca de 408 blindados de reconhecimento EE-9 Cascavel, segundo o Balanço Militar de 2021 do Instituto Estratégico de Londres. Segundo Avila, existem programas de modernização do EE-9 Cascavel, "mas os próprios materiais se deterioram com o passar do tempo".
"Existem blindados com quase 40 anos de uso, e o armamento passa a ser perigoso para as tropas. A aquisição de 98 Centauros representa a substituição de 25% dessa força, ou seja, o Brasil ainda teria uma trajetória […] que demandaria mais gastos para a modernização de sua força de blindados de mesma categoria. Consequentemente, a fabricação no Brasil de carros de combate de diferentes tipos e a diversificação de países fornecedores pode diminuir muito os custos, gerar empregos, tecnologia e reduzir a dependência externa."
Avila enfatiza que o caso envolvendo o Centauro II, em princípio, demonstra a fragilidade do Brasil em depender de fornecedores externos para a modernização de suas tropas.
"A dependência da aquisição no exterior de um veículo de mesma categoria do Cascavel EE-9, como o Centauro II, pode passar por constrangimentos. Principalmente as normas europeias comuns de exportação, que são mais rígidas que em outros lugares e cujos armamentos possuem regras mais específicas. Ao mesmo tempo, cabe lembrar que a possibilidade de efetivação do acordo entre União Europeia e Mercosul poderia diminuir os entraves burocráticos. As mudanças de armamentos nas tropas em tempo de paz são de médio prazo, e o treinamento da tropa não é tão simples."
Avila julga que "toda ação é política, e a retenção dos blindados Centauro II demonstra os receios da Alemanha frente à modernização das Forças Armadas brasileiras".
"A conjuntura da operação militar especial na Ucrânia constrange os Estados a se aproximarem do BRICS ou da [Organização do Tratado do Atlântico Norte] OTAN, e essas ações costumam pressionar os países sul-americanos. No âmbito da política interna alemã, a frente Aliança 90/Verdes está perdendo espaço, e a retenção do carro de combate no porto pode representar algum tipo de preocupação com questões mais pacifistas que estavam na pauta da sociedade antes de 2022."
Ele afirma que a retenção dos blindados Centauro II no porto de Hamburgo possui um simbolismo mais amplo, ao indispor os alemães com seus aliados italianos frente a uma exportação para o Brasil.
"Consequentemente, os próximos blindados deverão sair de portos italianos e se tornar mais um fator de afastamento entre Alemanha e Itália, que já não possuem a mesma sintonia em relação à condução da OTAN no conflito da Ucrânia."
Ele afirma que o Brasil precisa "reduzir sua dependência do exterior na fabricação de blindados e diversificar as opções de aquisição de armamentos".
"A aquisição de veículos autopropulsados de artilharia pelo Exército Brasileiro apresenta um exemplo, onde participaram do processo vários países, como a China. Dentro do BRICS, a própria Índia é muito dependente de fornecedores externos, mas além da transferência de tecnologia, o armamento é produzido localmente. Novamente, a Alemanha demonstra que o Brasil necessita repensar seu programa de modernização de blindados para reduzir a dependência do exterior, diversificar parcerias com outros países e fortalecer a indústria nacional", conclui o especialista.
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