Política brasileira para a África deixa a desejar com ausência de vertentes claras e reduções de pessoal do Itamaraty locado nas embaixadas, avaliaram especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil. A falta de engajamento brasileiro contrasta não só com as promessas do governo Lula 3, mas também com a atividade intensa de outras potências no continente africano.
Alegando a necessidade de colocar mais diplomatas em Brasília para atender às demandas da presidência brasileira do G20, o Itamaraty esvaziou embaixadas já mal equipadas na África, no primeiro semestre de 2024. A redução deve ser mantida em 2025, quando o Brasil sediará a COP30 e a assumirá a liderança do BRICS, relatou a Folha de São Paulo.
Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, durante almoço em comemoração ao dia da África no Palácio do Itamaraty, Brasília, 25 de maio de 2023
© Foto / Marcelo Camargo/Agência Brasil
As relações brasileiras com o continente tampouco se favorecem do recente escândalo gerado pela abordagem policial violenta de filhos de diplomatas africanos no Rio de Janeiro, no início de julho. O Ministério das Relações Exteriores teve que pedir satisfações às autoridades fluminenses e pedir desculpas formais aos embaixadores de Burkina Faso e Gabão, recebidos no Palácio do Itamaraty pelo chefe do Cerimonial do Itamaraty, embaixador Mauro Furlan.
O ministro das Relações Exteriores de Lula, Mauro Vieira, pareceu tentar aplacar as críticas ao realizar visita oficial ao Togo, em meados de julho passado. Na ocasião, as autoridades togolesas comemoraram a primeira visita de um chanceler brasileiro em 50 anos. Vieira seguiu viagem para a Cúpula de Ministros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em São Tomé e Príncipe, reiterando o apoio do país à organização que seu chefe Lula ajudou a refundar.
Reunião bilateral ampliada Brasil e Etiópia em 16 de fevereiro de 2024, na capital etíope, Adis Abeba
© Foto / Ricardo Stuckert / Planalto
O engajamento de Mauro Vieira pode ser insuficiente diante da deterioração da presença brasileira na África na última década. Para o pesquisador sênior em Governança e Diplomacia Africana no Instituto Sul Africano de Assuntos Internacionais (SAIIA) Gustavo de Carvalho, "a África é, coletivamente, secundária ou mesmo terciária para o Brasil".
"Não acredito que o Brasil tenha uma política africana no momento. Desde o início do novo governo Lula, vemos que a volta da retórica sobre a África não se consolidou materialmente", disse Carvalho à Sputnik Brasil. "A retórica brasileira é sempre muito sofisticada, mas o discurso por si só não avança uma política."
O analista aponta para o número reduzido de diplomatas locados em embaixadas ao redor do continente, inclusive em países com comunidade brasileira significativa, como Angola. Dados publicados nesta segunda-feira (29) pelo MRE apontam para 39.600 brasileiros na África, sendo 25 mil destes residentes em Angola, seguida por África do Sul, com 3.600 expatriados e Moçambique, com 3.250.
Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante a cerimônia de condecoração com a Ordem Dr. António Agostinho Neto, e do presidente João Lourenço com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, no Palácio Presidencial de Angola, Luanda, Angola, 25 de agosto de 2023
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"A embaixada de Angola está com capacidade extremamente reduzida, principalmente se considerarmos a sua importância histórica para o Brasil", disse Carvalho. "Mas o número absoluto de diplomatas trabalhando em uma embaixada me preocupa menos do que a ausência de um papel estratégico para elas."
De acordo com a revista IstoÉ, a Embaixada do Brasil na capital angolana Luanda conta atualmente com quatro diplomatas, enquanto a embaixada da China conta com 25, a russa com 14 e a dos EUA com nove funcionários.
"Mesmo que o governo tivesse empenhado, o espaço que o Brasil tem hoje para atuar na África é menor do que aquele que tínhamos nos primeiros mandatos de Lula", considerou Carvalho. "Naquela época, o Brasil estava em posição similar à da China em vários aspectos, inclusive na inserção comercial. Atualmente, a China é muito mais atuante, e o Brasil não se encontra nem entre os principais dez parceiros comerciais da África."
De acordo com o Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio, a corrente comercial Brasil-África recuou de 7% em 2007 para somente 3,5% em 2023. O comércio brasileiro com o continente africano atualmente é de cerca de R$ 13,2 bilhões, o que, apesar de não ser uma cifra irrelevante, fica bastante aquém do potencial, acredita Carvalho.
Stand da Odebrecht na LADD 2015
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"Infelizmente, as empresas brasileiras já não mostram o interesse em expandir suas atividades para a África da mesma maneira que víamos durante os primeiros governos de Lula, com destaque para as construtoras", lamentou Carvalho. "Realmente, a retirada das construtoras quebrou um grande pilar da política externa brasileira para a África."
Saída a jato de empresas brasileiras
O advogado sul-africano e consultor de direito internacional da Organização dos Advogados do Brasil (OAB) Emile Myburgh, que participou diretamente da internacionalização de empresas no continente africano durante os primeiros governos Lula, relatou a ascensão e queda do capital brasileiro na África.
"Na época, nosso escritório de advocacia recebeu na África do Sul empresas como a Marcopolo [setor automotivo], Odebrecht, Camargo Corrêa [setor de engenharia], JBS [setor frigorífico] e inúmeras outras de menor porte", disse Myburgh à Sputnik Brasil. "Esse movimento se deu em grande parte por iniciativa do presidente Lula, que incentivava o capital brasileiro a se internacionalizar e investir na África."
O advogado relata os efeitos adversos da Operação Lava Jato sobre a presença brasileira na África do Sul, que atualmente "se reduz a algumas poucas empresas de pequeno porte", disse o advogado.
Sergio Moro e Deltan Dallagnol, procurador federal e coordenador da Lava Jato no MPF, participam do Fórum Mãos Limpas & Lava Jato (foto de arquivo)
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"A Camargo Corrêa fechou as portas, a Odebrecht teve que suspender as atividades por um bom tempo e o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] fechou sua filial em Joanesburgo", lamentou o sul-africano. "A realidade é que eu fechei a maioria das empresas brasileiras que abri aqui."
O advogado rejeita a narrativa difundida no Brasil de que a política de Lula para a África consistia, basicamente, "no envio de dinheiro brasileiro para ditadores africanos". "Posso dizer em primeira mão que eu vi os contratos, e nenhum centavo saía do Brasil. Quem assumia os riscos eram os bancos locais, e os recursos investidos pelo Brasil eram revertidos para os produtores brasileiros", relatou.
"A Operação Lava Jato teve um impacto desnecessariamente negativo [para a política brasileira na África]. Ela levou a uma redução lamentável no volume de negócios", declarou Myburgh. "Na minha opinião, vai levar décadas para o Brasil recuperar o prestígio econômico que tinha, não apenas na África, mas no mundo."
Além da fragilidade doméstica do atual governo, que não garante a Lula o mesmo poder de convencer o capital nacional a voltar para a África, a falta de conhecimento mútuo continua sendo um obstáculo para relações mais próximas.
Reunião de Ministros das Relações Exteriores do Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul (IBAS), com a presença dos chanceleres Mauro Vieira, do Brasil, e Grace Naledi Pandor, da África do Sul, bem como do ministro Shri V. Muraleedharan, da Índia, 22 de fevereiro de 2024
© Foto / Divulgação MRE Brasil
"Eu vejo que as percepções equivocadas dos brasileiros sobre a África e vice-versa continuam as mesmas. Atuo nesse ramo há 25 anos, e ouço hoje a mesma ignorância que ouvia há 25 anos atrás", disse Myburgh.
Segundo ele, enquanto "na África as pessoas acham que um homem de negócios brasileiro só estará interessado em tráfico de entorpecentes", no Brasil acham que africanos só se engajam no contrabando de pedras preciosas.
África no centro da competição global
Essa falta de conhecimento mútuo não ajuda o Brasil a competir pela influência no continente africano, que atualmente é considerado área de expansão prioritária por grandes e médias potências, como Rússia, China e Turquia.
"A África sabe que está no centro de uma competição geopolítica global e, por isso, tem demandas muito mais complexas", explicou o pesquisador do SAIIA Carvalho. "Não é só chegar aqui como uma agência de cooperação, ou com algum dinheiro. Os africanos têm a expectativa de construir parcerias muito mais profundas."
O analista nota uma certa "decepção" das partes africanas em relação ao Brasil, que teria prometido muito no passado, mas entregado pouco. Apesar disso, há "um sentimento claro de simpatia" por partes das lideranças africanas, o que garante "condições para crescer", caso Brasília tenha real interesse.
"O Brasil não é parte do pensamento geoestratégico africano no momento. Por isso, cabe ao Brasil se perguntar se, de fato, tem interesse em realizar parcerias no continente. Com a presença de muitos atores internacionais, o Brasil deve calcular se dispõe dos recursos necessários para competir na África", concluiu o especialista.