Compra de obuseiros de Israel contraria os objetivos da política externa brasileira, notam analistas
14:53, 24 de setembro 2024
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam o imbróglio em torno da compra de blindados de combate israelenses que colocou em lados opostos o ministro da Defesa, José Mucio, e o assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais, Celso Amorim.
SputnikA ofensiva israelense na Faixa de Gaza repercutiu no Brasil na forma de impasse entre duas áreas críticas para o governo: a defesa e as relações exteriores.
No cerne da controvérsia está a
compra de 36 obuseiros produzidos pela empresa israelense Elbit Systems,
que em abril venceu uma licitação de R$ 1 bilhão para fornecer os veículos de combate ao Brasil.
Os obuseiros da Elbit Systems compõem o projeto Atmos. Diferentemente dos modelos antigos, os equipamentos militares ficam acoplados a viaturas blindadas de oito rodas — o que permite movimentar a arma com mais facilidade e velocidade e substituiria cerca de 300 obuseiros antigos das Forças Armadas.
A compra dos blindados é defendida pelo ministro da Defesa, José Mucio,
que aponta a aquisição como necessária para a modernização da frota do Exército Brasileiro. Porém é rechaçada pelo assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais,
Celso Amorim, que vem aconselhando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a
não adquirir os blindados de um país criticado pelo próprio chefe de Estado por conta de sua ação militar na Faixa de Gaza, que o governo brasileiro aponta como desproporcional.
O principal temor é que a compra leve a um constrangimento na diplomacia brasileira.
Recentemente,
Mucio procurou o Tribunal de Contas da União (TCU) para verificar se havia barreiras na Constituição para a compra de armamentos vindos de países em guerra, como é o caso de Israel, e foi informado de que
não há restrições na lei que impeça a aquisição.
Em entrevista à Sputnik Brasil, Héctor Saint-Pierre, especialista em segurança internacional da Universidade Estadual Paulista (Unesp), destaca que "a compra de armamento de qualquer país ajuda a economia desse país".
"E nesse caso, fazer essa compra de Israel significa dinamizar a economia de Israel em um momento em que está em uma guerra colonial tanto contra palestinos em Gaza quanto contra o Hezbollah no Líbano. Sem contar que é um país que não respeitou nenhum dos 800 mandatos da ONU desde a sua criação, é um país suspeito de todos os pontos de vista", afirma.
Saint-Pierre enfatiza que quando se envolve a compra de armamentos, "nenhuma decisão estatal é meramente técnica". Ele afirma que, particularmente nas decisões governamentais, "quando se compra ou se vende qualquer tipo de instrumento, mais especificamente armamentos, se está tomando uma decisão política", e aponta que essa decisão estaria sendo tomada em um momento que o mundo vivencia um estremecimento das estruturas internacionais.
"Há um confronto com relação a modos de perceber o mundo: se dá neste momento uma resposta à hegemonia norte-americana, que se entendia planetária, e neste momento há uma situação na qual se corre o risco de uma Terceira Guerra Mundial. Isso não é pouca coisa. É uma possibilidade que está colocada inclusive nos argumentos norte-americanos."
Nesse contexto, ele afirma que qualquer decisão na área de Defesa neste momento e neste ambiente é uma questão que requer muita sensibilidade política, "coisa que não se resolve com uma ida ao TCU". Segundo o especialista, a consulta de Mucio ao TCU "é uma falácia".
"Independe disso [a compra dos obuseiros], é uma decisão política que não depende de uma análise jurídica. É óbvio que não se quer ter nenhuma contradição constitucional, mas não é apenas isso. Sempre uma decisão política tem consequências políticas."
Saint-Pierre também questiona qual o sentido da compra desse armamento neste momento pelo Exército Brasileiro.
"Quais são as ameaças contemporâneas ao Brasil que requerem a compra desse armamento israelense? Qual é a urgência? Com relação à modernização, a modernização não é uma coisa apenas instrumental, de compra de um instrumento; isso não moderniza", ressalta.
Ele afirma que a modernização da área de Defesa significa pensar a estrutura das Forças Armadas, a chamada "forma da força", que compreende não apenas a aquisição de armamentos, mas a estrutura hierárquica; a forma de recrutamento; e a definição de como o armamento chega ao país, se por desenvolvimento tecnológico autóctone ou por transferência de outros países — segundo ele, essa última não significa uma melhor tecnologia, mas simplesmente um instrumento tecnológico que em operações sempre vai depender daquele provedor.
"Como é o caso dos mísseis de médio e largo alcance que estão na Ucrânia, mas que para seu funcionamento eficiente dependem da localização do alvo e da condução desse míssil até atingir o alvo. E essas duas características não estão no operador; o operador não é ucraniano, é da OTAN. Isso significa os EUA, significa que o emprego desse armamento é uma implicação dos EUA e da OTAN na guerra por procuração contra a Rússia", explica.
Política externa e de defesa devem estar alinhadas
A política de defesa brasileira não pode ser pensada de maneira separada da política externa. É o que afirma Adriana Marques, professora do curso de defesa e gestão estratégica internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Observatório do Ministério da Defesa (OMD) e do Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa (LESD).
À Sputnik Brasil ela enfatiza que esse alinhamento deve ser "a primeira premissa que deve orientar a ação internacional de um país", e lembra que a política externa do governo Lula no mandato atual é de aproximação com o Sul Global, repensando uma nova configuração de poder mundial. Por conta disso, "é uma política que não pode ficar refém de interesses corporativos das Forças Armadas brasileiras".
"Obviamente que na compra de equipamentos militares os requisitos técnicos devem ser observados, mas não se faz uma licitação tendo só um país que pode oferecer aquele tipo de equipamento. É feita uma licitação com vários países que podem oferecer aquele tipo de equipamento justamente para permitir que o país escolha o equipamento que se adeque à sua política externa. E a compra desses blindados de Israel, neste momento, não atende aos objetivos da política externa brasileira", explica.
Ela acrescenta que os militares não podem querer ter autonomia "para escolher equipamentos militares sem levar em conta a dinâmica da nossa inserção internacional, da nossa política externa".
Marques afirma que existem vários outros países que podem oferecer esse tipo de equipamento às Forças Armadas brasileiras, e que o imbróglio atual é "uma oportunidade para a gente discutir melhor como são elaboradas essas aquisições de equipamentos militares no Brasil".
"Porque seria importante ter uma discussão mais ampla sobre isso. A aquisição de equipamentos militares tem que estar alinhada com a nossa política externa e deveria estar vinculada às diretrizes da nossa política de defesa. E as diretrizes da nossa política de defesa deveriam ser estabelecidas pelo poder político, não pelos militares brasileiros, que majoritariamente agora dominam a elaboração desses documentos, […] decidem os equipamentos militares que devem ser comprados e ainda criam um constrangimento para a política externa brasileira."
Marques avalia que há uma série de equívocos na elaboração da política de defesa no Brasil, e que uma das consequências disso é "o ministro da Defesa tendo que fazer um malabarismo para defender uma escolha que foi feita pelas Forças Armadas e que não está levando em conta o contexto político da nossa política externa".
"Os países, principalmente aqueles que podem pressionar os outros com a capacidade de adquirir ou não equipamentos militares, fazem isso o tempo todo. Os EUA têm uma gama enorme de sanções e de equipamentos que eles não compram ou que eles não vendem por questões políticas. Por quê? Porque a política de defesa deles está alinhada com a política externa. E assim também deveria ser no Brasil. É assim que acontece nos países democráticos, e as Forças Armadas brasileiras deveriam se adequar a esse procedimento", conclui.
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