'Eixo da Revolta': Norte Global cria termo para tentar isolar países não alinhados, notam analistas
18:19, 23 de outubro 2024
Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas apontam que o uso do termo expõe que na política internacional a comunicação é mais um front de guerra, mas que é pouco provável que a tática consiga impor pressão sobre o Sul Global e os membros do BRICS.
SputnikA aproximação entre Rússia, China, Irã e Coreia do Norte passou a ser designada pela mídia e por institutos de análises políticas ocidentais como "Axis of Upheaval" (Eixo da Revolta, em tradução livre).
Tais análises tentam apresentar os países citados como uma espécie de bloco pária da comunidade internacional. Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam o potencial do termo para influenciar países do Sul Global ou impactar na demanda por uma nova ordem mundial.
Héctor Saint-Pierre, especialista em segurança internacional da Universidade Estadual Paulista (Unesp), destaca que a comunicação é mais um teatro de operações da guerra contemporânea, por isso as palavras têm um sentido mais pragmático do que semântico, ou seja, importa mais o impacto que elas podem ter nas pessoas que o conteúdo em si.
Ele diz que é importante notar que o uso do termo vem em concomitância com a publicação do relatório da Comissão sobre a Estratégia de Defesa Nacional dos EUA, em julho, que basicamente
aponta a inevitabilidade de uma próxima guerra, uma Terceira Guerra Mundial, que seria justamente contra um eixo composto por China,
Coreia do Norte, Rússia e Irã.
"Então se procura juntar todos esses quatro países para criar um ambiente por linhas exteriores, quer dizer, a parte diplomática separar os outros países desse eixo, como se ele tivesse uma manifestação, como se fosse um eixo do mal contra o qual os países têm que tomar precauções e não se aproximar, de forma a ir definindo as alianças para a futura guerra", explica.
Pierre acrescenta que o relatório fala que essa guerra inevitável seria travada em múltiplos teatros, incluindo a Eurásia, o Oriente Médio e o Indo-Pacífico, e que neste momento os EUA não teriam condições de fazer frente a esse eixo, pois ainda precisam completar sua capacidade militar, reformular a força, a estrutura, o recrutamento e a formação dos seus militares, e modificar o desenho da produção industrial da Defesa, que hoje está atrasada.
"Então, para se preparar para 2026 [ano apontado como o da possível eclosão do conflito], [os EUA] também têm que modificar sua linha diplomática para operar por linhas exteriores. Nessa operação, que é ganhar a opinião do público internacional, está a ferramenta ou a arma principal, que são as palavras."
Ele afirma que um dos objetivos do termo é tentar impedir que países não alinhados a Washington se aproximem ou passem a compor esse eixo, evitando também uma posição de neutralidade.
"Evitar a neutralidade significa obrigar os países, por exemplo os países latino-americanos, a se alinharem automaticamente com os EUA. Por isso também há um combate contra o BRICS. Dentro do BRICS estão justamente esses países que fazem parte desse novo conceito bélico, menos Coreia do Norte."
Segundo Pierre, esses países,
não apenas do BRICS, mas aqueles não alinhados,
se apresentam não como um bloco anti-Ocidente, mas como algo diferente do Ocidente, uma alternativa diante de uma guerra que ele afirma estar sendo provocada.
"Porque estão se preparando para a guerra, e o preparo para a guerra não garante a paz, muito pelo contrário, normalmente provoca a guerra", afirma.
Ele aponta que atualmente há mais resistência à hegemonia dos EUA, por ser muito autoritária e defender um mundo regido por regras que são criadas pelos Estados Unidos e pelo Ocidente.
"Essas regras não são impessoais, tem alguém que dita as regras, e normalmente é quem venceu a guerra. Isso obviamente cria certos aspectos de ódio, de tensão. Veja, por exemplo, o
caso do [caça] Gripen, que
os EUA mandaram fazer uma análise minuciosa do contrato da Saab com o Brasil. Isso é
atentar contra a soberania nacional do Brasil. Isso não pode passar assim, em branco."
Pierre afirma que o cenário atual não pode ser comparado ao vivenciado durante a Guerra Fria, pois as relações entre Estados hoje são muito mais complexas que naquela época, quando havia a divisão do mundo em dois blocos bem definidos, liderados por dois países, EUA e União Soviética, com posições e economias totalmente distintas, sem nenhuma relação.
"Hoje a interdependência recíproca e complexa dos países impede a imagem de uma Guerra Fria. Hoje não há nenhuma tecnologia que seja puramente nacional, que corresponda a algum país. São tecnologias que dependem de relações complexas, de uma dependência complexa entre os países."
Entrentanto, o analista aponta que o mundo hoje está muito mais próximo de uma guerra mundial do que no período da Guerra Fria.
"Neste momento temos pontos de tensão, já com beligerância, no Oriente Médio. É uma situação de beligerância que é uma amostra de uma conflitividade maior, e quem está operando no Oriente Médio são os EUA, através de Israel."
Pierre enfatiza que atualmente é apresentada no cenário internacional uma imagem de que Israel não obedece aos EUA, mas diz discordar dessa versão.
"Como [Israel] não obedece aos EUA se está lutando com o armamento dos EUA, se os EUA estão comprometidos no Oriente Médio, talvez para ampliar o projeto de uma grande Israel, mas [também] para basicamente cercar o Irã e combater o Irã em separado?", questiona o analista.
Ele acrescenta que há ainda provocações à China com relação ao estreito de Taiwan, com Japão e Austrália firmando alianças sob o argumento de conter Pequim na região, e também o confronto travado entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a Rússia na Ucrânia.
"É uma guerra claramente por procuração [o conflito ucraniano], que está se fazendo com a carne de ucranianos, mas que por trás está todo o apoio da OTAN, a OTAN está completamente comprometida. Então a possibilidade de uma escalada para uma guerra mundial já está dada."
Termo pode impactar negativamente países do BRICS?
O fato de três dos quatro países enquadrados no chamado "Eixo da Revolta" serem membros do BRICS traz preocupação sobre a possibilidade de pressão ao grupo por parte do Ocidente.
Tainah Pereira, doutoranda em economia política internacional no Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destaca que o BRICS surge justamente como uma contestação às práticas das chamadas organizações Bretton Woods, sobretudo o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Para ela, os dois entes atuam também como reguladores de normas que estabelecem uma visão específica a respeito da cooperação internacional, fortalecendo a visão política ocidental e o modelo capitalista como sistema de produção, o que tem favorecido essas mesmas organizações do Norte Global.
"Então é natural que quando surgem movimentos de contestação a essa ordem, ao funcionamento dessas organizações, uma disputa por mais espaço dentro desse sistema, haja contraposição. […] A mídia nos EUA tem refletido uma preocupação grande dos cidadãos estadunidenses de forma geral com essa percepção, que hoje é global, de uma certa redução do poder de influência dos EUA nos rumos da política global, e daí surgem terminologias como essa do 'Eixo da Revolta'", explica.
Pereira afirma que o BRICS,
como plataforma de organização do Sul Global,
"sempre teve contestação".
"Sempre teve críticos e uma tentativa de enquadramento, sobretudo por analistas políticos dos EUA, da Europa, como algo pouco funcional ou algo que estava fadado ao fracasso por inúmeras razões, o que, enfim, é parte de um projeto político."
No entanto, ela afirma não considerar que o uso do termo imponha pressão ou influencie os países do grupo.
"Não é algo que vai influenciar a diplomacia de um país como o Brasil, por exemplo, no fortalecimento do BRICS. Porque o BRICS é um projeto muito caro para o Estado brasileiro, independentemente do governo. O Brasil, nos últimos dez anos, teve o seu engajamento muito reduzido na construção do BRICS como plataforma porque viveu muitas crises políticas internas. Mas já tem pelo menos três anos que a diplomacia brasileira voltou a se dedicar a debater coisas fundamentais, como a moeda digital do BRICS, o R5, e o sistema de pagamento. Então eu acho que essa pressão é uma pressão externa", afirma.
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