Em 3 de dezembro, o presidente sul-coreano, Yoon Suk-yeol, decretou lei marcial no país e autorizou o general quatro estrelas Park An-su a fechar a Assembleia Nacional, proibindo também todas as atividades políticas no país e a liberdade de imprensa.
A oposição, comandada pelo Partido Democrático da Coreia, não aceitou a medida e revogou o decreto presidencial, prerrogativa garantida pela Constituição do país. De maneira unânime, os 190 parlamentares que conseguiram entrar na Assembleia rejeitaram a imposição da lei marcial, acusando Yoon de tentar um autogolpe para se manter no poder.
Para falar mais sobre a situação política desencadeada no país a partir da manobra presidencial, o Mundioka, podcast da Sputnik Brasil apresentado pelos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho, recebeu Eunjae Kim, mestre e doutoranda do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP).
Yoon tentou um golpe de Estado?
Para decretar a lei marcial, Yoon Suk-yeol argumentou que a República da Coreia se encontrava em risco iminente, uma vez que a oposição, supostamente em conluio com o governo da República Popular Democrática da Coreia, impedia seu governo de apresentar legislações no parlamento.
"A lei marcial tem como objetivo erradicar as forças pró-norte-coreanas e proteger a ordem constitucional de liberdade", disse Yoon em discurso televisionado.
Anteriormente, a oposição havia recém aprovado um orçamento reduzido no comitê orçamentário e impedido a nomeação de um promotor e um auditor estatal. Essa dificuldade em aprovar suas medidas no Legislativo foi usada como desculpa por Yoon ao baixar a lei marcial, acusando a oposição de impedir o funcionamento regular do Estado.
No entanto, isso não é o que as investigações policiais estão revelando.
Kim explica ao podcast que desde setembro, dois meses antes do decreto, já corriam boatos de que o presidente tentaria impor a lei marcial, algo não visto no país nos últimos 45 anos. A sigla do governo, o conservador Partido do Poder Popular (PPP), entretanto, negava os rumores.
A situação política no país já vinha se deteriorando nos dois anos e meio do mandato de Yoon, explica a especialista. O presidente, ao iniciar seu governo, se deparou com um parlamento dominado por uma coalizão de seis partidos de oposição, liderados pelo Partido Democrático.
Superando uma situação adversa, em que a política do país é marcada pelo fantasma da Guerra Fria e as regiões tradicionalmente conservadoras elegem mais deputados, a esquerda coreana democrata conseguiu o feito inédito de eleger 175 deputados, contra 108 do partido situacionista.
"As propostas do presidente não eram aprovadas, e o presidente também vetava os projetos da oposição."
Nesse tempo de paralisia governamental, no entanto, o presidente Yoon utilizou do seu poder para influenciar a imprensa, a polícia, a procuradoria e o Poder Judiciário, abrindo investigações contra seus opositores enquanto acobertava seus próprios escândalos e de sua família, como o de sua esposa, Kim Keon-hee.
Ainda assim, através do depoimento de um articulador político chamado Myung Tae-kyun, os casos de corrupção presidencial começaram a ser revelados, levando a seu indiciamento no dia 2 de dezembro, um dia antes da tentativa de impor a lei marcial.
"Ele vazou mensagens que sugerem que o casal presidencial influenciou indevidamente as indicações de candidatos do PPP para as eleições suplementares de abril e para a eleição geral de abril do ano passado", afirmou Kim. "E, através de seu advogado, argumentou que se ficar preso vazaria mais segredos do casal presidencial."
"Então a hipótese é que o presidente declarou lei marcial para escapar da crise política que ele estava enfrentando."
Crise no país
Após ver sua tentativa de golpe ser frustrada pela oposição, que conseguiu entrar na Assembleia e rejeitar a lei marcial, Yoon se tornou alvo de um processo de impeachment pelos crimes de abuso de poder e insurreição.
Segundo a Constituição da República da Coreia, é necessário uma maioria qualificada de dois terços para que a moção seja aprovada. Ou seja, seria necessária a participação do governista PPP para a aprovação da destituição do presidente.
Na primeira votação, em 7 de dezembro, o PPP se recusou a formar quórum, boicotando o processo. Na segunda tentativa, em 14 de dezembro, o líder do Partido do Poder Popular, Han Dong-hoon, orientou seus correligionários a votarem "segundo sua consciência".
O impeachment foi aprovado por 204 votos a favor, sendo 12 de membros do PPP. Como consequência, Han Dong-hoon renunciou a seu cargo, o pedido de destituição de Yoon foi enviado à Corte Constitucional da Coreia e o primeiro-ministro, Han Duck-soo, foi nomeado presidente interino.
Outros membros do governo, como o ministro da Defesa, Kim Yong-hyun; o ministro do Interior, Lee Sang-min; o ministro da Justiça, Park Sung-jae; e o comissário da Agência Nacional de Polícia, Cho Ji-ho, foram destituídos ou renunciaram ao cargo.
As remoções vieram em meio a revelações de que as autoridades participaram do autogolpe, e de que o presidente teria instruído a polícia e o serviço de inteligência a impedir a entrada dos políticos na Assembleia, de modo a que não votassem a revogação da lei marcial.
"Foi divulgado que o presidente deu ordem direta aos militares para arrombar as portas da Assembleia Nacional com tiros e tirar os legisladores de lá", contou Kim.
"Então, com tudo isso, está claro o quanto essa situação poderia ter sido perigosa se tudo tivesse ocorrido conforme o planejado por ele e pelos militares."
Coreia do Sul: políticos caem como dominós
Para piorar o caos político do país, pela primeira vez na história o primeiro-ministro e presidente interino, Han Duck-soo, também foi destituído do cargo. Segundo a especialista, as investigações revelaram que ele convocou uma reunião do Conselho de Estado para deliberar a declaração de lei marcial, "embora soubesse que era inconstitucional e ilegal".
Além disso, o primeiro-ministro foi acusado de impedir o procedimento de impeachment ao se recusar a nomear juízes para a corte constitucional prosseguir com o julgamento de Yoon.
O caso, ao correr no tribunal coreano, passa por três fases: aceitação, deliberação e decisão. Com seis juízes-membros, o tribunal pode realizar a primeira e a última fase. Para a segunda, no entanto, é preciso um quórum de sete, de um total máximo de nove.
Três novos juristas foram nomeados pela Assembleia, mas apenas dois foram aceitos pelo novo presidente e primeiro-ministro interino, Choi Sang-mok, que servia antes como ministro da Economia e das Finanças. Dessa forma, o julgamento de Yoon pode prosseguir e um mandato de prisão foi emitido em seu nome no dia 31 de dezembro.
O pedido de prisão de Yoon inaugura também um novo marco no país, sendo o primeiro presidente em exercício a ter um mandato de prisão expedido.
A situação, no entanto, gerou uma nova crise política no país e Choi já parece estar com os dias no poder contados.
Em 3 de janeiro, as forças policiais tentaram executar o mandado, mas foram impedidos de entrar na residência pelo serviço de segurança presidencial e pelas forças militares.
Depois de cinco horas de impasse, as forças de segurança se retiraram e solicitaram a Choi que ordenassem o serviço de segurança presidencial executassem o mandato. No entanto, não houve resposta.
"O Partido Democrata já divulgou que planeja registrar uma queixa por abandono de poder se nenhuma ação for tomada", comentou Kim.
Yoon tentou gerar conflito com o norte
Meses antes de tentar impor a lei marcial acusando a oposição de tornar o país ingovernável, Yoon tentou primeiro criar um conflito com a República Popular Democrática da Coreia de modo a usá-la como justificativa para impor o estado de emergência.
De setembro do ano passado, assim que ministro da Defesa, Kim Yong-hyun, assumiu o cargo pouco antes da tentativa de lei marcial, a Unidade de Guerra Psicológica Militar enviou "centenas de balões de folhetos" de propaganda para a vizinha do norte, "de três a quatro vezes por semana".
"Anteriormente os folhetos anti-Coreia do Norte eram enviados por civis. A intervenção em nível estatal é bastante incomum."
"Então, houve várias provocações do lado do sul."
Outras ocasiões viram a infiltração de drones em Pyongyang para distribuir folhetos anti-norte e até mesmo a ordem do ministro da Defesa ao presidente do Estado-Maior para que disparassem um tiro de advertência contra o norte.
"Depois que o presidente do Estado-Maior Conjunto recusou a ordem, porque isso poderia levar a uma guerra local mesmo, prejudicando o próprio povo coreano, o ministro o excluiu do plano da lei marcial", afirmou Kim. "Ainda bem que a Coreia do Norte não respondeu ativamente a essas tentativas."
A revelação desses notícias, a conta-gotas uma vez que o Ministério da Defesa recusa muitas das solicitações de informação da Assembleia Nacional por preocupações com a segurança, chocou a população sul-coreana "em grande escala".
"Ele [Yoon] ter pensado 'tanto faz, se conseguir cobrir meus casos de corrupção, se eu conseguir trazer de volta o apoio da população com a guerra, tanto faz a população sul-coreana ser atacada. Me parece que essa foi a lógica dentro da cabeça dele."