A tensão atual entre a UE e Israel reflete o crescente descontentamento entre a liderança política de muitos Estados-membros em relação à escalada da ofensiva militar israelense em Gaza e à grave crise humanitária que ela gerou.
A votação no Conselho de Relações Exteriores da UE em 20 de maio, onde 17 países apoiaram a revisão do acordo de associação com Israel, marca uma virada nas relações bilaterais.
Essa medida busca pressionar Israel a cumprir o direito internacional e a respeitar os direitos humanos, conforme previsto no Artigo 2 do acordo de associação. Mas falta apoio unânime entre os Estados-membros, já que nove se opõem, incluindo a Alemanha, Itália, Lituânia e Hungria. Por si só, rescindir o acordo é inviável, mas suspendê-lo não é.
A fome em Gaza devido a Israel ter bloqueado a entrega de ajuda humanitária suficiente — a ONU alerta que até 14.000 bebês palestinos podem morrer de inanição — e o tiroteio em 21 de maio contra uma delegação diplomática internacional na Cisjordânia intensificaram as críticas. As divergências são evidentes dentro da UE, onde os países que reconheceram o Estado palestino no último ano defendem um tom mais duro com Tel Aviv.
A aparente mudança de rumo também ficou evidente durante a apresentação de credenciais aos embaixadores junto à UE em Bruxelas. A pedido do presidente do Conselho Europeu, António Costa, o embaixador palestino compareceu à cerimônia oficial em pé de igualdade com os demais diplomatas, apesar da relutância da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Até então, os embaixadores palestinos realizavam a apresentação de suas credenciais em um escritório separado, em um evento puramente administrativo e sem cerimônias.
O que motivou a mudança de atitude?
A verbalização da mudança foi apresentada com palavras de condenação e exigências de explicações por parte de líderes europeus sobre o intimidador tiroteio contra um grupo internacional de diplomatas na Cisjordânia. Questiona-se se essa foi a gota d'água para a UE, e não o massacre de palestinos.
Para o diplomata e ensaísta nicaraguense Augusto Zamora, tal mudança é, antes, produto da "pressão" exercida por diversos setores da sociedade e da opinião pública norte-americana sobre o governo Donald Trump, no sentido de que os EUA "devem cessar seu envolvimento no genocídio".
Em sua opinião, países que apoiaram Israel "abertamente", como a Alemanha e a França, "temem uma situação semelhante à da Ucrânia, pois ficam sozinhos com suas políticas militaristas enquanto o resto do mundo se retira", explicou à Sputnik.
"Isso não pode ser explicado sem analisar o crescente isolamento atlantista no mundo", afirma Zamora. "A UE está completamente sozinha, e uma das principais razões para tudo isso é a cumplicidade da Europa na barbárie em Gaza e sua insistência em manter uma guerra absurda na Ucrânia."
O Reino Unido também fez uma mudança significativa em sua postura. Além da decisão de suspender as negociações comerciais com Israel e impor sanções contra colonos violentos na Cisjordânia, também propõe a possibilidade de reconhecer um Estado palestino. Dado o alinhamento tradicional do Reino Unido com os EUA e Israel, essa mudança é surpreendente. Londres pode estar interessada em recuperar influência no Oriente Médio e melhorar sua imagem no mundo árabe, mas a pressão interna e o impacto midiático da crise humanitária em Gaza também desempenham um papel.
"O Reino Unido dança muito ao som dos EUA", resume Zamora, observando uma erosão do apoio a Israel entre a população e entre as camadas intelectuais e de liderança, que temem ser deixadas sozinhas em sua política de apoio ao Estado hebraico. "Já há quem ouse escrever que Israel é um Estado fraco que desaparecerá sem o apoio dos EUA", acrescenta.
Zamora indica que a novidade sobre a "mudança sutil" que está ocorrendo nos EUA é que ela agora está se infiltrando. "O vice-presidente [J. D.] Vance disse que a era da hegemonia norte-americana acabou. Eles estão em um caminho diferente, muito distantes de [Joe] Biden e de outros grupos que hoje chamam de globalistas, mas que eram os mesmos setores imperialistas de sempre", acrescentou.
Acordo precisa ser avaliado
Em fevereiro de 2024, Espanha e Irlanda solicitaram à Comissão Europeia que apresentasse um "relatório urgente" do cumprimento por Israel das obrigações estabelecidas no acordo. Agora, uma maioria simples de Estados-membros propõe avançar com este processo, após aceitarem, alguns dias antes, uma proposta mais branda dos Países Baixos durante uma reunião de ministros das Relações Exteriores da UE.
De qualquer forma, Espanha e Irlanda parecem estar a liderar a aparente mudança de posição de Bruxelas. Durante a reunião da Comunidade Política Europeia em Tirana, o presidente espanhol Pedro Sánchez e o seu colega islandês, Kristrún Frostdottir, convocaram uma reunião separada com os seus homólogos da Irlanda, Eslovénia, Luxemburgo, Malta e Noruega para discutir a crise de Gaza.
Durante a reunião, assinaram uma declaração conjunta em apoio a uma resolução perante a Assembleia Geral da ONU (AGNU) para desbloquear a chegada de ajuda humanitária à Faixa de Gaza.
Neste domingo (25), o Grupo de Madri vai se reunir na capital espanhola. O grupo engloba países da UE como Espanha, Irlanda, Noruega e Eslovênia, além de vários países do Oriente Médio, incluindo a própria Palestina, e a Turquia. O objetivo é promover o diálogo para "pôr fim à catástrofe humanitária".
"A posição política da Irlanda é mais dura do que a da Espanha, que, discretamente, vinha executando contratos militares com Israel, uma completa hipocrisia", lembra Zamora, que classifica a nação celta como quase o "único país" da UE coerente com suas políticas.
Em sua opinião, a reunião do Grupo de Madri é motivada pela necessidade de fazer "planos para o futuro" à luz das evidências de crimes contra a humanidade e genocídio em Gaza, os quais é "impossível ignorar".
Palestina como justificativa
O conflito na Ucrânia adiciona uma camada de complexidade a esses movimentos. Como o presidente francês Emmanuel Macron apontou durante a reunião em Tirana, a UE busca evitar acusações de "dois pesos e duas medidas". Por um lado, impõe sanções severas contra a Rússia e corta relações comerciais com o país, enquanto, por outro, as mantém com Israel, apesar das violações de direitos humanos.
Essa preocupação com a coerência da política externa da UE busca melhorar a credibilidade da UE no Hemisfério Sul, mas também levanta questões sobre se a mudança é ética ou meramente interesseira.
A hipocrisia é um argumento recorrente neste debate. Os países europeus que condenam Israel também mantêm fortes laços comerciais e de segurança com o país. Isso leva à ausência de ações concretas além da retórica limitada por cálculos políticos.
E esse cálculo político implica um preço para o Ocidente coletivo que "de uma forma ou de outra acabará pagando no futuro imediato", acrescenta Zamora, que também explica a mudança ocidental em relação ao fortalecimento de novas alianças, seja entre Rússia, China, Irã e Coreia do Norte, seja no âmbito do BRICS+ ou da Organização de Cooperação de Xangai.
"Dado o crescente e cada vez mais agudo isolamento do atlantismo, há um fortalecimento crescente das alternativas promovidas pela Rússia e pela China", afirma.
UE continua armando Israel
A UE não considera um embargo de armas real ou um compromisso genuíno com a justiça internacional. A Alemanha fornece 33% das armas importadas por Israel, segundo dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI).
A Espanha realizou 88 remessas de equipamento militar desde o outono de 2023, além da cobertura fornecida por seus portos a navios carregados com armas com destino a Israel, segundo cálculos do Centro Mariano Delàs de Estudos para a Paz, em Barcelona.
No dia 20 de maio, diante de evidentes padrões duplos, o governo espanhol votou a favor do debate no Parlamento sobre uma reforma da Lei de Controle do Comércio Exterior de Armas que permitiria a introdução automática de um embargo abrangente de armas a países investigados por crimes de guerra, crimes contra a humanidade ou genocídio, como é o caso de Israel.
A votação seguiu o espírito de um projeto de lei nascido da pressão de mais de 600 organizações da sociedade civil, coordenadas pela Rede de Solidariedade Contra a Ocupação da Palestina (RESCOP).
Os casos em que remessas de armas destinadas a Israel não conseguiram prosseguir nos portos espanhóis se devem precisamente às queixas de ativistas da RESCOP. No dia 21 de maio, eles detectaram um navio, o Danica Violet, vindo de Israel e atracando no porto de Cartagena para descarregamento. Um de seus contêineres transportava carga IMO 1.4, categoria correspondente a materiais explosivos.
O governo interrompeu o desembarque, mas os ativistas da RESCOP lamentam que as autoridades só atuem quando detectam esse tipo de trânsito.
"Exigimos que o governo decrete imediatamente um embargo abrangente de armas a Israel por meio de um decreto-lei real. Passar das palavras à ação é a única opção. O governo poderia decretar um embargo de armas a Israel amanhã. Por que não o faz? O que o impede?", lamenta a organização em seu comunicado.