Um exemplo citado em entrevista ao Mundioka, podcast da Sputnik Brasil, foi a Doutrina Monroe, anunciada pelo presidente norte-americano James Monroe em 1823. A medida unilateral colocava os EUA no patamar de um "quase protetor das Américas".
Sob a ótica do século XIX, na teoria, o programa de cunho protecionista poderia até parecer benéfico aos vizinhos latinos.
Entretanto, a ideia de não permitir a influência dos outros continha "principalmente a sua oposição ao que a gente poderia chamar de sistemas políticos que os Estados Unidos veem como opostos ao que eles defendem", acrescenta a pesquisadora.
Apesar de uma retórica voltada à cooperação, "a América Latina é vista como essa área de influência dos Estados Unidos".
Embora os artifícios ou
instrumentos para intervir em algum âmbito nos países da América Latina tenham mudado, há pelo menos 200 anos de uma política vigente que enxerga a região como quintal norte-americano.
A metáfora, inclusive, foi usada recentemente pelo secretário de Defesa dos EUA,
Pete Hegseth. Na ocasião, o chefe do Pentágono
criticou a influência da China no canal do Panamá e se referiu à América Latina como quintal de Washington.
Milani ressalta que os Estados Unidos atuam para a "
preservação e a manutenção do neoliberalismo, de uma política econômica pautada na ideia de livre comércio, diminuição do papel do Estado na economia" na América Latina, pressionando
países da região a adotarem essa corrente.
Por outro lado, historicamente, as pressões norte-americanas nunca se deram sozinhas. Pelo contrário, a atuação acontece com o apoio das classes dominantes dos países latino-americanos.
Ou seja, em vários setores da sociedade, é possível apontar uma elite que contribuiu para a presença firme dos EUA na região.
Nos anos 1960 e 1970, durante o período de regimes militares na América do Sul, quando há certo consenso de que houve influência de viabilidade oferecida pelo governo norte-americano, "não dá para também colocar como signo secundário a questão interna. Pelo contrário, os militares nesses países eram uma classe, um grupo político bastante ativo", relembra João Estevam Filho, professor de relações internacionais da Universidade Anhembi Morumbi, compreendendo os países do Cone Sul e, também, do Peru e da Bolívia.
"É importante também pontuar que os Estados Unidos apoiaram, durante a segunda metade do século XX, políticas de contrainsurgência. Isso significa dizer que as violações de direitos humanos que aconteceram naquele período também foram apoiadas pelos EUA e aconteceram no contexto no qual os Estados Unidos
treinavam os militares latino-americanos, por exemplo, em ações de contrainsurgência, ou seja, de combate ao comunismo", completa Milani.
Para pensar no atual momento, os principais elementos de intervenção usados pelos Estados Unidos são de cunho econômico. O presidente Donald Trump tem lançado mão de uma série de tarifas e, talvez, o caso mais claro que denote a tentativa de interferência política se refira ao Brasil.
Recentemente, o chefe do Executivo estadunidense enviou uma carta ao governo brasileiro
impondo uma tarifa de 50% aos produtos exportados do Brasil. O argumento usado no primeiro parágrafo do comunicado falava sobre o processo judicial do qual o ex-presidente Jair Bolsonaro faz parte e ao qual o governo dos EUA se opõe.
Além disso, os norte-americanos boicotaram iniciativas de cooperação que surgiram "em um momento que se convencionou chamar de onda rosa na
América Latina", quando países com governos progressistas buscaram criar grupos de cooperação entre eles — caso da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC).
"Havia, nos Estados Unidos, uma tentativa de
pressionar e dificultar esses processos de cooperação", diz Milani. Para coibir o avanço das iniciativas, eles aumentaram as relações bilaterais com certos países, com o intuito de afastá-los dos blocos, explica a analista.
Outro método bastante difundido nos últimos anos foi o lawfare. Este seria, segundo Estevam Filho, "uma renovação de mecanismos que já são utilizados desde o século passado".
Enquanto os EUA veem um espaço que sempre foi sua zona de influência ter relações cada vez mais
diretas com a China — potência que os estadunidenses tentam impedir de ampliar participação no território latino-americano —, não conseguem oferecer as mesmas condições de desenvolvimento que os chineses ofertam, ou seja, não conseguem criar oportunidades de financiamento tão interessantes assim para a América Latina.