Panorama internacional

É roubo que fala? Confisco de ativos russos vai 'aprofundar crise civilizacional no Velho Continente'

O confisco de ativos russos cogitado por países do Ocidente para financiar a reconstrução da Ucrânia implicaria na abertura de um precedente perigoso, que pode minar a confiança de investidores estatais e privados no sistema financeiro da União Europeia, afirmam analistas convidados ao Mundioka desta quarta-feira (10).
Sputnik
O podcast da Sputnik Brasil ouviu Leonardo Nascimento, doutorando em relações internacionais pela PUC-MG, membro do Observatório das Relações Rússia-América Latina (Ruslat) e do Centro de Integração e Cooperação Rússia-América Latina (CICRAL), e Valdir Bezerra, mestre em relações internacionais pela Universidade Estatal de São Petersburgo, na Rússia.
Eles foram categóricos ao afirmar que a medida seria contraproducente principalmente para o próprio Ocidente.
Para Bezerra, a medida ilegal abre "um precedente muito perigoso para os demais atores do sistema internacional" e atinge em cheio a legitimidade das instituições financeiras perante a maioria global.
Ele sublinhou que o uso desse dinheiro aprofundará ainda mais uma "crise civilizacional no Velho Continente", frente a uma insustentabilidade do Estado de bem-estar social em favor de uma corrida armamentista.

"Nesse cenário, você ter uma perda da segurança de investidores no mercado europeu vai trazer impactos significativos, principalmente quando a Comissão Europeia e os Estados europeus vêm anunciando o aumento de gastos em defesa e uma intenção cada vez maior do envio de recursos financeiros para a Ucrânia".

Ambos ressaltaram que o congelamento dos bens da Rússia já serviram de alerta para outras nações:

"Isso mandou um sinal claro para outros países de que se tal situação poderia acontecer com uma grande potência que é a Rússia, quanto mais com outros países menores que também são alvos ou são vítimas de algumas políticas retaliatórias do Ocidente", disse bezerra.

Acirramento da desdolarização

Os dois analistas concordaram que a diminuição do uso do dólar tornou-se uma pauta frequente no cenário geopolítico mundial após o aumento das sanções unilaterais por parte do Ocidente.

"Você não pode confiar em instituições que sofrem influência política muito forte, por exemplo, do G7”, explicou Bezerra. "Depois do início dessa crise, que se exacerbou a partir de 2022, [houve] tanto a expansão do BRICS como a expansão das discussões da desdolarização".

O dólar, que já representou cerca de 70% da reserva de valor global mantida pelos países, atualmente responde por metade desse valor, destacou Bezerra, e vem perdendo espaço dentro do cenário internacional desde a virada do século. Entretanto, o congelamento dos bens russos gerou uma desconfiança sem precedentes em relação às moedas ocidentais.
Para Nascimento, se a União Europeia optar pelo confisco dos ativos, ficará evidente que o direito internacional não dá conta de proteger os investimentos públicos e privados no exterior, que são feitos em sua maioria em dólares:

"A desdolarização implica na busca por alternativas financeiras para você arcar com seus compromissos comerciais e financeiros a nível internacional."

Nessa disputa por confiança, novas alternativas e arquiteturas financeiras têm sido gestadas pelo mundo, como o novo Banco de Desenvolvimento do BRICS que leva muito em conta as especificidades dos países que fazem empréstimos para realizar projetos de infraestrutura, saneamento básico e energia verde.
"O BRICS vem abrindo uma oportunidade muito interessante [...] se o BRICS Pay avançar, o mundo pode caminhar para a construção de uma alternativa ao SWIFT no sentido de uma arquitetura financeira global", comentou Nascimento.
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Plano de paz com dinheiro alheio

Os ativos financeiros congelados que a Rússia obteve e acumulou ao longo dos últimos anos agora foi mencionado no plano de paz elaborado pela administração Trump e alterado por nações europeias, para ser utilizado para uma futura reconstrução física da Ucrânia.
Um dos pontos da proposta ainda diz que 50% dos lucros desse empreendimento - entre € 135 bilhões e € 210 bilhões (R$ 861,7 bilhões a R$ 1,34 trilhão) - deveriam ir para os Estados Unidos, que foram responsáveis por mais de 50% da ajuda militar e financeira para a Ucrânia, segundo Bezerra.

"Algumas empresas, como a BlackRock, têm adquirido ativos na Ucrânia, ativos energéticos e ativos também territoriais, como uma forma de pagamento por parte da Ucrânia dos favores financeiros que foram providos pelos Estados Unidos ao longo dos últimos anos".

Os entrevistados foram taxativos ao considerarem improvável que a Rússia aceite o uso de seus ativos para esse fim por uma questão de soberania:
"Significaria uma perda da soberania sobre os seus próprios ativos, porque quem decidiria o destino do volume financeiro congelado seriam os Estados Unidos e não a Rússia", disse Nascimento.

Nova realidade exige mudanças de mentalidade

Nascimento mencionou ainda que os ativos russos estão sob a tutela, principalmente, da entidade Euroclear, na Bélgica, que oferece serviços de infraestrutura para o mercado financeiro.
Logo, um possível confisco pode obrigar a Bélgica a lidar com o ressarcimento futuramente. Nesse contexto, uma crise institucional no bloco é previsível, principalmente, se houver a entrada de governos mais abertos ao diálogo com a Rússia.
Nesse sentido, Bezerra salientou que a "União Europeia não é um monolito" e que há esperanças de mudança na interpretação dominante dentro do bloco europeu sobre a Rússia:

"A gente tem a Eslováquia, a Hungria, de certo modo também a gente tem a Áustria. A Itália talvez, né? Itália em alguns momentos também não se manifesta a favor dessas políticas que são empregadas e que são forçadas de cima para baixo, por exemplo, por Bruxelas um coro de países ali compostos, por exemplo, por França, por Alemanha e por Reino Unido".

Nascimento considerou ser fundamental que as elites europeias desconstruam a retórica anti-Rússia, a fim de criar um ambiente mais produtivo e salutar para o mundo:
"Você tem uma sensação de perigo iminente que te força pela busca de segurança. E aí a gente cai no dilema da segurança, onde a sua segurança só pode ser garantida pela falta de segurança do outro, que é ao contrário do que a Rússia vem defendendo quando eles dizem sobre a construção de uma arquitetura de segurança indivisível para a Europa", defendeu.

Dependência energética

Prova das mudanças de um mundo cada vez mais multipolar, segundo os convidados do podcast, é o fato de a Europa sofrer até hoje com as perdas oriundas da interrupção de negócios com a Rússia, enquanto Moscou deu a volta por cima em uma virada para o leste, com destaque para China e Índia:
"Tem o anúncio do gasoduto Poder da Sibéria 2 [Power of Siberia], com capacidade de 50 bilhões de metros cúbicos de gás por ano para a China”, disse Bezerra. "A Rússia se tornou o principal exportador de petróleo para a Índia, era uma situação que antes de 2022 não tinha acontecido".
Já a Europa passou a comprar gás natural liquefeito via oceânica dos Estados Unidos e Catar, que é mais caro, esclareceu Bezerra.
"Ele vem na forma liquefeita, quando chega no continente precisa ser gaseificado de novo para ser entregue a indústrias e também aos civis, às casas, então é um processo mais caro".
Para existir uma política de ganha-ganha, defendeu Nascimento, é vital a construção de segurança coletiva e não excludente:

"Os países europeus ainda não entenderam um processo histórico de mudança da ordem global que a gente está vivendo [...] Em um mundo multipolar, qual é o papel da União Europeia nesse mundo? A Europa precisa entender a nova realidade, não só do conflito, mas global", prosseguiu o analista. "Isso envolve uma mudança significativa de práticas coloniais até hoje", completou ele.

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