Lavrov: Rússia pode apoiar programas nucleares em outros países além do Irã

© Sputnik / Grigoriy Sisoev / Acessar o banco de imagensMinistro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, em entrevista exclusiva ao diretor-geral da agência noticiosa “Rossiya Segodnya”, Dmitry Kiselev
Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, em entrevista exclusiva ao diretor-geral da agência noticiosa “Rossiya Segodnya”, Dmitry Kiselev - Sputnik Brasil
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O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, concedeu uma entrevista exclusiva ao diretor-geral da agência noticiosa “Rossiya Segodnya”, Dmitry Kiselev. A seguir, trecho da entrevista dedicado à questão do recente acordo sobre o programa nuclear iraniano.

Dmitry Kiselev: Um acordo sobre o Irã foi finalmente alcançado e parece que os europeus estão felizes e até gratos à Rússia pela nossa participação positiva. Mas agora, estão dizendo na própria Rússia que tudo vai mal, que o Irã começará a vender gás, que demos um tiro no próprio pé, que não entendemos nada do que está acontecendo e que o país entrará em declínio por conta desses acordos com o Irã. Até que ponto isso é verdade?

Sergei Lavrov: Percebe-se uma lógica estranha, de que para atender aos interesses do desenvolvimento econômico a Rússia precisa manter seus concorrentes sob sanções, ou então que eles sejam bombardeados por alguém, como os EUA queriam fazer com o Irã. Essa, provavelmente, é a posição das pessoas descrentes de que o país pode sair da dependência de petróleo e gás. Tal objetivo, no entanto, foi definido pelo próprio presidente; o governo recebeu todas as instruções necessárias; a tarefa jamais foi cancelada e continua sendo uma prioridade.

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No que diz respeito especificamente à situação do mercado de petróleo e gás, primeiramente, o gás e o petróleo do Irã nunca saíram o mercado. Vale lembrar que não existem quaisquer sanções internacionais contra essas commodities iranianas a exemplo das que foram aprovadas pelo Conselho de Segurança. O petróleo e o gás iranianos são objetos de sanções unilaterais ilegais, introduzidas pelos Estados Unidos, União Europeia e alguns de seus aliados, como a Austrália. Mas houve ressalvas mesmo em relação a essas sanções proibindo o petróleo iraniano, e os próprios chineses, os indianos, os japoneses (se eu não me engano) e uma série de outros países fizeram acordos com os EUA para continuar comprando do Irã certos volumes de petróleo correspondentes a remessas anteriores. Esses volumes, no entanto, não serão aumentados. Ou seja, o petróleo iraniano jamais saiu de cena e a possibilidade de um brusco aumento da sua presença nos mercados mundiais, segundo avaliam especialistas, corresponde a volumes insignificantes. E isso pelo menos em uma perspectiva muito, muito previsível. Quanto ao gás iraniano, esse jamais sofreu quaisquer restrições muito significativas. Faz muitos anos que ele é enviado para a Turquia e a cada inverno, segundo relatam nossos especialistas, acontecem falhas no fornecimento e os turcos são obrigados solicitar compensações pelos volumes não recebidos. Portanto, aqueles que na atual etapa abordam de maneira mercantilista as decisões alcançadas sobre o Irã, na minha opinião subestimam a real situação dos mercados de hidrocarbonetos e, principalmente, não conseguem superar a abordagem utilitarista de que a Rússia será prejudicada com o levantamento das sanções contra o Irã. Pelo contrário, nos últimos anos a Rússia e o Irã, já que falamos em interesses puramente econômicos, criaram uma base muito sólida para cooperações. No ano passado foi assinado um amplo pacote de documentos definindo condições bastante rentáveis e de longo prazo para as nossas cooperações nas áreas de uso pacífico de energia nuclear e construção de uma grande quantidade de unidades nucleares no Irã, tanto na usina de Bushehr quanto em uma nova usina. E os benefícios disso serão certamente mútuos. Irã receberá volumes garantidos de eletricidade, independentes das suas reservas de petróleo e gás, evitando o desperdício de suas riquezas naturais.
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A Rússia, por sua vez, obteve contratos muito lucrativos através da Rosatom [empresa estatal russa de energia nuclear]. Além disso, é certo que o levantamento das sanções econômicas e financeiras contra o Irã possibilitará que esse país quite por completo suas dívidas com a Rosatom, significando que os cofres russos receberão pagamentos bilionários. Nós temos muito em comum com o Irã, um país com quem partilhamos muitos interesses em âmbitos como relações bilaterais, Mar Cáspio, luta contra o terrorismo, além do esforço de evitar um racha entre sunitas e xiitas no mundo islâmico. Portanto, não se deve ter uma visão estreita sobre os acontecimentos e não precisa se preocupar com o fato de o nosso vizinho de longa data, um país amigável a nós, sair do jugo tanto das sanções do Conselho de Segurança, quanto das sanções unilaterais dos Estados Unidos e da União Europeia.

Dmitry Kiselev: Estive no Irã em janeiro, e ali meus colegas contavam muito com o levantamento das sanções. Mas, ao mesmo tempo, eles não acreditavam que isso realmente fosse acontecer. Vocês acordaram que o desenvolvimento da energia nuclear iraniana será realizado mediante o controle da Agência Internacional da Energia Atômica (AIEA). A declaração possui itens facilmente verificáveis, mas inclui também itens relativos ao tipo de componentes nucleares, itens que podem ser interpretados de forma bastante arbitrária. Até que ponto as negociações sobre o Irã encontram-se em sua fase final? Será que não teremos delongas com a assinatura do acordo até o dia 30 de junho?

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Sergei Lavrov: É muito importante traçar as diferenças entre aquilo que nós – a Rússia – acordamos com o Irã sobre o uso pacífico da energia nuclear e aquilo que foi acordado com os outros. Nem a primeira unidade nuclear da usina de Bushehr, nem nenhuma das unidades que serão construídas ali, nem a usina de energia nuclear que será construída em outra plataforma no Irã e que já encontra toda a sua documentação assinada, nada disso está de maneira alguma sujeito às restrições impostas pelo Conselho de Segurança. Da mesma forma os nossos planos e as obras já em curso estão isentas de quaisquer restrições unilaterais dos EUA e da União Europeia. Ao longo de todo o trabalho de negociações a nossa cooperação bilateral com o Irã sobre o uso pacífico da energia nuclear foi levada com êxito para fora dos limites de quaisquer represálias, tanto legitimas internacionais, quanto ilegais unilaterais. Em qualquer caso o controle da AIEA pressupõe a construção de usinas nucleares. Isso é válido tanto para o Irã, quanto para aquilo que fazemos na Turquia, nos países europeus, e o que faremos no Vietnã. Existem normas da AIEA que são utilizadas na construção de instalações de energia nuclear. Mas essas instalações não estão sujeitas a quaisquer sanções. Quanto à discussão das restrições aplicadas à atividade do próprio Irã, sem a nossa participação, os nossos parceiros ocidentais queriam justamente torna-la mais transparente, e nós temos a certeza de que isso deveria ter sido feito, já que existiam suspeitas bastante sérias, que precisavam ser esclarecidas e para se assegurar do caráter exclusivamente pacífico do programa nuclear iraniano. Mas isso, vou repetir mais uma vez, dizia respeito a aquilo que o Irã fazia por conta própria. Existiam alguns pontos em que eles realizavam o enriquecimento do urânio, construíam um reator de água pesada, capaz de produzir plutônio para armamento. Isso tudo, certamente, causou preocupações. O acordo alcançado pressupõe a limitação do número de centrífugas; o enriquecimento será realizado somente em uma instalação. A outra instalação, em Fordo, também manterá uma certa quantidade de centrífugas, mas será utilizada somente para fins científicos, produção de isótopos médicos e assim por diante. Não haverá enriquecimento no sentido industrial dessa palavras. Bem, e a terceira instalação – um reator de água pesada – será reconfigurado de forma a não ser capaz de produzir plutônio para armamentos e não representar quaisquer ameaças do ponto de vista da proliferação de tecnologias nucleares.Paralelamente, os iranianos concordaram com a aplicação de todo o leque de medidas de verificação por parte da AIEA aos seus programas – isso representa um protocolo e documentação extras, pressupondo acesso a todas as instalações e uma cooperação com total transparência. Esse, aliás, é o motivo da retirada de todas as sanções do Irã.

Dmitry Kiselev: Dizem que o acordo desencadeará uma corrida armamentista no Oriente Médio, já que outros países poderão solicitar para si as mesmas garantias, recebendo o direito de desenvolver a energia nuclear e usando-o como disfarce para promover outros projetos…

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Sergei Lavrov: Não existem quaisquer motivos para o armamento. O acordo alcançado, que ainda deverá ser editado e assinado, é uma questão nada simples e nada resolvida, já que todos sabem como está sendo avaliado esse provisório e político acordo quadro em diversos círculos, incluindo o Congresso norte-americano, Israel, Arábia Saudita. Portanto, ainda temos precisamos conseguir para que esses princípios sejam traduzidos para uma linguagem de acordos muito concretos. Mas, de qualquer forma, aquilo que foi aprovado e que, espero eu, será transformado em um documento de caráter jurídico a ser aceito pelo Conselho de Segurança da ONU, não dá qualquer motivo para falarmos na possibilidade de uma corrida armamentista. Pelo contrário, esse acordo impossibilita a procura de brechas para inauguração de uma dimensão militar no programa nuclear iraniano. Os iranianos assumiram responsabilidades políticas, sociais e até religiosas (através de seu líder supremo) para que isso não ocorra. Eu ouvi dizer que a Arábia Saudita anunciou que isso provocará uma reação de cadeia no sentido de que outros países da região também irão querer para si as mesmas condições de desenvolvimento da energia nuclear. Não vejo nada de impossível nisso. Se esse interesse para um legítimo e juridicamente legal desenvolvimento da energia nuclear existe, tenho a certeza de que a Rússia irá apoiá-lo. Nós, normalmente, firmamos acordos com nossos parceiros de uso pacífico na energia nuclear, segundo os quais a Rússia constrói usinas, prepara funcionários, disponibiliza combustível e recolhe para reciclagem o combustível utilizado. O Irã recebeu o direito de enriquecer urânio. Mas isso não pode tratado como um evento extraordinário, já que o enriquecimento de urânio para fins de produção de combustível utilizado em usinas de energia nuclear não é proibida em lugar algum por ninguém. O acordo pela não proliferação de armas nucleares não proíbe isso. Sim, as tecnologias de enriquecimento permitem acumular experiência e potencial para alcanças porcentagens mais altas, até mesmo o urânio para armamentos. Mas é justamente por isso que existe a AIEA, que existem processos de negociações, para resolver todas essas questões. É certamente mais fácil que um país que deseja desenvolver sua energia nuclear o faça através da compra de combustível no exterior. Mas se o país deseja enriquecer urânio por conta próprio, a experiência do Irã mostra que isso é possível. Nesse caso, certas garantias precisarão ser acordadas.

Dmitry Kiselev: Discutimos a possibilidade de outros países pedirem para si as mesmas condições concedidas ao Irã. Mas, olhando pelo outro lado, poderia a comunidade internacional solicitar para que estas mesmas condições, a mesma transparência, os mesmo recursos de controle fossem aplicados a outros países, como, por exemplo, Israel? Poderia esse acordo servir para a criação de uma zona livre de armas nucleares na região?

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Sergei Lavrov: Nós sempre dissemos e iremos frisar durante a última etapa das negociações que aquelas medidas super invasivas, previstas para o programa iraniano, não irão se transformar num precedente. Isso porque o Irã é, afinal de contas, um caso especial. Durante muitos anos o governo iraniano escondeu da AIEA a existência de seu programa nuclear. À primeira vista, quando finalmente começou-se a verifica-lo, pareceu tratar-se de programa meramente de enriquecimento, para fins de combustível. Mas então, por que esse programa vinha sendo omitido, enquanto deveria ter sido reportando à AIEA? Além disso, surgiram suspeitas de que, apesar de tudo, o mesmo incluía componentes militares. Essa desconfiança foi se acumulando e agora, para dissipá-la, está acontecendo esse processo entre o sexteto e o Irã, bem como entre a AIEA e o Irã, com base em fatos documentados totalmente concretos, que levantam suspeitas. Portanto, obviamente, essa intromissão é extrema, acordada com o Irã, mas que, vou repetir, ainda não é 100% e esta sujeita a um detalhamento que deverá ser alcançado. Essa intromissão é explicada justamente por erros passados. Mas eu não vejo necessidade em agir da mesma maneira se um país começar o diálogo com ficha limpa de suspeitas. Então, a princípio, o Irã não deverá gerar nenhum precedente negativo para o regime de não proliferação, já que, como já disse, a sua situação é especial.

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