Sputnik: Cuba e União Europeia tiveram um período estremecido, e o que afastava de Cuba o bloco europeu era a questão dos direitos humanos. Agora retomam o diálogo. Como o senhor analisa esta evolução?
Nildo Ouriques: Uma advertência inicial: aqui no Brasil a ignorância sobre o processo cubano, sobre a Revolução Cubana e em particular sobre a vida cubana – economia, sociedade, cultura, etc. – é sempre muito grande. De tal maneira que as pessoas, em geral, têm a impressão, alguns de maneira mais convicta ainda, de que nada está acontecendo em Cuba. Como em todos os países, todos os dias acontece um conjunto de ações do Estado, da sociedade, das classes, dos vizinhos, dos acordos que movem a economia cubana. E neste caso nós estamos diante de mais uma dessas medidas que caracterizam esta longa trajetória cubana, que, sem dúvida alguma, ao contrário do que supõe o senso comum, é um dos países que mais têm capacidade de adaptação. Há conjuntura diferente e contexto internacional diferente. Esta é a primeira questão. Segundo: A Comunidade Econômica Europeia [hoje União Europeia], lá nos distantes 2003, 2004, assumiu uma posição francamente de intervencionismo em Cuba com o tradicional recurso à violação dos direitos humanos, como se a União Europeia tivesse prerrogativas especiais para se transformar num tribunal internacional e, mais ainda, autoridade moral para falar sobre violação de direitos humanos, que naturalmente ela não possui. Mas, de qualquer forma, desde então nunca deixaram de existir negociações entre o Estado cubano e a Comunidade Econômica Europeia [e, depois, com a União Europeia]. E esta que está se realizando agora, entre Havana e a UE, em Bruxelas, na verdade começou em janeiro de 2014, considerando que nunca deixaram de existir contatos. A partir de janeiro de 2014, Cuba começou uma longa e complexa negociação com a Europa, que já implicou em campos de colaboração importantes, no terreno da ciência e tecnologia, no terreno do conhecimento, do intercâmbio cultural, e que agora se projeta estender para todas as áreas da vida política e da vida estatal. Esta questão é muito importante porque, ao contrário do que pensa também o senso comum no Brasil, que só é possível vida política após autorização de Washington, então é Washington, com Barack Obama, que tem que retomar uma negociação com Cuba, porque Cuba está completamente inserida novamente no contexto latino-americano, na Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos e, portanto, fora da OEA. Quer dizer, integrou-se aos países da América Latina não no contexto da Organização dos Estados Americanos, que é um braço que Che Guevara chamava de "departamento de colônias dos EUA”, e por outro lado teve uma grande ofensiva com a Europa, sem falar na relação que mantém com países como o Irã, a China, etc. De tal maneira que a iniciativa que foi saudada aqui como uma grande cartada de Barack Obama, como um novo tempo nas relações de EUA e Cuba, na verdade é uma reação tardia e uma reação, sobretudo, a esta tremenda capacidade de articulação internacional de Cuba, que culmina agora com um novo patamar de relação entre a ilha caribenha e a União Europeia. Essas são as duas advertências iniciais. E, naturalmente, há escassas relações com os direitos humanos, porque, no contexto latino-americano, se a Europa fosse discutir direitos humanos radicalmente, teria que romper relações com a maioria dos países latino-americanos, senão com sua totalidade, inclusive com o Brasil, porque os direitos humanos aqui são olimpicamente desrespeitados: habitação, saúde, educação. Ainda que por conveniência, a razão cínica do imperialismo, eles reduzem direitos humanos ao conflito entre o Estado e militantes políticos, e que naturalmente em Cuba, um país que está sob o bloqueio econômico dos EUA e com agressão permanente, é óbvio que todo Estado vai limitar as liberdades internas, e este é o caso cubano.
S: A secretária responsável pelas relações exteriores da UE, a italiana Federica Mogherini, esteve em Havana em março deste ano. Houve alguma evolução no diálogo entre cubanos e europeus?
NO: A questão é que os europeus, tradicionalmente, têm uma submissão total aos EUA. Desde a OTAN, que é a organização que aplica o terrorismo contra um conjunto de povos – vide a Iugoslávia –, um conjunto de crises europeias, e que mostra que a Europa, desde a Segunda Guerra Mundial, nunca conseguiu de fato um grau de autonomia econômica, financeira, política e militar, de geopolítica no terreno mundial. Mas a Europa nos últimos tempos está tentando, ainda que muito timidamente, de maneira balbuciante, tomar certa independência em relação aos EUA. Faz isso de maneira acidentada, não sistemática, e é neste contexto que se inserem as sucessivas iniciativas que a União Europeia toma em relação à América Latina, no seu conjunto, e a Cuba. Veja que há pouco tempo as negociações entre a União Europeia e o Mercosul evoluíram de maneira célere, de tal forma que isso configura essa ofensiva europeia num terreno, num continente, que tradicionalmente tem sido uma reserva estratégica dos EUA. Mas a Europa começa a tomar essa iniciativa. Então, sempre existiram pontos em que essa colaboração foi retomada. Ora simbolicamente no terreno da cultura, ora simbolicamente no terreno da ciência e tecnologia, ora de maneira imperfeita nas relações econômicas, ora algum outro país europeu tomando uma iniciativa isolada. Esses pontos forçaram a União Europeia – como expressão dos interesses globais dos países europeus – a avançar, não só desde março, com a delegada italiana expressando os interesses da UE, mas que nunca deixaram de existir, especialmente a partir de 2008. A partir precisamente da grande crise que se abateu no mundo capitalista e com especial força na Europa. Curiosamente, a crise exigiu margens de manobras no terreno geopolítico que fizeram com que eles retomassem, de maneira mais global, o que eles, de maneira muito pretensiosa, ideológica, chamam de uma nova inserção de Cuba na comunidade internacional, que orwellianamente nós sabemos que “comunidade internacional” é o substituto da expressão “expansão imperialista”. Esta tem sido a norma, e a União Europeia, tomando essas iniciativas, agora tenta ganhar graus de autonomia em relação aos EUA.
NO: O establishment nos EUA e o liberalismo empobrecido no Brasil, essa forma conservadora e reacionária de observar a cena cubana, tem que entender, definitivamente, que a Revolução Cubana, que decretou seu caráter socialista em 62, tinha como valor supremo algo que agora pode ser visto de maneira muito clara, que é algo que nós não temos, que é o conceito de soberania nacional. A despeito das declarações de busca do socialismo, da extraordinária e vitalizante percepção de Che Guevara de que teríamos que buscar o homem novo, etc., na verdade a força motora da Revolução Cubana eu diria que foi menos o socialismo, historicamente falando, ainda que tenha havido fases em que o apelo ao socialismo foi mais forte e a política do Estado cubano e a mobilização do povo, as organizações populares andaram nessa direção, mas o fundamental é a soberania do Estado cubano. Qualquer acordo neste contexto, de redefinição das relações entre Europa e Cuba, passará, de maneira absolutamente escrupulosa, pelo respeito à soberania nacional cubana. Isto não pode ter a menor dúvida, de tal forma que, inclusive, esta questão dos chamados direitos humanos, que é algo quase para inglês ver, uma certa ingenuidade liberal e ao mesmo tempo um cinismo liberal em curso, isso não vai orientar nenhum dos acordos de cooperação que se façam em qualquer área. Podem escrever aí, os nossos leitores devem ter clareza disso. Cuba é o país latino-americano que mais zela por esse valor da soberania nacional, e vai manter isso como regra. Aliás, é uma regra fundamental.
S: Foi exatamente nesses termos que o diretor para a Europa e Canadá do Ministério das Relações Exteriores de Cuba, Elio Rodríguez Perdomo, observou em recente entrevista à mídia internacional. Disse ele nessas declarações: “Sobre o diálogo político com a União Europeia, Cuba quer deixar claro que respeita os princípios de reciprocidade, não discriminação, respeito mútuo e não interferência nos assuntos internos."
NO: Não há dúvida. Quem acompanha a história da Revolução Cubana no seu auge, 1959, 62, 68, o difícil período de 68 até 78, as novas redefinições, a valorização do mercado, a redefinição do Estado, a liberação de profissões, a política externa, a constituição de organismos como CELAC, etc., até o retorno à OEA, observa que o Estado cubano e a direção do Partido Comunista não vão se afastar um milímetro desta questão. Poderão admitir, como já admitem, capital externo em Cuba, poderão admitir relações com países que mantêm um grau de hostilidade, como os EUA, mas sem a menor ilusão de que os cubanos vão ceder nesse valor fundamental. É claro, as alterações de natureza econômica acabam criando um cenário em que a soberania é redefinida todos os dias. Nós sabemos que, quanto maior a presença do capital externo, menor a independência do país. Caso clássico do Brasil, que tem uma soberania de anão, que exerce uma soberania quase simbólica. Decisões fundamentais em termos de economia e política não são tomadas aqui dentro, são tomadas desde Washington e desde o peso que as empresas transnacionais possuem no desenvolvimento capitalista brasileiro. Esse não é o caso cubano. É isso que o liberalismo aqui e os conservadores espetam toda hora. Tentam mostrar a relação de Cuba com os EUA como se fosse produto de uma Guerra Fria, quando na verdade é a forma com que Cuba dá uma lição permanente aos latino-americanos, que é a defesa da soberania nacional que nós, lamentavelmente, não temos. Então a declaração dos funcionários em questão nada mais faz do que ratificar esta posição que me parece histórica e o principal valor da Revolução Cubana.
NO: Permita-me contar uma história pessoal que me parece útil para ilustrar uma dinâmica essencial da sociedade cubana. A primeira vez que visitei Cuba, entre as mais de vinte vezes que fiz essa viagem, eu me encontrei com uma situação no início da década de 80, em que saí de Cuba com a certeza de que o desgaste do regime cubano, do Partido Comunista, não da figura de Fidel Castro, era muito grande. Fui me dando conta ao longo das sucessivas visitas que fiz lá por assuntos de caráter profissional, intelectual, congressos, sobretudo os congressos da Associação de Economistas e Contadores de Cuba e da América Latina, de uma característica essencial. Aquilo que eu peguei como um descontentamento generalizado fazia parte de um comportamento normal do cubano. O cubano é, como se diz em espanhol, um “criticón”, é um crítico permanente de tudo e de todos, ao contrário do que se pensa, de que lá a opinião pública está controlada, etc. Está tão controlada em Cuba quanto está nos EUA e no Brasil. A opinião pública não existe sem o controle e o monopólio dos meios de comunicação. Tanto em Cuba quanto aqui, por razões distintas. Tanto em Cuba quanto nos EUA, por questões distintas. Mas o fenômeno é o mesmo. Então eu observei sempre que, dado o grau de politização da sociedade cubana e o grau de educação dos cubanos, que hoje o cubano tem em média 14 a 16 anos de escolaridade. De tal maneira que é um país cujos filhos são letrados e são ultraatentos à política, são ultrapolitizados. Não existe em massa esse fenômeno de alienação de amplos setores, especialmente dos trabalhadores. Então, esta crítica é generalizada em Cuba. E em todas as vezes que eu voltei, com amigos, jornalistas, professores, camponeses, dirigentes sindicais, funcionários do Partido, membros do Partido, membros do Parlamento cubano, a crítica corre solta em Cuba, e é uma crítica muito ácida, muito forte. O julgamento do General Uchoa, que foi fuzilado na década de 90, foi feito pela televisão, todos assistindo, muito antes que o Supremo Tribunal Federal tivesse suas sessões transmitidas aqui no Brasil, que para o liberalismo canhestro que nós temos parece quase o céu, parece quase uma conquista civilizatória. Não é. Isto em Cuba acontecia há muito mais tempo. A crítica, portanto, em Cuba faz parte desse grau de consciência. Fidel Castro não tem mais o controle do Exército, nem do Partido Comunista. Porque os liberais supunham que Fidel Castro morreria no exercício dos cargos que detinha no poder estatal. Equivocaram-se. Supunham que Cuba não mudaria. Cuba sempre mudou. Supunham que os EUA não teriam que reabrir relações com Cuba. Tiveram que reabrir. Isso deu a Fidel algo que ninguém pode tirar e que nenhum político latino-americano tem, que é uma gigantesca autoridade moral e política para tratar de temas da humanidade, temas latino-americanos e especialmente temas cubanos. Essa autoridade moral e política que Fidel tinha quando era secretário-geral do Partido Comunista Cubano, quando era o chefe das Forças Armadas Revolucionárias de Cuba, quando era o líder supremo da Revolução Cubana, a autoridade mais importante, Fidel nunca perdeu. Embora agora não tenha o poder do Estado, das decisões estatais, está retirado, isto está sob completo exercício de Raúl Castro, um remanescente de Sierra Maestra. O fato é que Fidel exerce uma autoridade moral e política que nunca deixou de manifestar, para nós, latino-americanos, para o mundo e para os cubanos. Quem acompanha Fidel tem uma manifestação semanal sobre temas políticos. Essa autoridade só cessará quando Fidel parar de respirar.