Foram 17 dias de intensas negociações nessa última fase, até que se chegasse a um acordo.
O especialista em assuntos iranianos Cláudio Esteves Ferreira, professor de História e Relações Internacionais do Colégio Militar do Rio de Janeiro e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos da UFF – Universidade Federal Fluminense, falou sobre o assunto.
Cláudio Esteves Ferreira: Quando se trata de questões nucleares envolvendo relações entre os países, é essencialmente uma questão ligada à confiança. Barack Obama disse que não está construindo um acordo na base da confiança, mas na base da verificação. Isso quando se trata de um país com o qual os EUA têm relações muito complicadas desde 1979, diferentemente do que aconteceu, por exemplo, no acordo com a Índia, em 2005, que foi fundamentalmente baseado numa decisão estratégica americana e numa relação de confiança e um compromisso firmado entre os dois países para perdurar 40 anos. Então é essencialmente uma questão de confiança ou da falta dela, quando se trata do Irã.
S: O Irã conseguiu convencer o Sexteto e, em escala maior, a comunidade internacional de que o seu programa nuclear será utilizado exclusivamente para fins pacíficos?
CEF: Eu penso que não. Há uma profunda desconfiança, e os próprios termos do acordo – pelo menos do que foi divulgado até agora, porque aparentemente são dezenas de páginas contendo minúcias a respeito do acordo –, esta confiança ainda está para ser estabelecida. Tanto que se prevê uma validade do acordo de 10 a 15 anos para que estas restrições que agora são impostas ao Irã sejam final e definitivamente levantadas, e que o Irã possa retomar o seu programa de uma forma autônoma, sem essa minuciosa inspeção, fiscalização e desconfiança por parte da ordem atômica internacional.
CEF: Eu concordo com os analistas em que foi o acordo possível, e considero que ele tenha sido até bastante ousado em relação ao histórico das relações e à configuração de forças internacionais nos tempos atuais. Foi um acordo até bastante ousado e que ainda não é definitivo. Há um ponto a se ressaltar que me parece muito importante e que tenha sido uma grande vitória do Irã ao concretizar este acordo: é o reconhecimento da comunidade internacional do direito do Irã de enriquecer urânio, porém dentro dos limites daquilo que se considera um enriquecimento com fins pacíficos. O Irã pode enriquecer urânio até 3,6%, que é o percentual necessário para colocar em funcionamento usinas para produção de energia com fins pacíficos. O direito a enriquecer urânio, sim; mas o direito a enriquecer urânio numa escala que possibilite a fabricação de armas nucleares foi bloqueado. É interessante fazer esta distinção. O especialista inglês Mark Fitzpatrickreconheceu isto. Ele disse que nas entrelinhas, ou nem tanto nas entrelinhas, está reconhecido pela comunidade internacional o direito do Irã de enriquecer urânio. Em outras palavras, isso significaria também o reconhecimento de o Irã ter o direito a um programa nuclear próprio. Mas os cuidados estão sendo tomados para evitar que esse enriquecimento ultrapasse os 3,6%. Por outro lado, a possibilidade de levar esse enriquecimento a um percentual maior foi completamente vetado. E o interesse maior dos negociadores era evitar o que se chamava break out, que era um espaço de tempo muito curto, com o atual estoque de urânio que o Irã possui, para, a partir de uma decisão política, rumar para a produção de um arsenal nuclear que se calcula em um mês, contando o número de centrífugas de que o Irã dispõe hoje e a quantidade de urânio que ele possui hoje. Um mês, feita a tomada de decisão, seria o tempo necessário para iniciar a construção de um pequeno arsenal nuclear. Agora se calcula que esse tempo foi prolongado para um ano ou pouco mais.
CEF: Acho que há uma parcela deste último aspecto que você mencionou, mas há também uma conjuntura internacional um pouco diferente, que, de uma certa forma, compeliu ambos os lados a fazerem concessões mútuas. Neste sentido, eu acho que o surgimento e o fortalecimento do Estado Islâmico foram elementos-chave impulsionadores a ambos os lados para fazerem concessões neste sentido. Acho que esta é uma questão bastante importante porque o Irã combate e tem uma fortíssima resistência ao EI, e há suspeitas de que já está havendo até informalmente, de forma mais discreta, uma colaboração no âmbito militar entre os EUA e o Irã em ações militares contra instalações e regiões dominadas pelo EI. Esse é um elemento bastante importante. Além disso, acredito que as sanções econômicas acabaram surtindo algum efeito, por mais que o Governo iraniano negue. Com o passar do tempo as sanções eram muito duras, os ativos confiscados, todas as restrições ao comércio de petróleo, isso minou a capacidade iraniana de manter a posição firme que vinha mantendo e resistir a qualquer tipo de concessão na área nuclear. São vários elementos, e há uma conjuntura nova que contribuiu para que esse acordo chegasse ao termo que chegou, inclusive do lado americano. Acho que a necessidade americana de buscar apoio mais consistente no combate ao surgimento e ao crescimento do Estado Islâmico também favoreceu isso, além de outras questões menores. Alguns analistas comentaram que Barack Obama – até talvez por uma questão de vaidade pessoal, a gente pode acreditar que isso não pesa, mas pesa – estaria querendo o seu momento “Nixon-China”, fazendo uma correlação ao início da détente, ao choque que foi o acordo EUA-China no início dos anos 70.
CEF: Eu penso que sim, que esse acordo, se chegar a bom termo, elimina um problema, que era o problema nuclear iraniano – um grave problema – e os outros programas continuam. Você está absolutamente certo em interpretar dessa maneira a declaração da autoridade iraniana.
S: Voltando à questão das sanções, que dependem do Congresso dos EUA para serem levantadas: elas foram decretadas justamente porque o Irã não permitia as inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica a suas instalações nucleares?
CEF: Eu acho que um ponto muito importante que deve ser salientado é que o Irã concordou em assinar o protocolo adicional ao TNP, que permite que inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica, a qualquer tempo, a qualquer hora, sem aviso prévio, tenham livre acesso a quaisquer instalações nucleares do país em questão. Essa é uma questão que coloca o Brasil e a Agência Internacional em polos opostos. O Brasil sofre uma pressão muito grande da Agência Internacional para assinar esse protocolo adicional, mas tem se recusado e firmemente tem mantido essa posição. O Irã concordou em assinar esse protocolo adicional. Há apenas uma situação um pouco nebulosa, há uma previsão de avaliação até 2025 que diz respeito à questão de instalações militares iranianas. Neste caso o protocolo adicional não valeria, não que estivesse vedado o acesso dos inspetores da Agência Internacional, mas eles teriam que fazer um requerimento e esperar 14 dias para fazer a visita às instalações militares que pudessem ser vistas como suspeitas de atividades nucleares clandestinas.
CEF: Sem dúvida. Vigora em Israel a chamada “Doutrina Begin”, inspirada no antigo Ministro Menachem Begin, que pressupõe que nenhum potencial inimigo israelense pode ter armas nucleares e que os israelenses se avocariam o direito de impedir, por quaisquer meios, essa possibilidade. Vigora ainda a Doutrina Begin. Nós sabemos que as relações, pessoais até, entre Obama e Netanyahu vêm sofrendo um profundo desgaste já há algum tempo. Há na academia americana algumas vozes solitárias mas muito importantes, que têm realçado o papel prejudicial para as relações dos EUA com o resto do mundo que resultam dessa umbilical aliança que existe entre Israel e EUA. Nós poderíamos entender esse acordo como um pequeno passo no sentido de rever a política norte-americana em relação a Israel. Um ousado passo que até agora nenhum presidente antecessor de Obama teve a ousadia de dar. Não podemos esquecer o poder enorme que o lobby israelense tem dentro do Congresso americano. Muitos consideram que seja o segundo maior lobby dos EUA, abaixo só do lobby das armas. Vão atuar com todas as forças para torpedear este acordo que o próprio Obama já disse que vetaria. E alguns analistas do Congresso americano consideram que, mesmo após um potencial veto do Presidente Obama, o Congresso não teria forças necessárias para derrubar este veto, Mas é uma questão bastante importante, e não podemos esquecer, fazendo um paralelo novamente com o acordo nuclear assinado em 2005 pela Índia com os EUA, em que a maior oposição ao acordo não veio do Parlamento indiano. Esse acordo para entrar em vigor precisa da aprovação tanto do Congresso americano quanto do iraniano. São duas incógnitas. Nada garante que esse acordo vá ser concretizado. No caso indiano, o mais surpreendente é que a maior oposição veio do Parlamento da Índia, onde houve um voto de desconfiança ao primeiro-ministro na época. Houve necessidade de fazer negociações muito rápidas e, segundo alguns analistas, muito sujas e obscuras para se recompor a maioria no Parlamento a fim de se aprovar o acordo com os EUA. Estamos num primeiro passo ainda. Um passo importantíssimo, é claro, mas ainda não há quem garanta que esse acordo possa entrar em vigor.