A haitiana estudava em uma escola próxima da base em Cité Soleil, uma das favelas mais pobres e perigosas de todo o mundo ocidental. Conta que passava o dia inteiro com fome e que em determinada ocasião, um tradutor a serviço da Minustah chamado Franco se aproximou traduzindo o que dizia um militar brasileiro. Ele fez elogios, a congratulou pelos estudos dizendo "que é a única forma de mudar de vida".
"Ele tinha a pele 'branca, branca, branca', cabelos negros e olhos claros. Fazia elogios, dizia que eu era bonita", conta a haitiana. Ela passa a vê-lo sempre que sai da aula. No mesmo mês, o militar a convida para dentro da base dizendo que a daria um pacote de biscoitos. Sem comer o dia inteiro, Martine conta que deixou o material escolar em casa e foi buscar o alimento prometido.
"Minha mãe percebeu que estava passando muito mal e concluiu que eu estava grávida. Ela mandou eu procurar o pai da criança, mas eu não conseguia e não contaria que tinha sido estuprada. Ela sempre disse que eu não deveria ir estudar porque era perigoso, iria me culpar", conta a haitiana.
Martine diz que nunca reportou o aborto às autoridades por medo e por vergonha. Ela tentou encontrar o tradutor, Franco, para saber o nome do militar, mas nunca mais o viu. "Mais de uma vez eu fui dormir chorando, pedindo a Deus que matasse o bebê ou me matasse porque eu não tinha condições de criá-lo", confessa com lágrimas nos olhos. Ashford Gestimé nasceu nas primeiras horas em 8 de abril de 2008. Constantemente humilhada pela mãe, Martine mandou o garoto para viver com o irmão dela na cidade de Delmás. Ele acha até hoje que o tio é seu pai.
Dez anos depois, Martine hoje vive de favor em um cômodo de 3 m² com a tia, Jacqueline Louidor, uma amiga e uma criança. Dividem uma única cama de casal. Não há banheiros nem janelas e porcos chafurdam em uma montanha de lixo na frente do barraco. "Se eu conseguisse encontrar este homem, pediria que ajudasse meu filho a estudar. Eu não o perdoaria, mas quero que Ashford consiga ter uma vida melhor que a minha", conta a haitiana, que diz ser capaz de reconhecer o estuprador se visse uma foto dele.
Em nota, o Ministério da Defesa informou que “conforme se pode comprovar nos registros da Unidade de Conduta e Disciplina da ONU, não houve nenhuma denúncia formal de prática de crimes dessa natureza contra militares brasileiros”. Destacou ainda que “o fato relevante, e que deve ser motivo de orgulho e referência é que, após mais de treze anos no Haiti, não foi reportada nenhuma ocorrência que envolvesse militares brasileiros” e que, se fundamentada, uma alegação de estupro seria levada até investigadores para subsidiar (ou não) uma denúncia do Ministério Público Militar.
As Nações Unidas não responderam às perguntas da Sputnik sobre se outros casos de abuso sexual cometidos por brasileiros chegaram a ser alvo de um processo formal de investigação.
Em 10 anos, uma única haitiana recebeu indenização por abuso sexual
A ONU sempre declarou ter política de “tolerância zero” quanto a casos de abuso sexual perpetrados por seus pacificadores. Na prática, porém, mais e mais vítimas reportavam crimes do tipo todos os anos com pouca ou nenhuma condenação por parte dos perpetradores de tamanho mal.
A Organização mantém um website com o lema “Profissionalismo, eficiência, integridade e dignidade” em que enumera estatísticas de estupros e exploração sexual (prostituição), cometidos pela equipe das Nações Unidas, mas a filtragem por missão só está disponível a partir de 2015. Denúncias só estão computadas desde 2007 (os anteriores, o site informa, estão arquivados em documentos físicos).
Jacquendia Cangé viveu na pele a indiferença. Estuprada por um policial nigeriano da UNPOL (Polícia das Nações Unidas), ela engravidou e denunciou o caso ao Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO). Ao contrário da maioria das vítimas, Jacquendia sabe nome completo e tem até o telefone nigeriano do estuprador. Quando compareceu ao escritório do DPKO em Porto Príncipe, informou o nome do homem. Saiu de lá com uma foto do estuprador e a promessa de que a denúncia seria levada a cabo. Nunca mais foi contatada.
Questionada pela Sputnik, a assessoria de imprensa do DPKO em Nova York respondeu dizendo que o caso de Jacquendia “consistiu em uma alegação de exploração sexual que foi fundamentada. Informamos ao Estado-Membro [a Nigéria] das alegações em setembro de 2014 e o caso permanece pendente, tanto em conexão com a alegação de exploração sexual quanto com a reivindicação de paternidade e apoio à criança. Continuamos a acompanhar o caso com o Estado-Membro”.
“Eu não quero mais ouvir falar deste homem, eu não pedi minha filha para Deus, mas ele a enviou e cuidarei dela. Não preciso de ajuda dele”, diz revoltada. Ela se prepara para vir morar em São Paulo com um irmão, residente no Brasil desde 2013.
Estupro é emergência de saúde pública no Haiti
A questão dos estupros cometidos pelo pessoal servindo as Nações Unidas também precisa ser analisada em perspectiva quando se trata do Haiti. Neste aspecto, a organização Médicos sem Fronteiras divulgou em julho deste ano, o relatório "Violência sexual e baseada em gênero contra jovens no Haiti" em que denuncia a parca estrutura estatal estabelecida para receber e tratar as vítimas.
Segundo a MSF, faltam profissionais treinados, políticas públicas de apoio à vítima e hospitais específicos. A educação sexual também é tópico pouco trabalhado na sociedade haitiana, mesmo entre a minoria estudada. A falta de informação sobre o tema expõe as pessoas não só ao risco do estupro em si (como ferimentos, gravidez precoce e doenças sexualmente transmissíveis), mas também ao relativismo do crime, fazendo que menores sejam tanto vítimas quanto, em muitos casos, perpetradores.
Por questões éticas, a organização não comenta casos específicos ligados ao pessoal das Nações Unidas, mas a Sputnik Brasil falou com exclusividade com o diretor da iniciativa, Prosper Ndumuraro que analisou o panorama nacional. Segundo ele, a falta de informação e a culpabilização da vítima ainda são entraves na atuação de equipes médicas.
“O que precisa ficar claro e que ressaltamos com a comunidade é que qualquer atividade sexual cometida contra seu corpo é estupro. Não importa o seu gênero nem as circunstâncias. E estupro demanda cuidado médico, psicológico e legal”, completa o médico. Ele ressaltou a necessidade de suporte do Estado haitiano na questão também da responsabilização dos agressores.
Com base em estatísticas de atendimentos, a MSF estima, no entanto, que até o final do ano terá recebido outras 144 vítimas.