A Sputnik Brasil entrevistou especialistas e procurou ouvir fontes oficiais do governo federal na busca por uma explicação: por que o Brasil mantém a fabricação de bombas tão controversas? Para quem o país vende tais armas? Rastros de munições fabricadas pela empresa brasileira Avibrás, encontrados no Iêmen e relatados pela Human Rights Watch (HRW), mostram que, moralmente, o país deve algumas explicações.
Para quem já foi alvo de tal arma, as lembranças são dolorosas e difíceis de esquecer.
"Nós pensamos que é como os mísseis regulares que sempre atingem a Saada [...] que só criam explosões únicas. Este era diferente, uma série de explosões juntas [...] Todas as bombas pousaram sobre nosso bairro, sobre casas e nas ruas", descreve o iemenita Bassam. "Nós ouvimos [...] dois sons de explosões [...] um mais alto que o outro, e [...] depois disso ouvimos mais explosões, menores e caindo de o céu como brasas [...] pousou em todos os lugares, tanques de água sobre as casas, um [...] explodiu e destruiu um táxi", puxa pela memória outro imemenita, Khaled, assustado com o incidente perto de uma escola infantil.
Os relatos não são muito diferentes a 3.000 quilômetros de distância, na Síria, outra nação assolada pelo uso de bombas de fragmentação.
"Uma bomba explode no ar, e pequenas bombas caem no chão. As crianças costumavam pegá-los e houve muitos acidentes", relembra o sírio Muhammad. Seus conterrâneos, o casal Jamal e Leila também se recorda: "Muitas armas não explodiram no lançamento [...] Os agricultores não conseguiram trabalhar por causa disso e alguns ficaram feridos". "Uma vez que um vizinho pegou uma e explodiu", lamenta outro sírio, Kareem.
O pânico e o caos criados no Iêmen e na Síria, e descritos para as organizações não-governamentais (ONGs) como a HRW e a Handicap International, respectivamente, e pela Sputnik Brasil aqui reproduzidos mostram que até hoje o mundo sente os efeitos de um armamento criado pela Wehrmacht, a força de defesa do Terceiro Reich nazista de Adolf Hitler.
Batizada de Sprengbombe Dickwandig 2 kg (SD-2), a arma foi a primeira bomba 'cluster' – traduzida como bomba-cacho, bomba de fragmentação, ou bomba de dispersão – que se tem notícia e causou pânico e caos durante os bombardeios da Luftwaffe (Força Aérea da Alemanha nazista) sobre o Reino Unido. Ela não fazia distinção de alvos civis e militares. Passados 73 anos, o mesmo princípio norteia o uso de tal armamento.
No ano em que a Convenção de Oslo (Noruega) completa 10 anos, o seu objetivo fundamental - o banimento das munições de fragmentação – ainda enfrentar fortes resistências. E o Brasil integra o grupo de nações que, sendo fabricante e exportador de tais artefatos bélicos – não aderiram a tal tratado, que conta hoje com a anuência de 120 nações (103 integrais e 17 signatários).
Armas do Brasil no Iêmen
Um ataque contra a cidade de Saada, no Iêmen, no dia 6 de dezembro de 2016 matou duas pessoas e deixou seis feridos, incluindo uma criança. O bombardeio foi atribuído à coalizão liderada pela Arábia Saudita contra rebeldes do movimento xiita Houthi, em um conflito que já ceifou a vida de mais de 10.000 iemenitas desde o seu início, em 2014. Segundo a HRW, bombas de fragmentação fabricadas no Brasil foram usadas no incidente.
A ONG revelou ter encontrado restos de mísseis Astros II, cada um contendo mais de 65 sub-cargas e que foram lançadas de um lançador montado em um caminhão militar. Um ano antes, outra entidade, a Anistia Internacional, registrou um ataque semelhante também em Saada, em 27 de outubro de 2015, que feriu quatro pessoas. Em comum, peças de mísseis Astros II que levavam bombas-cacho.
Uma bomba de dispersão, por via de regra, pode ser definida como uma 'arma-contêiner'. Isto significa dizer que ela leva dentro de si diversas sub-munições, como se fossem pequenas granadas. Podendo ser lançada por meio terrestre ou aéreo, ela pode se espalhar por uma área vasta – em alguns casos, correspondente a pelo menos quatro campos de futebol –, sem fazer distinção de alvos.
Além disso, ela foi projetada para explodir momentos antes de atingir o solo, podendo ainda ser programada para ser detonada em determinado tempo. Contudo, não só tais bombas nem sempre acabam atingindo alvos militares, como podem não explodir. Embora forças de segurança neguem, desta forma elas acabam tendo um impacto semelhante ao de minas terrestres, já que podem detonar à menor vibração.
De acordo com a organização internacional Coalizão de Munição Cluster (CMC), 98% das mortes por bombas de fragmentação no mundo vitimam civis. Em seu mais recente relatório, a entidade apontou que pelo menos 971 pessoas foram mortas pelo armamento em 2016, das quais 860 apenas na Síria. A estimativa é que o número seja inferior ao dado concreto envolvendo vítimas fatais, e significou mais do que o dobro registrado em 2015 (417).
Um dia antes do segundo ataque com armas fabricadas no Brasil documentado em Saada, o governo brasileiro se absteve em uma votação na ONU que endossou a Convenção de Oslo, acompanhando posicionamentos de nações como a Arábia Saudita, o Iêmen e os Estados Unidos. A resistência do Itamaraty em adotar uma postura mais assertiva quanto ao tema é uma interrogação para especialistas.
"O Brasil vem sendo obscuro, inútil e poderia fazer muito mais quando se trata de lidar com os danos humanitários causados por uma arma ruim. É profundamente desapontador que o Brasil se mantenha fora do Tratado de Banimento de 2008 [Tratado de Oslo] e há diplomatas que discordam dos termos do tratado, e não entendemos porque a indústria brasileira, a indústria militar brasileira, seja aquela que articula a política do Brasil quanto a esse tema, e não o Parlamento ou as lideranças políticas, tanto quanto ao tratado quanto ao que está sendo feito sobre a produção e exportação de munições cluster pelo Brasil. Pelo que eu posso dizer, não há nenhuma ação", disse à Sputnik Brasil Mary Wareham, diretora de Advocacia da Divisão para Armas da HRW em Washington.
'Queda de braço'
A frustração internacional com o governo brasileiro também reverbera dentro do país. Segundo analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, um ponto fundamental na discussão de bombas de fragmentação em Brasília aconteceu em junho de 2008, quando o então ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, declarou que tais armas eram "desumanas", "que deveriam ser eliminadas" e que o Brasil "analisaria sua posição e, no futuro, poderia participar da convenção [de Oslo]".
No entanto, cinco meses depois, o Brasil informou que "o governo não apoiou a convenção por sua visão de que o processo e a convenção não equilibram as necessidades legítimas de defesa com preocupações humanitárias". Tal mudança de postura, em tão pouco tempo, sinalizaria que ocorreu uma "queda de braço" dentro do governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e que militares e a indústria bélica nacional levaram a melhor.
#Iêmen - A guerra e ataques da coalizão liderada pela Arábia Saudita exacerbam a maior catástrofe humanitária do mundo. Entenda a situação: https://t.co/zy5l3kh8yH #Rights2018 pic.twitter.com/X4CNGbrIn0
— Human Rights Watch (@hrw_brasil) 19 de janeiro de 2018
"Você vê que uma declaração oficial de um país acabou não retumbando em qualquer, e eu digo exatamente isso, em qualquer medida pública efetiva e transparente ao tratamento dos desafios humanitários dessas armas que ele produz, como você bem sabe, [traz] uma consequência humanitária gravíssima tal qual a das minas terrestres, que era um problema que estava sendo solucionado e que hoje, vamos dizer assim, esse problema volta à tona com novas armas que produzem impactos semelhantes", avaliou Cristian Wittmann, professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e integrante do CMC.
Presente no debate para a erradicação de minas terrestres na segunda metade dos anos 1990, o doutor em Direito e hoje reitor da Universidade Federal da Integração Latino Americana (UNILA), Gustavo Oliveira Vieira, também conversou com a Sputnik Brasil e opinou que existem indícios de que o governo brasileiro, que em um primeiro momento sinalizou que poderia rever a fabricação e exportação de tais armas, mudou de ideia - embora continuasse acompanhando amplamente o tema, segundo dados desclassificados pelo Itamaraty.
"Se a gente olha os últimos 11, 12 anos que essa pauta vem sendo debatida, fica claro que houve uma divisão interna no governo. Se não me engano foi em 2006 ou 2007, teve uma fala de um diplomata do Brasil na Assembleia Geral da ONU, quando chegou à pauta de direitos humanos, falando contra as munições cluster. E aí depois houve uma solicitação de exportações do Brasil, pela Avibrás, e o Brasil levou uns 15 meses para dar o 'ok'. Então eu acho que esse foi o tempo da disputa interna no governo, é a minha hipótese", explicou.
Vieira ponderou que, ao mesmo tempo em que houve uma divisão em Brasília, estabeleceu-se uma nova orientação sobre a política de armas, e como a produção de armamentos pelo Brasil poderia contribuir para o "desenvolvimento estratégico e inserção estratégica do Brasil” no cenário internacional. Em regime de recuperação judicial desde julho de 2008, a Avibrás ganhou a União como sócia em 2010, seja com o perdão de dívidas, seja com o desenvolvimento do Projeto Estratégico Astros II, voltado a “prestar um apoio de fogo de longo alcance, com elevada precisão e letalidade", segundo o Exército Brasileiro.
Procurado ao longo de duas semanas, Celso Amorim inicialmente alegou problemas de agenda para não conceder entrevista. Posteriormente, sua assessoria recebeu por e-mail os questionamentos da Sputnik Brasil, para os quais não enviou as respostas até a publicação desta reportagem.
'Inteligência estratégica'
Em uma audiência pública realizada em 24 de novembro de 2016, na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDN) do Senado, o então ministro da Defesa, Raul Jungmann, ele defendeu que havia "uma boa oportunidade de investimento" em armamentos no Brasil, e exaltou o projeto Astros 2020, de interesse das Forças Armadas do país e da Avibrás. Após consumir R$ 400 milhões de 2011 para cá, a iniciativa ainda teria absorver R$ 1,9 bilhão para a sua completa implementação por parte do Brasil, em 2023.
Um ano depois, em dezembro do ano passado, o presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (ABIMDE), Carlos Frederico de Aguiar, exaltou a "inteligência estratégica" do governo brasileiro, em parceria com os ministérios da Defesa e de Relações Exteriores, em prol da indústria militar nacional, que realizou em 2017 uma missão com 14 empresas do país ao Oriente Médio – "a maior da história", segundo Aguiar.
Da sua parte e presente ao encontro com os empresários em São Paulo, Jungmann reforçou as linhas de financiamento e o apoio governamental à indústria bélica brasileira, que movimenta aproximadamente US$ 60 bilhões (R$ 195 bilhões) anuais, dos quais US$ 350 milhões provêm apenas da exportação de armas pequenas e munições, segundo dados da Iniciativa Norueguesa para Transferências de Armas Pequenas (NISAT). Já outra organização, a Small Arms Survey, aponta um lucro ainda maior apenas com armas pequenas: US$ 591 milhões (R$ 1,92 bilhão).
Parte do problema da divergência de dados repousa na falta de transparência do setor de armas do Brasil. À Sputnik Brasil, a coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, afirmou que as incertezas em torno da fabricação, desenvolvimento e exportação de armamentos por parte do Brasil e de suas empresas geram preocupação e expõem ainda uma falta de coerência, já que mantém uma política bélica que data da ditadura militar, incoerente com tratados internacionais voltados aos direitos humanos que o país integra.
"A Small Arms Survey já classifica o Brasil como um dos países com a pior política de transparência do mundo. Pelo ranking, nós estamos atrás de países muito mais criticados internacionalmente como Rússia, China, Paquistão, então estamos muito mal nesse quesito [...] o próprio documento em si que trata da exportação de material militar é sigiloso. Toda essa política de falta de transparência, [com vendas] para países com históricos questionáveis, de que forma eles usam essas armas, do Brasil não ser signatário do tratado de munições cluster, de ter atrasado em quase cinco anos a ratificação do Tratado de Comércio de Armas (ATT) que está para ser ratificado agora – que foi assinado em 2013 – é uma grande falta de coerência porque a política externa é constitucionalmente pautada pela defesa de direitos e pela cooperação com a comunidade internacional. Quando a gente olha para a política que envolve armas, de produção e exportação, isso não se aplica. É uma falta de coerência que não tem a ver com um governo ou outro, é uma definição de política externa que está na Constituição e que deveria ser uma política de Estado", analisou.
A transparência quanto a importações e exportações de armas é uma demanda antiga de políticos, setores da sociedade civil brasileira e organismos internacionais. Um dos entraves para a ratificação do ATT pelo Brasil envolve a liberação de dados sobre a indústria bélica e militar do país. Ironia do destino ou não, o próprio Jungmann – que recentemente deixou o Ministério da Defesa para assumir o Ministério de Segurança Pública – já defendeu, quando deputado federal pelo PPS, o acesso a essas e outras informações. Como aquelas envolvendo bombas de fragmentação.
"As bombas cluster, ao serem lançadas por um avião, se abrem antes de chegar ao solo e os explosivos se espalham por uma área de cerca de 28 mil metros quadrados, equivalente a quatro campos de futebol. A área alvo, conforme especialistas da área, é pulverizada, mas raramente todos os explosivos são detonados ao tocar o solo. Em média 10% falham e passam a funcionar como minas terrestres, capazes de matar e fuzilar civis. Conforme Silvia Backes, representante da Cruz Vermelha, 'essa arma contraria os princípios humanitários. Os civis viram vítimas da bomba, mesmo décadas depois do fim da guerra'. O tema é corroborado por Thomas Nash, da [CMC], ONG internacional que combate as bombas cluster, 'esse tipo de arma já minou o solo de 20 países e matou e feriu pelo menos 13 mil civis'. A maioria das vítimas são agricultores e crianças atraídas pelo colorido e pelo formato de bola de alguns desses artefatos. A informação é de grande gravidade sendo importante para este Parlamento ter informações abalizadas sobre o posicionamento do Brasil em relação às bombas cluster ou de dispersão, tendo em vista que o Brasil votou pelo Tratado de Controle do Comércio de Armas e participa ativamente do grupo de discussões das Nações Unidas", escreveu Jungmann, em requerimento de maio de 2009, endereçado ao então ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim.
Em pelo menos outros quatro requerimentos (aqui, aqui, aqui e aqui), datados entre 2008 e 2015, parlamentares instaram o governo brasileiro a fornecer informações sobre o comércio de armas. Contudo, nenhum deles prosperou. E isso não parece ser uma coincidência. Autor do projeto de lei mais avançado e cujo objetivo é o banimento das bombas de fragmentação, o deputado federal Rubens Bueno (PPS-PR) reconheceu que há "uma resistência grande do setor militar" brasileiro à sua proposta, apresentada em 2012 e que até hoje pouco avançou dentro das comissões da Câmara dos Deputados.
"Na verdade eu coloquei esse projeto já adiante de um projeto já apresentado anteriormente pelo então deputado Raul Jungmann [hoje ministro da Segurança Pública], e ao apresentar esse projeto a preocupação é a questão humanitária, evidentemente, do que está acontecendo no mundo, de guerras, do que isso provoca. A preocupação era essa, mas evidentemente existe uma resistência grande no setor militar brasileiro, então enfrentamos essa resistência democraticamente. Não tem nada de ilegítimo nisso, mas estou tentando, estou forçando, estou na CCJ [Comissão de Constituição e Justiça] para que isso venha pelo menos para discussão, porque discutindo esclarece o tema, mostra o estrago que isso provoca, mas a preocupação é mais nesse setor militar que tem essa dificuldade em deixar isso acontecer", contou o parlamentar à Sputnik Brasil.
Relator do projeto na Câmara, o deputado federal Heráclito Fortes (PSB-PI) informou, por meio da sua assessoria de imprensa, que não possui posição formada sobre o assunto e aguardará as discussões nas comissões da Casa antes de tecer uma posição oficial.
As dificuldades e mistérios em torno do tema não param aí. A reportagem da Sputnik Brasil também tentou, por meio da Lei de Acesso à Informação, obter detalhes sobre as vendas de armas e, principalmente, de bombas de fragmentação pelo Brasil. Dos três ministérios procurados, apenas o Ministério de Relações Exteriores respondeu, informando ter encaminhado a demanda ao Ministério da Defesa.
"Decide-se pelo reencaminhamento do presente pedido de informação por tratar de assunto que, em última análise, diz respeito à competência do Ministério da Defesa. O Ministério de Relações Exteriores não dispõe de dados compilados sobre as exportações de produtos de defesa brasileiros", respondeu a pasta. Tanto a Defesa, quanto o Ministério de Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MdIC) não responderam às solicitações até a publicação desta matéria.
A Sputnik Brasil também enviou mensagens com pedidos de entrevista ao próprio Jungmann e ao Ministério da Defesa. Tanto o ministro quanto a pasta não retornaram nenhuma das mensagens, nem atenderam aos telefonemas.
Balança comercial lucrativa
Em uma busca aos dados mais recente da balança comercial disponibilizados pelo MdIC, a reportagem apurou que a Arábia Saudita é a grande compradora de "armas, munições, suas partes e acessórios", tendo investido US$ 80,34 milhões em compras desse tipo de produto apenas em janeiro de 2018. O valor engloba quase o total de aquisições do gênero por parte da Liga Árabe (US$ 82,37 milhões).
Outros países que recebem exportações de algum tipo de armamento do Brasil são os Estados Unidos (US$ 8,621 milhões), Omã (US$ 1,82 milhão), Qatar (US$ 176,2 mil), Israel (US$ 154,6 mil), Alemanha (US$ 131,3 mil), África do Sul (US$ 90,6 mil), e Jordânia (US$ 32,8 mil). Entretanto, é possível que a lista de países seja ainda maior, uma vez que os dados liberados pelo MdIC passam pelo crivo dos ministérios da Defesa e de Relações Exteriores, e não pode ser descartado um possível veto à liberação completa das informações – incluindo o que e por que valores exatos o Brasil negocia armamentos, incluindo as bombas de dispersão.
Segundo reportagem do jornal Folha de S. Paulo de janeiro de 2011, um telegrama de 9 de janeiro de 2009, enviado por um representante do governo dos EUA no Brasil – e divulgado pelo Wikileaks na oportunidade – apontou que a Avibrás exportava armamentos para Arábia Saudita, Angola, Brunei, Chile, Colômbia, Equador, Kuwait, Malásia, Marrocos, Omã e Qatar. No mesmo documento, um executivo da Avibrás explicou que o governo brasileiro precisa avalizar as vendas de armas da empresa, e que negociações com Irã e Israel haviam sido negadas por Brasília.
O aspecto comercial não pode ser menosprezado em meio a tanto mistério. Em um parecer de 2015, a Controladoria-Geral da União (CGU) negou uma solicitação de informações sobre as exportações de armas brasileiras. No documento, um cidadão solicitava os "'Formulários-Padrão' produzidos pela Divisão de Operação de Promoção Comercial (DOC/DPR) do Itamaraty para Pedidos de Exportação (PEX) de Produtos de Defesa (ou material de emprego militar) de 1990 até março de 2010", alegando os prazos de sigilo já teriam se esgotado – o Executivo negou a solicitação, alegando que tais formulários "são preenchidos com informações de empresas, cuja divulgação à revelia destas representaria violação do sigilo comercial, empresarial e industrial".
Para refutar o pedido e garantir o sigilo dos dados solicitados, a CGU acolheu as alegações do Ministério de Relações Exteriores, que afirmou que os formulários pedidos contêm "informações sobre bens, volumes e valores a serem exportados, cuja divulgação à revelia das empresas envolvidas representaria violação dos princípios de sigilo comercial, empresarial e industrial" e que, "tendo em conta que o mercado global de defesa é marcado por elevada concentração no lado da oferta, a divulgação de informação sobre transações poderia beneficiar empresas concorrentes, tanto domésticas como internacionais, comprometendo, portanto, a própria competitividade da base industrial de defesa brasileira".
"O acesso a tais informações tem o potencial de afetar relação de confiança estabelecida entre as empresas vendedoras e os países compradores. Trata-se da compra de produtos com alta sensibilidade, cuja a revelação da transação pode trazer implicações tanto para o país comprador quanto para a empresa exportadora e afetar, consequentemente, o poder de mercado da empresa exportadora [...] Por terem as informações natureza privada cujo conhecimento pela administração pública se deve a uma atividade de controle (que está fora do âmbito do Decreto 7.724/12), cuja divulgação pode afetar o mercado de produtos de defesa, não cabe o fornecimento das mesmas pelo órgão demandado ao cidadão", concluiu a CGU.
Entretanto, o deputado Rubens Bueno não acredita na argumentação que sugere uma disputa comercial. Para ele, é antagônico um país como o Brasil, que até recentemente liderava uma missão de paz no Haiti, se proponha a desenvolver e exportar armas que possuem alto grau de dano contra civis.
"O problema é um país como o nosso, que tem uma presença com relação à paz, à determinação dos povos como o Brasil tem na política externa, não vai agora produzir armas que venham a ceifar vidas. Este é o problema, [matando] inocentes que nem em conflito estejam. Até porque, como a figura do cacho, quando enterrado, pode provocar [ferimentos] em civis e crianças, atingir pessoas que não têm nada a ver. É uma arma poderosa e ao mesmo tempo pode provocar danos irreparáveis, especialmente naqueles que não estejam em conflito. Não vejo nada de disputa comercial", avaliou.
Mary Wareham, da HRW, concorda com o ponto de vista do parlamentar brasileiro e vai além, classificando como desrespeitosa a justificativa brasileira para não aderir ao Tratado de Oslo.
"Esse tipo de conversa é extremamente desrespeitosa pela norma que foi criada pela convenção de munições cluster e é um indicativo dos mesmos e velhos pontos que os diplomatas brasileiros sempre tiveram desde que o assunto foi tratado, em 2008. Serve para desacreditá-lo, para ofuscar os termos e dizer que proíbe alguns tipos [de armas] e não outras, enfim [...] serve apenas como um desserviço e considero isso rude, especialmente quando se trata de uma lei internacional e você tem mais de 100 países legislando e implementando [o tratado]. O que o Brasil está fazendo: apenas falando e defendendo o status quo", destacou.
O que diz a Defesa, o Itamaraty e a Avibrás
O Ministério de Relações Exteriores se dispôs a responder aos questionamentos da Sputnik Brasil sobre o tema das bombas de fragmentação, respondendo a quatro questionamentos enviados por e-mail à pasta. A reportagem inicialmente quis saber os motivos da mudança de postura do então ministro Celso Amorim quanto ao Tratado de Oslo, há 10 anos. Embora o Itamaraty "reconheça os graves problemas humanitários causados pelo uso das munições agregadas", a discussão no âmbito da ONU foi bloqueada justamente por países que compõem o documento firmado na Noruega.
"O Brasil decidiu não participar do processo negociador plurilateral iniciado em 2007, fora das Nações Unidas, que levou à adoção, em dezembro de 2008, da Convenção sobre Munições Agregadas ou de Fragmentação (Convention on Cluster Munitions), também conhecida como Convenção de Oslo. O curso de ação apoiado pelo Brasil era de prosseguir as tratativas no âmbito da Convenção sobre Proibições ou Restrições do Uso de Certas Armas Convencionais que podem ser Consideradas Excessivamente Lesivas ou Geradoras de Efeitos Indiscriminados, referida regularmente como Convenção sobre Certas Armas Convencionais (CCAC), que provê arcabouço multilateral para o tratamento da questão. Nesse sentido, o Brasil esteve firmemente empenhado durante a III Conferência de Exame da CCAC (2006), e mesmo depois, em promover a regulação das munições agregadas por meio de um protocolo específico àquela Convenção. Esse exercício viu-se frustrado por grupo de países, hoje Partes na Convenção de Oslo, que abandonaram as tratativas para estabelecer processo plurilateral 'ad hoc'. O governo brasileiro apoiaria a retomada das negociações de um Protocolo à Convenção sobre Certas Armas Convencionais sobre o tema, caso haja decisão multilateral nesse sentido, com vistas a fortalecer a CCAC e promover a adoção de instrumentos internacionais na área de controle de armas que sejam universais, equilibrados, eficazes e não-discriminatórios", informou a pasta.
Outra crítica ao Tratado de Oslo por parte do Brasil diz respeito a "desequilíbrios que comprometem a sua eficácia". "Na visão brasileira, a Convenção de Oslo, ademais de ter sido resultado de processo negociador restrito, à margem do arcabouço multilateral, apresenta, também quanto à sua substância, desequilíbrios que comprometem sua eficácia. O primeiro refere-se ao escopo da convenção, que exclui munições com maior grau de desenvolvimento tecnológico, produzidas apenas por alguns Estados com indústrias de defesa avançadas. O segundo desequilíbrio diz respeito à 'cláusula da interoperabilidade' (art.21, par. 3), que permite a países parte de alianças militares atuarem em missões militares com países que utilizam munições agregadas".
O ministério ainda revelou que "exportações de produtos de defesa brasileiros são analisadas caso a caso, do ponto de vista dos princípios da política externa brasileira e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil", e que cabe à pasta apenas "a emissão de pareceres político e técnico sobre pedidos de autorização de exportação" nos termos da Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar (PENEMEM), ficando ao Ministério da Defesa a decisão final sobre o tema.
O Itamaraty ainda negou que o governo brasileiro esteja de olhos fechados para os danos das bombas de fragmentação, sobretudo por não ter aderido ao Tratado de Oslo. "Não ter aderido não implica que o Brasil esteja desvinculado a qualquer regulação aplicável ao possível uso de munições agregadas, o que, de todo modo, estaria sujeito ao Direito Internacional Humanitário. Assinale-se igualmente não ter o Brasil jamais utilizado essas munições e que eventual uso seria regido pelos princípios básicos do Direito Internacional Humanitário, constantes das Convenções de Genebra de 1949 e de seus Protocolos de 1977, e pelo Protocolo V da CCAC, que trata da remoção de restos explosivos de guerra, do qual o Brasil é parte", completou a pasta.
A reportagem também procurou a Avibrás Indústria Aerospacial, apontada como a produtora dos armamentos encontrados no Iêmen nos casos relatados pela HRW e pela Anistia Internacional. O diretor comercial da empresa, José de Sá Carvalho Júnior, foi procurado por e-mail, mas não retornou os pedidos de entrevista. Em nota, a Avibrás afirmou que "os produtos de defesa produzidos pela companhia atendem aos princípios humanitários preconizados pelos acordos internacionais e contam com dispositivos de autodestruição desde 2001".
"Isso significa que eles não geram material ativo remanescente no solo que possam vitimar inocentes após os combates. Informamos adicionalmente que a Avibrás cumpre todas as legislações e requisitos estabelecidos para o setor de Defesa no Brasil, especialmente os acordos internacionais dos quais o País é signatário no âmbito da ONU (Organização das Nações Unidas). Todas as exportações realizadas pela companhia são autorizadas pelos órgãos públicos competentes e observam rigoroso processo de licenciamento", continuou a nota.
No comunicado, a empresa ainda considerou "inadequadas" as "imputações esporadicamente atribuídas aos produtos da empresa", as quais "podem ter origem no desconhecimento dos fatos, refletir disputas comerciais em um mercado de acirrada competição ou simplesmente revelar preconceitos com a indústria de Defesa".
"A Avibrás é uma empresa brasileira de tecnologia e inovação que gera milhares de empregos e renda para o país. A companhia tem intensa participação no mercado internacional, o que atesta a sua capacidade competitiva e a qualidade e confiabilidade de seus produtos. A empresa tem orgulho de integrar com sucesso a Indústria Estratégica de Defesa Brasileira", finalizou a nota da empresa.
#MuniçõesCluster feitas no #Brasil feririam 2 meninos no #Iêmen. Silêncio do governo é resposta inadequada. https://t.co/L8JxnzIFVK pic.twitter.com/HsSjgihobB
— Human Rights Watch (@hrw_brasil) 17 de março de 2017
Embora não tenha atendido às solicitações da Sputnik Brasil, o Ministério da Defesa tem uma posição conhecida sobre o assunto, como expuseram no Congresso Nacional, ao longo dos últimos 10 anos, autoridades ligadas à pasta.
"O Ministério da Defesa é favorável ao emprego da munição de fragmentação, observando-se os cuidados para que seja utilizada contra objetivos militares, em situações de baixo risco para a população civil, nos termos da Convenção de Genebra (Protocolo I, Artigo 48) e da Convenção sobre a Proibição ou Restrição do Uso de Certas Armas Convencionais que Podem Ser Consideradas Excessivamente Lesivas ou Geradoras de Efeitos Indiscriminados (CCAC)", disse o ministério, em apresentação feita a deputados federais em 2010.
Quatro anos depois, em uma audiência na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN) da Câmara dos Deputados, o general Gerson Menandro Garcia de Freitas, então chefe de Assuntos Estratégicos do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA), destacou que as bombas de fragmentação representam um importante elemento de dissuasão e que, ao abolir tal arma do seu arsenal, o Brasil se envolveria em um enorme desequilíbrio regional e extrarregional.
Para o militar – que exaltou a Avibrás ("movimenta uma cadeia produtiva de mais de cem empresas, gerando dezenas de milhares de empregos") –, o fato do Brasil dispor dessas munições de dispersão confere maior respeito perante a comunidade internacional. "Os investimentos recentes na evolução tecnológica permitiram aumentar a precisão, reduzir as falhas de munições não explodidas, reduzir o risco de que munições não explodidas se transformem em sub-munições explosivas e facilitar a identificação visual no terreno", declarou Menandro aos parlamentares.
Estigma nuclear indica o futuro
Porém, apesar dos militares assegurarem que monitoram o desenvolvimento, a eficácia que considera os aspectos humanitários, e o uso final das armas que o Brasil produz e exporta, há um consenso entre os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil de que bombas de fragmentação não são a resposta para a busca da dissuasão e respeitabilidade internacional.
"Munições cluster não são confiáveis. Ponto. Não importa o tempo em que são usadas, elas se espalham por uma grande área e se você as atira sobre uma cidade, as consequências sobre os civis são devastadoras. Elas não são confiáveis e muitas detonam sozinhas e, não importa o quanto você queira desenvolver a tecnologia, os governos preferem proibir o uso e produção e não ter de lidar com os termos do tratado", ponderou Mary Wareham, da HRW.
Para Natália Pollachi, do Instituto Sou da Paz, a postura do governo brasileiro parece não só ignorar o consenso internacional sobre esse armamento, como também é pouco útil se o objetivo do país é o desenvolvimento de inovação no setor militar, algo que rotineiramente surge quando militares e o Ministério da Defesa são instados a abordar o tema.
"Além de ser uma arma com enorme dano humanitário, é uma arma extremamente obsoleta, tem pouco valor agregado e não tem nenhuma inteligência [...] então se nosso país depende de uma arma assim para se proteger ou fomentar a indústria nacional, ele está muito mal para depender de um produto de tão baixa qualidade. Também tem uma questão de deixar essa visão de curto prazo. O Brasil pode até perder um produto de exportação por um momento, mas se você redirecionar os esforços de pesquisa e desenvolvimento, investir em produtos melhores, inclusive o valor agregado dessas exportações poderia ser maior. Não faz sentido tanto o argumento que questiona os danos humanitários, quanto aquele que diz que sustenta a indústria nacional. É uma grande falta de coerência", analisou.
Envolvido nas tratativas para o banimento de minas terrestres, Gustavo Oliveira Vieira avaliou que as fortes críticas às munições de dispersão no cenário internacional já rendem resultados, como uma avaliação feita por diplomatas brasileiros recentemente, de que tais armas estão enfrentando dificuldades de negociação no exterior. Mesmo que o Brasil não integre o Tratado de Oslo, a expectativa dele é que uma reflexão seja feita dentro do país e no exterior.
"Essas políticas são cíclicas, mas tendem para um lado. Essa explicação e essa nova relação espaço-tempo, entre o que acontece de um lado e outro do mundo, constrói referenciais de transparência e nexos de causalidade entre o que faz o Estado e como impacta do outro lado do planeta. Por exemplo, eu vejo que essa atuação da sociedade civil é o que dá força para um tratado sobre a erradicação de mina [terrestre], mesmo não tendo a participação de Estados como EUA, Rússia, China. Os EUA pararam de produzir, exportar e usar [minas] porque a força do consenso internacional acaba criando uma espécie de costume internacional, que também é uma norma, e o custo político sobre o uso desse armamento que entra na balança estratégico-militar que se torna contraditório, inviável. Acho que o caso de minas terrestres mostra um potencial muito importante de mudança efetiva", disse.
Já Cristian Wittmann afirmou que a discussão sobre as bombas de fragmentação é relevante não só por este armamento em si, mas também quanto às doutrinas que guiam as políticas bélicas dos países. É tempo de mudar, segundo ele, que menciona as armas nucleares como exemplo da sua teoria.
"Eu lhe dou outro exemplo recente que é a nova retomada da estigmatização das armas nucleares. Não vai trazer a eliminação dessas armas para daqui a três, cinco ou 10 anos, mas aos poucos vamos começando a desmantelar as doutrinas que levam em conta apenas a dissuasão nuclear. Acho que é importante entender que o processo de proibição de uma arma, no caso das bombas [de fragmentação], envolve algo maior: mudar a concepção de segurança dos países, que não vão mais buscar a proteção das suas armas e das suas estratégias retrógradas de segurança, e sim busca uma nova perspectiva de segurança para as pessoas, e não só os seus nacionais, mas também a responsabilidade por limites mínimos humanitários para a condução de um conflito armado e para a condução das questões comerciais, como é o caso da produção e exportação dessa bomba", concluiu.