Análise: ausência de Modi e Ramaphosa em encontro evidencia 'desgaste' da Commonwealth britânica
19:40 29.10.2024 (atualizado: 20:23 29.10.2024)
© AP Photo / Rick RycroftRei Charles durante a cerimônia de abertura da reunião dos chefes de governo da Commonwealth em Apia. Samoa, 25 de outubro de 2024
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Realizado em Apia, Samoa, na esteira da Cúpula do BRICS, em Kazan, na Rússia, o encontro dos chefes de Estado da Commonwealth não contou com a presença do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, e do presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa. A decisão, de aparente viés "prático", tem clara denotação da política externa desses países.
Entre os dias 25 e 26 de outubro foi realizada a 27ª Reunião de Chefes de Estado da Comunidade das Nações, também conhecida como Commonwealth.
O encontro, feito para que os líderes das 56 nações integrantes possam se encontrar e discutir temas de importância global, viu-se esvaziado com a ausência do primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e do presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa.
Em seus lugares, os líderes enviaram representantes menores. A delegação indiana foi chefiada pelo ministro de Assuntos Parlamentares, Kiren Rijiju, enquanto os sul-africanos foram encabeçados pela vice-ministra de Relações Internacionais e Cooperação, Thandi Moraka.
À primeira vista, há motivos "práticos inquestionáveis", afinal, os chefes de governo estavam retornando da 16ª Cúpula do BRICS, realizada entre 22 e 24 de outubro na Rússia, diz Williams Gonçalves, professor titular de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), à Sputnik Brasil. "Essa é uma argumentação de ordem prática indesmentível."
"Agora há outro aspecto. Eles podiam ter ido à reunião da Commonwealth e não ter ido a Kazan. Logo, ter preferido ir à Rússia denota uma decisão de política externa. Isso é evidente."
A natureza imperial
Criada em diferentes etapas — a Declaração Balfour em 1926, o Estatuto de Westminster em 1931 e a Declaração de Londres em 1949 —, a Comunidade das Nações foi uma maneira encontrada pela coroa britânica de prover maior independência de governo para suas colônias, mas ainda retendo a influência da metrópole.
Essa relação de poder era e é essencial para o Reino Unido, uma pequena ilha no Atlântico Norte que se constituiu enquanto potência internacional a partir de sua expansão colonial, diz à reportagem Natali Hoff, professora de relações internacionais e ciência política do Centro Universitário Internacional Uninter.
A necessidade de manter as ex-colônias alinhadas se tornou ainda mais urgente após a Segunda Guerra Mundial, quando houve o início de um processo de descolonização mais intenso ao redor do mundo. "O colonialismo está na base do que fez o Reino Unido ser o que ele é hoje", diz Hoff.
"A Commonwealth se torna um instrumento para que a política externa britânica retenha controle sobre Estados como a Índia e a África do Sul, que estiveram sob a esfera de influência britânica por bastante tempo."
A partir de seu histórico, a Comunidade das Nações se evidencia diametricamente oposta ao BRICS, grupo de países que postula a criação de uma ordem mundial baseada na multipolaridade, e o desenvolvimento dos chamados países periféricos.
"Ora, se assim apresentamos o BRICS", diz o professor da UERJ, "a incompatibilidade com a Commonwealth é evidente". "A Commonwealth representa a ideia do Império, representa a ideia colonial. Reunir a Commonwealth ao redor da coroa britânica é prestigiar, reverenciar esse passado colonial."
Assim, a escolha de Modi e Ramaphosa de priorizarem a Cúpula do BRICS, em detrimento da reunião liderada pelo rei Charles III, revela a reorganização geopolítica em curso no mundo.
"Significa uma tomada de posição. O lugar da Índia e da África do Sul é com o BRICS, e não com a Commonwealth."
Cadê o Canadá?
A ausência dos líderes indiano e sul-africano não foram os únicos percalços da 27ª Reunião de Chefes de Estado da Comunidade das Nações, a primeira regida pelo rei Charles III. Até então, todas as conferências foram presenciadas por sua mãe, Elizabeth II, como monarca.
O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, tampouco compareceu ao evento. Em seu lugar, o premiê enviou o alto-comissário do Canadá no Reino Unido, Ralph Goodale.
Só que diferentemente de Ramaphosa e Modi, a ausência de Trudeau não vem como uma mensagem de oposição geopolítica. O Canadá é alinhado à ordem euro-atlântica, participando da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e do G7, organizações criadas para a manutenção do status quo.
Pelo contrário, a ausência de Trudeau é explicada por problemas da política doméstica. Em seu próprio país, parlamentares pressionam pela renúncia do primeiro-ministro enquanto sua popularidade cai.
Ainda assim, diz Gonçalves, a mensagem de onde estão as prioridades canadenses é clara. "O trabalho em casa é muito mais importante do que a reunião com o rei da Inglaterra."
Dessa forma, os únicos grandes países da Comunidade das Nações presentes na reunião foram o Reino Unido e a Austrália, que enviaram os primeiros-ministros Keir Starmer e Anthony Albanese, respectivamente.
© AP Photo / Rick RycroftO primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, à esquerda, e o primeiro-ministro australiano, Anthony Albanese, durante a cerimônia de abertura da reunião dos chefes de governo da Commonwealth em Apia. Samoa, 25 de outubro de 2024
O primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, à esquerda, e o primeiro-ministro australiano, Anthony Albanese, durante a cerimônia de abertura da reunião dos chefes de governo da Commonwealth em Apia. Samoa, 25 de outubro de 2024
© AP Photo / Rick Rycroft
A presença do Reino Unido é mais do que mandatória, enquanto a Austrália opera na mesma esfera de influência ocidental, assim como o Canadá. "Nas instituições mais majoritárias australianas, a Austrália se coloca como um país do Norte Global, um país desenvolvido e um país ocidental", afirma Hoff.
Mais do que esperada, no entanto, a presença da liderança australiana é ainda incentivada pelo Ocidente. Gonçalves lembra que, hoje, o país da Oceania é usado como ponta de lança na aliança militar AUKUS, composta por Austrália, Reino Unido e Estados Unidos e criada para combater a influência chinesa na região indo-pacífica.
Derrocada britânica
Além da ausência de três das cinco maiores economias, o encontro da Commonwealth ainda viu certa indisposição com o Reino Unido. Antes mesmo de começar, em visita à Austrália, o rei Charles III foi confrontado pela senadora aborígene Lidia Thorpe, que o acusou de cumplicidade com o genocídio indígena em seu país.
Além disso, em agosto, o ex-primeiro-ministro jamaicano P. J. Patterson (1992–2006) afirmou que reparações pela escravidão seriam discutidas no encontro. A afirmação foi veementemente negada pelo Reino Unido, que ressaltou ainda que nem o governo nem a coroa emitiriam um pedido de desculpas pelo papel do país no tráfico transatlântico de escravizados.
O professor de relações internacionais detalha que embora o que se peça é uma reparação financeira, o que o Reino Unido verdadeiramente poderia prover seria o "abandono da relação colonial que a própria Commonwealth propõe", algo que nem a coroa nem o governo britânico se mostram dispostos a fazer.
"Veja que em outros tempos essa reunião era o momento para se reverenciar o rei, mostrar o devido respeito", comenta Gonçalves sobre a coragem jamaicana. "No entanto, um pequeno país como a Jamaica agora se atreve a desafiar a coroa britânica."
"Isso demonstra o desgaste, a falta de sentido que essa cerimônia está tendo na atualidade. Sinaliza o desgaste total."
Para Hoff, é possível notar um processo de "decadência da influência britânica" no mundo, da mesma forma que a Europa também vê seu poder de mandar e desmandar diminuir, na mesma medida em que países do Sul Global, como China, Rússia, Índia e Brasil seguem questionando "as políticas e as práticas de países ocidentais", disse.
"São países que defendem algum grau de transformação no sistema internacional, principalmente na esfera das relações econômicas e das instituições internacionais."