Corte de gastos na Defesa não afeta Lula, pois militares têm 'gordura' para queimar, diz analista
© flickr.com / Divulgação / Exército Brasileiro / Cb. Estevam / CComSExMilitar durante a operação Verde Brasil II, em Porto Velho (RO), em 11 de maio de 2020
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Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam se a inclusão da Defesa nas medidas de corte de gastos pode afetar a relação dos militares com Lula, especialmente após vir à tona o plano de assassinato do presidente, envolvendo generais da reserva.
Em sua meta para zerar o déficit fiscal, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva solicitou ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a inclusão do Ministério da Defesa nas medidas de corte de gastos.
Na mira do governo está a previdência dos militares, que no ano passado, segundo relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), causou um déficit de R$ 49,7 bilhões aos cofres públicos.
As mudanças se dariam em quatro eixos: aumentar de 50 para 55 anos a idade mínima para um militar ser transferido para a reserva; banir a chamada morte ficta, quando um militar que, por algum motivo, foi expulso da corporação é equiparado a um militar morto, podendo assim manter o pagamento de pensão a seus familiares — nesses casos, a morte ficta seria substituída pelo auxílio reclusão; restringir a transferência de pensão, limitando o benefício a cônjuges e filhos, e proibindo a transferência aos pais ou irmãos; e levar os militares a contribuírem com 3,5% de suas remunerações para o Fundo de Saúde até janeiro de 2026.
Também estão sendo discutidas formas de alterar a pensão vitalícia concedida a filhas de militares. O benefício foi extinto em 2001, sendo mantido a militares que entraram na corporação até o ano 2000.
As medidas ainda estão sendo discutidas entre as pastas da Fazenda e da Defesa, mas os militares já sinalizaram que aceitariam mudanças em alguns benefícios.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam como as mudanças propostas podem afetar a relação de Lula com militares, sobretudo após a descoberta do plano de assassinato, envolvendo militares, de Lula, seu vice, Geraldo Alckmin, e Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal.
Marcus Ianoni, chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), considera que as mudanças não vão acirrar a relação do governo com as Forças Armadas, pois são medidas que atingirão vários setores.
"E no caso dos militares, [as medidas de corte] estão sendo negociadas com eles pelo ministro da Defesa", avalia.
Por sua vez, Adriana Marques, professora do curso de defesa e gestão estratégica internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Observatório do Ministério da Defesa (OMD) e do Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa (LESD), afirma que "as Forças Amadas foram muito eficientes no sentido de garantir o máximo de benesses financeiras que puderam acumular durante o governo [do ex-presidente Jair] Bolsonaro".
"Então eles têm bastante 'gordura' para queimar. Pelo que eu vi até agora das sugestões da contribuição, do sacrifício que eles dizem que vão dar para esse ajuste fiscal do governo, as coisas que eles concordaram em cortar, na verdade, são coisas que não deviam existir, que nenhuma outra profissão, nenhum outro tipo de servidor público tem esse tipo de benefício. Por exemplo, o fato de a pessoa ser expulsa da corporação e a sua família continuar recebendo um salário que é muito maior do que o da maioria da população brasileira", observa.
Nesse contexto, ela acrescenta que os militares vão manter muitos benefícios, abrindo mão daqueles "que chocam mais a opinião pública", por isso a relação com Lula não deve ser impactada.
"Isso não vai impactar em nada na relação com Lula. Muito pelo contrário, eles vão dizer que estão fazendo a parte deles, sem ter nenhuma perda salarial, nenhuma perda significativa, ao passo que os outros servidores públicos todos foram penalizados nos últimos anos com as reformas previdenciárias."
Além do corte de gastos, o governo Lula também mira cessar a politização ideológica nas Forças Armadas. Questionado sobre o fato, Ianoni afirma que a polarização política promovida pela direita radical "se caracterizou, entre outros elementos, pela demanda por uma maior participação militar na política". Nesse contexto, os militares ganharam espaço na política impulsionados pela retórica anticomunista, que "serviu de ideologia para esse apelo".
"Os militares ganharam espaço na política sobretudo desde 2018, quando chegaram a pressionar para que Lula não recebesse habeas corpus e, portanto, ficasse impedido de concorrer às eleições presidenciais daquele ano. Em seguida, a partir de 2019, muitos militares da reserva e até da ativa participaram no governo Bolsonaro."
Ele enfatiza que para frear a politização ideológica das Forças Armadas o governo Lula formulou um projeto propondo que o militar da ativa que quiser disputar eleições ou participar de algum cargo político, como ministro, por exemplo, terá que ir para a reserva ou se desligar das Forças Armadas. Mas esse projeto, acrescenta o especialista, "está parado, não foi para frente".
"Porém, não cabe apenas ao Executivo frear a politização ideológica das Forças Armadas, mas também ao Legislativo e ao Judiciário. Vejo que quem mais está tentando enfrentar o ativismo político antidemocrático de alguns militares é o STF, sobretudo agora com o relatório enviado a esse poder pela Polícia Federal, cujo sigilo foi retirado e o documento de mais de 800 páginas foi enviado à PGR, para que a denúncia dos indiciados seja ou não feita", afirma Ianoni.
Adriana Marques afirma que essa tendência é uma conjunção de fatores, que remete ao histórico de intervenções militares na política brasileira e à ascensão a direita radical no Brasil e no mundo. Ela cita como exemplo o caso dos EUA, onde militares, para assumir uma função pública, tinham que estar afastados da profissão, aposentados, por pelo menos dez anos.
"Aí você tem o governo [de Donald] Trump trazendo para o primeiro escalão do seu governo uma série de generais da reserva, obviamente o que fez com que os militares brasileiros se sentissem legitimados para também, com muita desenvoltura, assumir cargos no governo, inclusive cargos para os quais eles não tinham a menor qualificação. Talvez o exemplo mais lapidar seja o do General Pazuello, que nunca tinha ouvido falar do SUS, mas achou que não tinha problema nenhum, era competente para assumir o Ministério da Saúde. Ele e uma série de outros militares que estão aí no inquérito do golpe."
Em dezembro de 2022, antes da posse de Lula, mas já anunciado como futuro ministro da Defesa, José Múcio Monteiro apontou a necessidade de despolitizar as Forças Armadas. Para Marques, a tarefa que Lula passou para Múcio é de apaziguamento, de acomodação do governo com as Forças Armadas, não de despolitização.
"Pelo contrário, uma frase que ele [Múcio] já repetiu várias vezes, de que nós devemos a nossa democracia às Forças Armadas, vai na contramão da ideia de despolitização. Ele está apaziguando, acomodando. O que é uma estratégia que foi utilizada por presidentes durante toda a Nova República, não tem nada de novo nisso. O presidente Lula 3 está repetindo o Lula 1 e 2, que apaziguou também [a relação] com os militares. Nós já vimos no que isso deu. A gente tem 800 e tantas páginas de argumentos para mostrar que essa política de apaziguamento, de pacificação, de acomodacionismo, deu muito errado. Acho que vale uma reflexão para os próximos governos, porque a gente não pode manter esse mesmo padrão de relações civis-militares se a gente quiser ter uma democracia estabelecida de fato no Brasil."