Operação militar especial russa

'Deixou de ser imparcial': decisão contra Rússia reforça necessidade de reforma da ONU, diz analista

Uma decisão no mínimo inusitada foi tomada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) na última segunda-feira (14): a aprovação da resolução que cria um mecanismo internacional de reparação decorrente das ações da Rússia na Ucrânia durante sua operação militar especial.
Sputnik
Para uma especialista ouvida pela Sputnik Brasil, o gesto é uma tentativa de estrangular a Rússia e acende o alerta para a demanda de uma reforma institucional da ONU.
Proposta por Canadá, Ucrânia, Guatemala e Países Baixos, a resolução também recomenda a criação de um registro internacional para documentar informações sobre perdas e danos ou ainda ferimentos sofridos por ucranianos.
Autoridades russas reagiram de imediato ao resultado, que se demonstrou apertado — foram 94 votos a favor, 14 contra e altas 73 abstenções diante da medida.

"Os anglo-saxões estão claramente tentando reunir uma base legal para o roubo de ativos russos confiscados ilegalmente. Que aceitem a mesma recomendação sobre a compensação total [...] por danos [dos Estados Unidos] à Coreia, ao Vietnã, ao Iraque, à Iugoslávia e a outras numerosas vítimas dos americanos e da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte]. Caso contrário, parece o início da agonia da ONU como principal instituição internacional de reconciliação. O fim será doloroso para toda a comunidade internacional. Viveremos sem tal organização das 'nações unidas'", criticou Dmitry Medvedev, vice-chefe do Conselho de Segurança russo.

Resultado da votação da Assembleia Geral da ONU contra a Rússia que, segundo especialistas, tenta criar amparo "legal" para cooptar ativos russos
O embaixador russo na ONU, Vasily Nebenzya, disse que a medida se tornará um problema para seus próprios autores. Segundo ele, há muito tempo o Ocidente procura "descongelar" os ativos da Rússia — não para devolvê-los ao seu legítimo proprietário, mas sim para começar a gastá-los com supostos auxílios à Ucrânia.
Como parte desse objetivo estariam o financiamento de suprimentos de armas, em constante crescimento, para o regime de Kiev e a cobertura da dívida pelas armas já fornecidas.
Carolina Bernardes Enham, professora e coordenadora do curso de pós-graduação em projetos internacionais do Instituto de Educação Continuada (IEC) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), vice-presidente regional da Câmara Brasil–Rússia de Comércio, Indústria e Turismo no estado e cônsul honorária da Rússia em Belo Horizonte, explica as visões.

"Do ponto de vista da Rússia, acredita-se ser uma forma de 'legalizar' o que foi, justamente, o que a Rússia chama de roubo. Ou seja, a apropriação dos bens da Rússia no exterior, das reservas de ouro e divisas da Rússia no exterior, que foram cooptados pelo Ocidente como uma das formas de sancionar a Rússia", analisou.

A tentativa de cooptação dos bens da Rússia tem como objetivo prejudicá-la economicamente, prossegue ela, e fazer com que não seja necessário devolver nada disso à Rússia.
Mas ela retoma o ponto de Medvedev: nunca se cobrou nada disso dos EUA em relação aos países com os quais eles estiveram em conflito, que eles atacaram diretamente ou de cujas invasões ou operações eles participaram.
A professora enfatiza que se trata de uma argumentação muito válida do ponto de vista russo e das relações internacionais, sobretudo quando se pensa que não pode haver dois pesos e duas medidas para se julgar situações análogas.

"Isso reforça uma necessidade de reforma urgente da ONU, que já deixou de ser imparcial há muito tempo. Isso vai ficando cada vez mais claro quando o que está por trás é uma forma de confirmar o discurso ocidental, de reforçar a fala e a narrativa ocidental contra a Rússia e seus aliados, em uma tentativa, também, de manipular a opinião pública, como tem sido feito, a favor do viés ocidental, mantendo a Rússia como a 'vilã' da história — a despeito do contexto histórico e do que de fato está envolvido e o que de fato acontece. Quando se move uma ação dessa magnitude, gera-se toda a repercussão internacional (e tem mesmo que gerar). Mas isso só corrobora a narrativa de todo o discurso ocidental, que é justamente a tentativa de colocar a Rússia no lugar de 'vilã', que está promovendo um conflito, a despeito de todos os vieses e todo o envolvimento direto do lado ocidental fomentando esse mesmo conflito. Então é mais uma jogada do Ocidente em uma tentativa de estrangular a Rússia."

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A Rússia põe em xeque pontos do direito internacional, da validade desse confisco das reservas de ouro e das divisas, explica Enham, acrescentando que isso é passível de questionamento.
Há especialistas que defendem o confisco de ativos russos como legal e válido e há outros que entendem que não. Segundo ela, trata-se de uma discussão muito acalorada, que ainda divide muitas opiniões.

"A ONU está seguindo os ritos cabíveis a ela, mas sabemos que há interesses por trás e que as ações são tendenciosas. Não podemos dizer que há imparcialidade e que há neutralidade (como deveria haver) por parte da ONU nesses tipos de resoluções que têm sido feitas recentemente contra a Rússia. É difícil dizer o quão válido isso é, mas levanta discussões. Cabem, novamente, reflexões do tipo: podemos fazer isso contra um país, sendo que, em situações análogas anteriores, não foi feito com outros países? Por que dois pesos e duas medidas? Por que mover esse tipo de resolução contra a Rússia se não movemos contra os próprios EUA, por exemplo, ou contra o Reino Unido em outras circunstâncias de conflito com outros países?", questionou.

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Na percepção da especialista, países ocidentais estão buscando uma margem legal para fazer essa manobra sem que se tenha que liberar ou devolver nada para a Rússia e de maneira que se use isso de uma forma que pareça "humanitária", que se reforce um discurso positivo e "humano" por parte do Ocidente — que acaba reforçando a narrativa contrária à Rússia.
Carolina argumenta também que há um interesse nítido de se colocar toda a opinião pública contra a Rússia, de reforçar a narrativa ocidental, e, por fim, acabar prejudicando o país economicamente.
Isso porque todas as sanções econômicas impostas à Rússia não surtiram o efeito que se esperava.

"Eles seguem tentando. E estão 'subindo a régua', por assim dizer. É importante lembrar o seguinte: por que a Rússia teria de arcar com tudo isso, sendo que quem fomenta o conflito na verdade são os Estados Unidos, com envios de bilhões de dólares à Ucrânia, justamente para acalorar o conflito e para que ele tenha continuidade? Se os EUA estão financiando o conflito na Ucrânia, não teriam eles, também, [o dever de] reconstruir [a Ucrânia]? Gera-se toda uma discussão, porque, sobre aqueles que participam (não pela resolução do conflito por meio de vias diplomáticas, mas sim para que o conflito seja mantido), qual a responsabilidade de todos os envolvidos nesse conflito quando o assunto é reconstrução e uma espécie de indenização para a Ucrânia? Certamente não é só da Rússia", afirmou.

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Sobre a alta de abstenções (foram 73 no total), a professora avalia que isso demonstra como os países já estão se sentindo desconfortáveis em apoiar a narrativa ocidental e como já estão compreendendo melhor o que de fato se passa nesse contexto bélico e nos interesses envolvidos.
Já não cabe muito mais a esses países manterem seus discursos muito pró-ocidentais ou terem uma postura que os coloquem contra a Rússia. Tanto pela questão de não quererem se posicionar contrariamente à Rússia neste momento (e aí pode ser por questões econômicas, de fronteira, comerciais), quanto por um entendimento maior do que está havendo, uma conscientização maior, explica ela.

"E entendendo que não, a Rússia não pode ser tão e somente responsabilizada por tudo o que está acontecendo. E mais, que essa penalização não parece justa. Há várias interpretações possíveis para isso que está acontecendo, mas claramente o Ocidente está perdendo aquele apoio voraz da sua narrativa que existia no começo (de contrários à operação militar especial e todo o discurso pró-Ucrânia, a despeito de tudo o que envolvia o início da operação). Hoje vemos que há uma conscientização maior. Os países conseguem enxergar que a Rússia não é tão exatamente a vilã dessa história e que eles também precisam muito da Rússia. Há toda a questão da crise energética, é sempre importante lembrar isso", avaliou.

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A professora lembra que está ficando caro, difícil e custoso para os países manterem suas posições pró-Ocidente e pró-OTAN.
A população, sobretudo a europeia, já percebeu que isso vai custar caro a seus próprios bolsos.
As pessoas não querem mais que seus países banquem nada relativo à Ucrânia, pois "estão fartas e cansadas disso".
Essa pressão tem sido exercida de uma forma maior, o que faz com que esses países precisem ficar mais atentos e ter uma postura um pouco mais moderada, porque de fato estão se vendo reféns de uma disputa que está custando muito, sobretudo para a Europa.
Os países africanos, por sua vez, sempre tiveram uma relação muito boa e têm uma relação comercial importante com a Rússia.
Por isso a Rússia tem uma influência importante no continente africano, diz a cônsul. Esses países não querem nenhum tipo de atrito e não vão fazer nenhum tipo de oposição porque não se veem beneficiados pelos países da OTAN e pelo Ocidente diretamente, a ponto de fazer com que eles tivessem um posicionamento contrário à Rússia.

"Quando a gente faz uma análise geopolítica a fundo, percebe-se que há uma tentativa de manter a ordem mundial; de lutar contra esse deslocamento do eixo, do Atlântico para o Pacífico, de influência da ordem mundial; de diminuir ou desacelerar essa reestruturação mundial com a China e, cada vez mais, com a participação da Rússia. A gente vê o lado asiático crescendo muito e assustando cada vez mais o lado ocidental. Diante dessa clara ameaça hegemônica aos EUA de um mundo que não é unipolar e de um mundo não mais regido somente pelos EUA e seus aliados, ou seja, uma multipolaridade, ela tem assustado. É o que o governo e a política externa norte-americana têm tentado reverter a todo custo. E tentam fazer isso com esse tipo de resolução, usando toda a instituição da ONU à sua disposição para tentar forçar isso, para confirmar seu discurso e sua retórica. É a tentativa do lado ocidental de se fortalecer, de tentar manter os benefícios do lado ocidental tal como o mundo vinha caminhando no último século. E lutando contra o crescimento do eixo do Pacífico, que assombra muito as questões econômicas dos EUA, ainda que os EUA continuem sendo a grande potência. São eles que têm o maior interesse nesse tipo de resolução", conclui.

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Embora a resolução da ONU contra os ativos russos tenha caráter não vinculante (isto é, não existe um compromisso definitivo e as condições podem se alterar), Dmitry Medvedev deu uma pista do que poderá ocorrer caso o Ocidente tente a cooptação dos bens e ativos russos:

"Se, com base na decisão da Assembleia Geral da ONU, sugados por países inimigos de local conhecido, atos nacionais forem adotados sobre o roubo de ativos russos, não teremos escolha. Será necessário retirar de forma irrevogável o dinheiro e os bens dos investidores privados desses países, embora não sejam responsáveis ​​pelos tolos de seus governos. Eles [empréstimos externos, fundos congelados em contas e outros valores], em nosso país, por uma feliz coincidência, valem mais de US$ 300 bilhões [R$ 1,6 trilhão]. O suficiente para compensar o que foi roubado da Rússia."

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