Brasil, Rússia e China visam ampliar a relação estratégica com a África em 2024, apontam analistas
17:17, 19 de janeiro 2024
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas apontam que os três gigantes do Sul Global têm agendas diferentes para o continente africano, calcadas nas áreas econômica, militar e política.
SputnikCom quase 1 bilhão de habitantes, o continente africano é um dos que mais cresce economicamente no mundo, junto com a Ásia. Essa expansão traz consigo oportunidades que despertam o interesse de vários países. No caso do Brasil, por exemplo, a chancelaria brasileira já afirmou que o país vai voltar seus olhos para a África em 2024.
O podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, conversou com especialistas para analisar o que o ano de 2024 reserva para o continente africano, quais países devem se destacar e em que áreas.
Para Ricardo Ossagô de Carvalho, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), a retomada da África na agenda intencional brasileira é muito importante. Ele destaca o fato de o continente ser o de mais rápido crescimento econômico do mundo, após a Ásia, segundo dados do Banco Africano de Desenvolvimento (BAD).
"O crescimento econômico a longo prazo para a África é heterogêneo e em diferentes regiões do continente vai apresentar essa dimensão também. Então, o Brasil, retomando esse nível de cooperação, é de grande mais-valia tanto para a África quanto para o Brasil e para a sua diversidade em termos de política externa."
Questionado sobre quais países têm apresentado maior crescimento econômico, Carvalho aponta dados de cada região do continente. Ele destaca que, na África Central, por exemplo, o crescimento caiu de 4,9%, em 2022, para 4,6%, em 2023, e é projetado para diminuir mais em 2024.
"Isso se deve à tendência de preço de commodities, uma vez que a região é composta principalmente por exportadores de commodities, ou seja, a tendência dessas exportações expõe, também, esses países a riscos associados à flutuação dos preços de commodities."
Já na África Oriental, ele aponta que a perspectiva de crescimento está se fortalecendo: em 2022, a expansão foi de 4,4%; em 2023, 5,1%; e, para 2024, está projetado um crescimento de 5,8%.
"A maioria dos países dessa região deve apresentar um crescimento mais elevado […], o que deve ser impulsionado pelas suas estruturas na produção relativamente diversificada. Com queda de preço de commodities, esses países situados nessa região tendem a vender mais."
Já na África do Norte, que ele afirma ser uma região pouco falada e conhecida no continente como África Branca, e que reúne países como a Líbia e o Marrocos, o crescimento econômico foi de 4,1%, em 2022, 4,6%, em 2023, e está projetado para cair para 4,4% em 2024. Carvalho destaca que o crescimento registrado entre 2022 e 2023 se deu pela recuperação econômica do Marrocos e da Líbia, que tiveram a economia afetada pela Primavera Árabe, em 2011, e pela seca.
No sul do continente, na chamada África Austral, Carvalho aponta que o crescimento econômico está desacelerando, caindo de 2,7%, em 2022, para 1,3%, em 2023. Segundo ele, isso mostra as disparidades regionais do continente.
"Do ponto de vista da África Ocidental, também tem muitos desafios macroeconômicos, alguns dos maiores em economia na região. O crescimento econômico tem sido projetado em sua estimativa de 3,8% em 2022, 3,9% em 2023 e 4,2% em 2024. Ou seja, essa perspectiva é favorável também. Reflete, assim, o maior crescimento econômico das economias menores nessa região da África Ocidental."
No recorte de países, ele aponta que os que mais registraram crescimento em 2023 foram: Ruanda (7,9%), Costa do Marfim (7,1%), Benin (6,4%), Etiópia (6,2%), Tanzânia (5,6%), República Democrática do Congo (6,8%), Gâmbia, (6,4%), Moçambique (6,5%), Níger (9,6%), Senegal (9,4%) e Togo (6,3%).
Qual o interesse de outros países na África?
Questionado sobre quais oportunidades a África traz que despertam o interesse de outros países, Carvalho afirma que isso depende de quais países estão sendo falados.
"Se falar do Brasil, da Rússia e da China, não podemos esquecer da cooperação que era feita anteriormente com o Norte Global a partir da Europa e parte da América do Norte. Por muito tempo, no período da Guerra Fria, inclusive, a África tem sido usada, tem sido tensionada. Os acordos e as cooperações não saíram como deveriam ser."
Ele afirma que a relação com o Brasil, a Rússia e a China traz para a África a perspectiva de uma nova cooperação, baseada no Sul Global, onde todos dão e ganham um pouco. "Não aquela relação que tinha sido construída […] com o Norte, onde a África tende a perder mais."
Carvalho lembra que, além da relação estratégica, Brasil, Rússia e China, os três gigantes do Sul Global, trazem a oportunidade de um resgate histórico. Ele aponta que foi na antiga União Soviética que muitos acadêmicos africanos tiveram sua formação.
13 de dezembro 2023, 23:53
Ademais, ele ressalta que o Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer a independência de muitos países africanos, entre eles, Guiné-Bissau e Angola.
"A China também teve grande relação no treinamento dos militares, no fornecimento de armamento. Então, a relação em si, por si só, não é de agora."
Ele acrescenta que a África também oferece ao Brasil um importante apoio na busca pelo assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), ambicionado pelo país.
"Então […] você precisa da África dentro dessas votações nos organismos internacionais, tanto na Organização Mundial de Comércio [OMC] quanto no próprio Conselho de Segurança da ONU [Organização das Nações Unidas], entre várias outras perspectivas."
Qual o papel da União Africana?
Recentemente, a União Africana, organização que reúne 55 países africanos e promove a integração no continente, afirmou que vai pressionar países que foram colonizadores a pagar uma indenização a povos negros escravizados entre os séculos XV e XIX. Questionado sobre o tema, Carvalho se mostra cético. Ele diz achar correta a cobrança, mas coloca em dúvida a capacidade da União Africana de cumprir o objetivo.
"Eu acho que a União Africana teve um papel importante, preponderado, digamos assim, no período de luta pela libertação, no período colonial com os países. Mas, após isso, se perdeu. Por que eu falei que a União Africana se perdeu? Porque não consegue terminar metade dos conflitos internos da África", diz Carvalho.
"Então, quando eu vejo essa cobrança, eu acho que é legítimo […]. Só não sei se a União Africana, em partes, consegue fazer esse papel. Talvez, enquanto organização, porque a União Africana tem dois grupos conflituosos, ou seja, dois grupos que não se batem. Tem o grupo de Monróvia ali para cima, e tem o grupo Casablanca, na África do Sul, aqui mais pelo sul", complementa.
Sobre a África do Sul, que este ano terá eleições nas quais, pela primeira vez, o Conselho Nacional Africano (CNA) corre o risco de perder, Carvalho afirma que o país tem mais projeção fora do que dentro do continente africano.
8 de dezembro 2023, 15:41
"Na verdade, a África do Sul é um importante ator estratégico dentro da concepção dessa relação Sul-Sul, principalmente quando falamos de BRICS. A África do Sul representa a África por conta da sua dimensão dentro do BRICS. Mas mesmo ainda, a África do Sul é vista como um país-colônia dentro do continente africano, por conta do seu processo histórico de colonização, ingleses, holandeses, bôeres [descendentes de colonos holandeses nascidos no sul da África] e grande parte da dominação de riqueza sul-africana é, de certa forma, ainda dos herdeiros das famílias reais que colonizaram e ficaram muito tempo [no país]."
O que diferencia os interesses de Brasil, Rússia e China na África?
Em entrevista ao podcast Mundioka, Williams Gonçalves, doutor em sociologia e professor titular de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), aponta que Brasil, Rússia e China têm interesses distintos no que diz respeito à África.
"O caráter da relação do Brasil com a África e o caráter da relação de China, em primeiro lugar, e Rússia, em segundo lugar, são diferentes. A China tem uma política global, a Rússia vem um pouco atrás. O Brasil não tem essa política global para a África. Quando nós, brasileiros, falamos em África, falamos basicamente na África Ocidental e, mais especificamente, na África de expressão portuguesa. O tipo da nossa relação é, vamos dizer, mais modesto do que a da China e da Rússia."
Ele acrescenta que o Brasil não precisa necessariamente
competir com a Rússia e a China no continente, mas o que pode fazer é
"explorar com competência todas as possibilidades que se oferecem para as relações com a África".
"Nós temos que levar em conta o seguinte: o Brasil não tem a mesma unidade, não tem o mesmo consenso entre as suas elites como têm a China e a Rússia. O Brasil não tem um projeto fechado como a China e a Rússia têm [para a África]."
Qual o impacto da saída da França no Níger?
Em 2022, a França anunciou a
retirada de suas tropas do Níger, antiga colônia francesa. Questionado sobre o que a saída representa para o país e o continente como um todo, Gonçalves afirma que
"há uma mudança em curso na África".
"A saída da França é muito significativa, porque, até algum tempo atrás, tanto a França como a Inglaterra ainda exerciam uma enorme influência sobre vastas áreas da África, a despeito das independências dos países africanos. A influência econômica, a influência cultural francesa, inglesa, mais francesa do que inglesa, continuava a ser muito grande. Nós poderíamos dizer que nada se passava na África sem que os franceses estivessem, de alguma forma, envolvidos, direta ou indiretamente envolvidos, mas isso tem mudado", explica.
"A relação que a China, em primeiro lugar, e a Rússia, em segundo lugar, têm tido com a África tem permitido aos países africanos experimentar um crescimento econômico que nunca havia acontecido desde que se tornaram independentes dessas metrópoles europeias", acrescenta.
Ele afirma que "a África tem problemas que são difíceis de serem solucionados porque as fronteiras dos países africanos não foram fronteiras que nasceram das relações sociais, econômicas e políticas dos povos africanos".
Na avaliação de Gonçalves, isso explica os conflitos atualmente em curso no continente, como o do Sudão, que enfrenta uma intervenção militar e um cenário interno bastante complicado.
"Não foram os africanos que criaram as fronteiras. As fronteiras foram impostas pelos colonizadores europeus, que traçaram as fronteiras de acordo com os seus interesses, de acordo com as suas necessidades."
Segundo o especialista, essas fronteiras, esses Estados coloniais, acabaram reunindo povos diferentes, etnias diferentes, línguas diferentes. […] Quando a África se tornou independente, lá por volta de 1965, foi criada a Organização da Unidade Africana [OUA] e estabeleceu-se um compromisso de que as fronteiras não seriam mexidas."
Ele acrescenta que, agora, "o melhor que se pode fazer é tentar construir nações a partir dessas fronteiras herdadas do colonizador".
"Isso tem sido muito difícil. Esse processo de construção da nação tem sido muito difícil. E nós temos que levar em conta o seguinte: a descolonização se deu durante os anos 60. Então, nós estamos falando de coisas que aconteceram 60 anos atrás. Veja que, na América Latina, nós nos tornamos independentes politicamente dos espanhóis e dos portugueses no início do século XIX, e nós temos problemas nacionais. A África, pode-se dizer, é muito recente. Esse processo é muito recente. Então, é, de certa forma, natural [que haja conflitos]."
Como é a atuação de Rússia e China na África?
Gonçalves afirma que as relações da China e da Rússia com a África são bem diferentes. Enquanto Pequim visa o âmbito econômico,
Moscou tem uma presença mais militar no continente.
"A China hoje é uma grande potência econômica e, por ser uma grande potência econômica, tem necessidades de importação de matérias-primas, importação de alimentos, importação de petróleo e precisa, portanto, conquistar parceiros, precisa conquistar países amigos para que essas necessidades suas sejam preenchidas", afirma o especialista.
Já a Rússia, segundo ele, continua a ser uma grande potência pelo seu poderio nuclear e por ter assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e "por se recusar a se submeter à ordem internacional que os americanos e a OTAN [Organização do Tratado no Norte Atlântico] querem impor".
"Daí a associação, a amizade sem limites entre a Rússia e a China. Estão ligadas nisso, lutam para criar uma nova ordem internacional e recusam a se submeter à ordem dos Estados Unidos e da OTAN."
14 de dezembro 2023, 16:17
Questionado o porquê o Egito e a Etiópia foram escolhidos como novos integrantes do BRICS, Gonçalves afirma que a escolha se deu pelo contexto geopolítico.
"Nós temos que entender o seguinte: o que é o BRICS? A que se destina o BRICS? Qual é o seu objetivo? O BRICS visa a mudança na ordem internacional. É isto o que o BRICS objetiva: mudar a ordem internacional. O que é a ordem internacional? As regras são as instituições que regulam as relações entre os Estados. Então, o que o BRICS objetiva é mudar essas regras, mudar as instituições", afirma o especialista.
Segundo ele, o ingresso no BRICS se deu pelo compromisso com a mudança observado no Egito e na Etiópia.
"A senha […] para ingressar no BRICS é ter um compromisso com a mudança. Muitos países queriam entrar no BRICS, mas houve um controle. E os países que entraram são países que têm esse compromisso com a mudança e são estratégica e economicamente importantes. Porque para mudar a ordem internacional não basta proferir discurso, é necessário ter uma prática, é necessário ter objetivos claros", conclui o especialista.