No episódio desta terça-feira (24) do Mundioka, podcast da Sputnik Brasil apresentado pelos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho, especialistas em geopolítica detalharam como os Estados Unidos usaram sua moeda, o dólar, para se manter no poder e como essa sanha por permanecer na primeira posição indisputável se mostrou um tiro pela culatra.
Uso do dólar como moeda global
A ascensão dos Estados Unidos como superpotência global ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, quando foram a única potência a sair do conflito com o seu território íntegro, afirmou Filipe Ribeiro, especialista em energia e administrador da página Geopolítica em Português.
A partir dessa posição privilegiada, os Estados Unidos começaram a desenhar o mundo à sua maneira, ajudando a reconstruir a Europa Ocidental e criando, junto a elas, instituições econômicas para o mundo capitalista com os Acordos de Bretton Woods, nomeadamente o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Direcionando a economia do bloco capitalista, os EUA atrelaram o dólar ao padrão-ouro, fazendo com que se tornasse um novo padrão nas moedas dessa parte do mundo. Com o tempo, os norte-americanos notaram uma nova oportunidade e acabaram com esse lastro físico do dólar. Em seu lugar, descreve Ribeiro, surgiu o petrodólar.
"Isso deu muita força ao dólar porque eles sabiam que o dólar teria que ser obrigatoriamente utilizado no comércio mundial."
Hugo Dionísio, advogado, analista geopolítico e fundador do blog Canal Factual e do canal Multipolar-TV, explicou que, ao ganhar essa primazia no comércio global de hidrocarbonetos, o dólar também se associa a sistemas financeiros mundiais como o SWIFT: "Uma coisa não existe sem a outra."
É a partir desse momento que os norte-americanos percebem o poder de usar sua moeda como arma através de sanções. O mecanismo funciona como um ciclo vicioso. Uma vez que não transacionam nos sistemas de transação, os países-alvo não obtêm dólares. Sem dólares, tampouco conseguem comprar e vender de outros países que necessitam da moeda norte-americana para efetuar trocas no SWIFT.
Na prática, os países se tornam isolados, párias mundiais. Esse sistema do "dólar-bomba" funcionou bem enquanto atingiu países pequenos, como Cuba, Venezuela e Coreia do Norte, mas foi a partir da inclusão do Irã e, principalmente, das sanções contra a Rússia, que tudo começou a desandar para os EUA.
"Quando começam a retirar esses países do SWIFT, acabaram criando mercados paralelos porque esses países têm commodities que valem muito dinheiro no mercado mundial."
EUA: em processo de decadência
Esses países, destaca Dionísio, têm grande capacidade de gerar acordos bilaterais e criar mercados à margem do dólar, que contornam o sistema Bretton Woods.
"É assim que esta economia multipolar nasce."
O fracasso dos Estados Unidos em controlar os fluxos de capital é reflexo da decadência que o país enfrenta hoje, 30 anos após a queda da União Soviética. "Até aqui eles eram o único país que aplicava sanções a todos. Hoje em dia já vemos retaliações. A China aplica, a Rússia aplica. E existe todo um Sul Global que vê outros países poderosos que permitem fazer alianças em um mundo de poder disputado", disse Ribeiro.
A Rússia, como grande nação que herdou muitas capacidades econômicas da União Soviética, surge como um polo natural de poder alternativo aos EUA. Já a China, destacam os analistas, representa justamente uma consequência inesperada da política exterior norte-americana.
Dentro da arquitetura mundial, criada pelos estadunidenses — na qual eles ficam no topo da divisão do trabalho, os europeus no centro das cadeiras de valor e os países periféricos relegados à produção de commodities —, a China nunca foi vista com capacidade de produção sofisticada, apontou Dionísio.
Só que esse não foi o plano seguido pela China, que conseguiu se desenvolver, apesar dos esforços contrários dos EUA.
Hoje, a despeito das sanções norte-americanas, o país liderado pelo Partido Comunista chinês avança em passos largos para obter a primazia nas indústrias do futuro, como eletrificação, inteligência artificial, telecomunicações e semicondutores.
"As sanções só fizeram com que a China duplicasse os investimentos nessas áreas onde estavam a receber sanções e ultrapassar mais rapidamente os desafios", afirmou Ribeiro.
A alternativa multipolar
Com sua ascensão, a China apresenta também seu modo de diplomacia para os países do mundo. São relações "ganha-ganha, win-win, parceria de benefício mútuo", explica Ribeiro.
"Os Estados Unidos normalmente tentam fazer um acordo em que o benefício principal é claramente para ele."
Isso é visto de maneira evidente nas ações de ambos no continente africano, afirmaram os especialistas.
Por um lado, os EUA se utilizam de sua posição privilegiada no Banco Mundial e no FMI — instituições criadas por eles próprios — para aprisionar os países africanos em empréstimos e continuar o domínio do dólar e da ideologia capitalista neoliberal nesses países.
"Todas essas condicionalidades perpetuam a pobreza desses países. Ora, isso é uma realidade inquestionável", cravou Dionísio.
Por outro lado, a China vem realizando uma série de construções de infraestrutura com empréstimos a juros zero para desenvolver o continente como parte da Iniciativa Cinturão e Rota, como forma de encontrar mercado para suas indústrias.
"A China perdoou completamente as dívidas em alguns países africanos e tem sido o principal país que tem, de fato, tentado fazer com que o continente africano desenvolva capacidades próprias", lembrou Ribeiro.
Essa distinção da política externa dos dois países não é de agora, mas histórica. Desde o Destino Manifesto e a Doutrina Monroe, os Estados Unidos olham para si mesmos como o país que deve liderar o mundo, enquanto os demais são vistos "como uma fonte de recursos".
"Os Estados Unidos têm alguns séculos de existência, mas a China tem milhares de anos."
Nessa história milenar, a China sempre teve como um dos destaques de sua política externa as relações comerciais. Quando o país chegou com navios ao Oriente Médio e à costa africana, tinha capacidade militar para fazer "algo como uma colonização ou uma usurpação de poderes", descreveu.
Não foi o que fez, contudo. Pelo contrário, estabeleceu relações de troca, seja de mercadorias, seja de conhecimento. Essa mentalidade segue na diplomacia do país até hoje. A política atual do governo chinês é baseada numa estrutura da "prosperidade comum", disse Ribeiro.
"E essa prosperidade comum, eles dizem que é uma prosperidade comum para todos os países, não só dentro da China ou só na Ásia. É para todos os países."